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gestação múltiPla e reProdução assistida

No documento FEBRASGO - Manual de Reprodução Humana (páginas 90-96)

A presença de gestação múltipla (GM) durante o processo de fecundação natural segue a clássica Lei de Hellin (1895), cuja incidência de gestação gemelar seria prevista para 1:80 partos, a tripla, de 1:802 (1:6.400 partos), e a quádrupla, de 1:803 (1:512.000

partos). Por outro lado, todos concordam que a aplicação das TRA elevou de forma dramática a frequência de GM em todo o mundo, algo que Hellin não poderia imaginar. Em muitos países, cerca de 30% a 50% das gestações gemelares provêm dos tratamen- tos de infertilidade. Na Bélgica, essas terapêuticas produziram GM nas seguintes pro- porções: FIV e IIE em 66,7% dos casos, estimulação ovariana + inseminação intrauteri- na em 23,7% dos casos e estimulação ovariana + coito programado em 9,6% dos casos.

Assim sendo, essa endemia de GM teria dois principais fatores etiológicos: • o uso indiscriminado de agentes indutores da ovulação, sem um preciso controle

ultrassonográfico do número de folículos produzidos. Isso é relevante em tecnolo- gia reprodutiva de baixa complexidade;

• falta de critérios rigorosos quanto ao número de embriões a ser transferido após as TRA (FIV, IIE, doação de óvulos etc.).

Os agentes indutores da ovulação, quando associados ou não à inseminação in- trauterina sem controle da resposta ovariana (ultrassom), são frequentemente respon- sáveis pelos casos extremos de GM (sêxtuplos, séptuplos ou óctuplos). As medidas corretivas dessas complicações seriam a obrigatoriedade do controle da estimulação ovariana por ultrassonografia e, principalmente, a suspensão da administração da hCG nas situações de risco para gestação múltipla.

Na Suécia, o processo de estimulação ovariana seguido da rotura folicular indu- zida é suspenso caso ocorra a formação de mais de dois folículos com um mínimo de 16 mm de diâmetro. Além disso, sabe-se que o controle ultrassonográfico do processo de estimulação ovariana é capaz de prever um risco de 5,1% de GM quan- do apenas um folículo está presente, de 11,7% para dois folículos, 20% para três folículos e 50% para mais de três folículos.

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Os critérios que norteiam a escolha do número ideal de embriões a ser transfe- rido nas pacientes submetidas às TRA são controversos e variam em quase todo o mundo, fato que não difere na América Latina. Em 2007, o Registro Latino-Ame- ricano relatou que 52,3% das transferências embrionárias em pacientes com menos de 35 anos são de três ou mais embriões (número elevado diante das evidências atuais de sucesso nessa faixa etária com transferência de um ou dois embriões). Do ponto de vista prático, o emprego dessa política faz com que 40% das crianças nascidas e avaliadas pelo Registro Latino-Americano (2007) fossem produto de partos múltiplos.

Em 2006, nos Estados Unidos (CDC, 2008) os dados evidenciaram que um total de 43,3% das transferências embrionárias foi de três ou mais embriões. Tal fato de- terminou que 44% dos recém-nascidos foram provenientes de partos de GM.

Nesse momento, seria conveniente assinalar que todos os índices de morbidade e mortalidade materno-fetais estão aumentados nos caso de GM. A incidência de doenças maternas encontra-se elevada durante a gestação, com destaque para hiper- tensão, diabetes gestacional, infecções urinárias, poli-hidrâmnio, tromboembolismo e anemia. A doença hipertensiva específica da gravidez na gestação gemelar é cinco a dez vezes maior que na gravidez única. A incidência de diabetes gestacional se associa ao número de fetos: na gestação única, há incidência de 3%, na gemelar, de 5% a 8%, e na tripla, mais de 10%. No parto, evidencia-se maior frequência de descolamento prematuro de placenta, amniorrexe prematura, cesariana e hemorragia pós-parto. Da mesma forma, não se deve esquecer as complicações tardias, como depressão e dificuldades econômicas, sociais e psicológicas oriundas das gestações múltiplas, especialmente por parto prematuro. Por outro lado, na Europa se tem des- crito aumento dos índices de mortalidade materna para gestação múltipla em com- paração com a única (10,2 a 14,9 gestações múltiplas versus 4,4 a 5,2 únicas por 100 mil prenhezes) e na América Latina (77 gestações múltiplas versus 43 únicas por 100 mil prenhezes).

A morbidade fetal está intimamente ligada à prematuridade e ao baixo peso. Des- creve-se maior incidência de malformações fetais nas gestações múltiplas versus únicas. Além disso, as complicações tardias podem ser graves, como paralisia ce- rebral e retardo do desenvolvimento intelectual. Gêmeos monocoriônicos possuem pior prognóstico, entretanto em reprodução assistida sua proporção é relativamente baixa (3,7%) quando comparada à da gestação gemelar natural (30%).

Em 1995, Yokoyama et al. descreveram o risco de sequelas neurológicas em recém-nascidos únicos como sendo de 1,4%, para os gemelares, de 3,7%, para os trigêmeos, de 8,7% e para os quadrigêmeos, de 11,1% e a prevalência de paralisia

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cerebral (por 1.000 crianças/primeiro ano de vida) como sendo para gestação única de 2,3 (IC 95%; 2,1-2,5), para a gestação gemelar de 12,6 (IC 95%; 9,7-16,1) e para a gestação tripla de 44,8 (IC 95%; 16,6-95).

Por outro lado, o gasto no tratamento dos recém-nascidos provenientes de gesta- ção múltipla é assustador. No Brasil, um gasto de aproximadamente 70 mil dólares não será raro no seguimento de uma gestação gemelar extrema (peso abaixo de 1.000 g) com discretas complicações até sua alta, geralmente em torno de 120 dias. Tais fatos tornam a incidência elevada de gestações múltiplas um problema grave, mere- cendo o desenvolvimento urgente de medidas preventivas para sua redução.

A política de prevenção das gestações múltiplas em reprodução assistida deve-se basear nos seguintes pontos:

• informação prévia aos casais dos riscos da gestação múltipla; • identificação de fatores de risco;

• controle da poliovulação;

• melhoria constante na qualidade e seleção embrionária;

• desenvolvimento de programas eficientes de criopreservação de embriões; • aumento do número de transferência embrionária única em populações selecionadas; • redução do número de embriões transferidos em geral.

Em linhas gerais, os casais submetidas às TRA devem ser alertados para os riscos, pois no Brasil aproximadamente 10% das pacientes possuem alguma pre- ocupação quanto à possibilidade de ocorrer gestação múltipla. A identificação dos fatores de risco para gestação múltipla deve ser obrigatória. Dentre os mais impor- tantes, destacam-se a idade da paciente e o fato de possuir gestação anterior. Não há dúvida de que a idade da mulher (≤ 35 anos) está diretamente relacionada à sua capacidade de engravidar, assim como a seu potencial para obter gestação múltipla (três vezes maior chance de gestação múltipla). A gestação anterior aumenta (1,8 vez) o risco de GM.

Em reprodução assistida de baixa complexidade, o controle da poliovulação cancelando-se os ciclos com desenvolvimento de mais de dois folículos de 16 mm ou mais poderia ser uma conduta eficaz. Por outro lado, a melhoria na qualidade embrionária, assim como a capacidade de selecionar os embriões com maior poder de implantação, deve ser um objetivo constante dos centros que realizam TRA. Além disso, o desenvolvimento e manutenção de um programa eficiente de criopreserva- ção de embriões são uma medida obrigatória, pois o sucesso com os embriões exce- dentes faz com que qualquer política na redução do número de embriões transferidos

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não afete de forma significativa os resultados gerais. Assim sendo, espera-se, no mínimo, uma taxa de 20% de gestação em evolução por transferência de embriões criopreservados, especialmente nas pacientes com 37 anos de idade ou mais.

O desenvolvimento de programas de transferência embrionária única é funda- mental para reduzir a incidência de gestações múltiplas. Nos últimos cinco anos, os países nórdicos apresentaram uma política clara, executando transferência de apenas um embrião em mais de 80% das pacientes que utilizam TRA, e afirmaram que essa população que realizou seu primeiro ciclo de FIV/IIE teve redução nos índices de gravidez clínica em evolução quando se transferiram um embrião versus dois em- briões. Contudo, no grupo com transferência de um espermatozoide, mais embriões foram criopreservados. O risco absoluto de redução de gravidez clínica em evolução foi de 13%.

Os resultados do registro nacional dos países nórdicos (Noruega, Suécia, Fin- lândia e Dinamarca) demonstraram que a aplicação de programas de transferência única de embriões abaixo de 30% do total das transferências não afeta significativa- mente os índices de gestação múltipla. Assim sendo, na Suécia, em 2003, quando as transferências de embrião única ultrapassaram 50% dos casos, realmente se obser- vou queda significativa das taxas de gestação múltipla (11,3%). Seguindo a mesma linha de pensamento, seria importante definir o objetivo principal a ser atingido com as medidas de prevenção da gestação múltipla. No estado atual dos conheci- mentos, terminar o ano com menos de 20% de partos gemelares seria uma excelente meta e, além disso, descartar definitivamente a presença de gestação trigemelar ou de maior ordem.

Entretanto, com essa meta cumprida (menos de 20% de partos gemelares), haveria um total de 100 partos, pelo menos 19 gestações gemelares (obtendo-se 38 recém-nascidos de gestações múltiplas) e, consequentemente, 81 gestações únicas. A taxa de recém-nascidos oriundos de parto por gestação múltipla seria 38 dividido por 119, ou seja, 31,9% dos recém-nascidos seriam provenientes de gestação múltipla. Tal índice ainda seria altíssimo quando comparado com os quase 4% a 6% das gestações naturais. Finalmente, considerando o estado atual das TRA, pode-se concluir que sua principal complicação, que é a gestação múl- tipla, não foi sequer diminuída em um nível aceitável, sem prejudicar os índices atuais de gestação.

No Brasil, projetos de lei com características radicais que tramitam no Senado e Câmara Federal visam a proibir a criopreservação de embriões e permitir a fertiliza- ção de apenas três óvulos, obrigando a transferência embrionária de todos os embri- ões formados. Tais projetos têm a finalidade apenas de aceitar concepções filosóficas e/ou religiosas que atribuem aos embriões o estado de ser humano, porém não irão

Gestação múltipla e reprodução assistida

acrescentar nenhum fato positivo à estratégia de redução das gestações múltiplas, e, sim, dificultar a possibilidade de as pacientes inférteis atingirem seu objetivo prin- cipal que é a gravidez.

leituras suplementares

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2. CDC – American Society for Reproductive Medicine, Society for Assisted Reproductive Technol- ogy, 2006. Assisted reproductive technology success rates: national summary and fertility clinic reports. Atlanta: U.S. Department of Health and Human Services for Disease Control and Prevention November 2008.

3. Devreker F, Pogonici E, De Maertelaer V, et al. Selection of good embryos for transfer depends on embryo cohort size: implications for the “mild ovarian stimulation” debate. Hum Reprod. 1999;14:3002-8.

4. Ericson A, Källén B. Congenital malformations in infants born after IVF: a population-based study. Hum Reprod. 2001;16:504-9.

5. Gerris J, De Neubourg D, Mangelschots K, et al. Elective single day 3 embryo transfer halves the twinning rate without decrease in the ongoing pregnancy rate of an IVF/IIE programme. Human Reprod. 2002;17:2626-31.

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7. Lukassen HGM, Braat DD, Wetzels AMM, et al. Two cycles with single embryo transfer versus one cycle with double embryo transfer: a randomized controlled trial. Hum Reprod. 2005;20:702-8. 8. Ombelet W, De Sutter P, Van der Elst J, et al. Multiple gestation and infertility treatment:

registration, reflection and reaction – the Belgian project. Human Reproduction Update. 2005;11:3-14.

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10. Registro Latinoamericano de Reproducción Asistida. Santiago Chile (2007) RED LARA – Red Lati- noamericana de Reproducción Asistida. Disponível em: www.redlara.com.

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PreserVação da fertilidade em Pacientes

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