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Gestaltismo em Merleau-Ponty

Parte II – Estrutura do conhecimento cibernético

II. Gestaltismo e organização

II.2 Gestaltismo em Merleau-Ponty

«tomando nota da sua flecha, da deslocação das suas linhas, da superfície exposta ao sol, eu sentia que não ia até ao fundo da minha impressão, que havia alguma coisa por trás daquele movimento, por trás daquela claridade, alguma coisa que eles pareciam conter e ao mesmo tempo ocultar»

Marcel Proust115

Figura 5 – o esquema de sucessão A-B-C

Como vimos no capítulo anterior, a percepção é uma soma de visões locais consistindo numa operação de Semelhança A-B-C. Wiener afirma que de A nunca se poderia passar para C pelo princípio de Semelhança, pois, para se atingir diferentes patamares, cada

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Ibidem pp. 127

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Lucien Sfez, Crítica da Comunicação, P. III, C. 2, III,pp. 282

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elemento terá de evocar o seu elemento antecessor. Merleau-Ponty vai duvidar que este esquema de associações possa funcionar como força autónoma, negando que as somas das forças locais consigam constituir a percepção, e propõe uma consciência do contorno visual das coisas como um algo colectivo. A operação de Semelhança leva a um contra-senso confuso, porque, ao não admitir uma identidade una a dois termos, propõe um sistema de substituição em que uma impressão anuncia as outras e onde duas impressões nunca podem ser compreendidas como a mesma, sendo o sujeito que conhece, neste caso, como uma máquina de calcular116 que anuncia novas impressões associadas às velhas. Mas, neste princípio de associação, o sujeito apenas calcula as impressões, não obtendo um real alcance da veracidade dos resultados, caindo no perigo do nominalismo da “redução do sentido ao contra-senso da semelhança confusa, ou ao não-senso da associação por contiguidade117”, tratando a realidade como mera soma de átomos e surgindo o pensamento como das rechnende Denken, conforme referido por Heidegger118. Merleau-Ponty propõe, então, um percebido que esteja longe de um processo de associação e que englobe, além do todo das coisas, também o vazio entre as coisas (a que, como vimos, Hume havia dado uma resposta). À pergunta da teoria

Gestalt, se as coisas são primeiramente percepcionadas como um todo e decompostas

depois em partes, ou se as coisas são decompostas originalmente e depois montadas por associação, é na primeira que Merleau-Ponty vai assentar a sua teoria da percepção. Segundo este filósofo, a atitude analítica pode discernir as coisas, mas num processo posterior à apreensão do todo que precede qualquer confronto de partes para a verificar e determinar. São apresentados três exemplos para ilustrar tal:

1) A visualização de uma paisagem ambígua; 2) O treino de rima e inversão de palavras; 3) A comparação de figuras geométricas.

No primeiro destes exemplos, está patente uma teoria da percepção original, nos dois últimos, está patente uma teoria da memória e treino para confundir a sensação.

Ao visualizar uma paisagem onde se confunde o mastro de um barco encalhado com as árvores de uma floresta próxima, apenas com o aproximar é que o sujeito sente uma

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Fenomenologia da Percepção, pp. 38

117

Ibidem

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clarificação de identidade e observa que o que era antes árvore é afinal um mastro. Neste primeiro exemplo, o filósofo tenta explicar que há primeiramente um todo observado que, caso fosse alvo de uma teoria analítica, se descobriria um mastro no meio da floresta. Mas tal não acontece porque o sujeito cognitivo apreende um todo imerso num sentido que pode depois desconstruir e descobrir as partes.

A sensação é muito diferente do mundo objectivo tendo o ser cognoscente que coincidir com um sentido das coisas. Contrapondo as perspectivas associacionistas, o campo perceptivo não é um soma de visões locais que acabam por esconder o objecto percebido. A sensação, em Merleau-Ponty, não corresponde uma impressão pura119,e o erro das impressões é tornarem o objecto em algo dentro da consciência em vez de o fazer como algo para a consciência. Os defensores da impressão pura objectivam as coisas transformando-as em algo mudo com critérios plenos e determinados que tornam eficaz o seu funcionamento. Segundo Merleau-Ponty, é aqui que os objectos do mundo real perdem o sentido inicial que lhes devia ser dado, pois o associacionismo acaba por criar um mundo com contornos muito precisos onde não há espaço para as lacunas, negando o vazio entre impressões - o não-sei-o-quê ou campo indeterminado120. Ao querer mascarar toda a sensação pelo objecto, o empirismo acaba por mascarar a subjectividade que poderia estar inerente à percepção tornando-o um fragmento de extensão em constante relação que se integra numa teoria de arco reflexo (a que Ponty contrapõe com a de um arco intencional) e onde a cada situação deverá corresponder uma determinada reacção121. Deste modo, o indivíduo transforma-se num centro registador e o “dejá monté122” é remodelado numa “montagem expecional” da mente humana. É com este assunto que o filósofo francês se preocupa, afirmando que “a lei da constância não pode prevalecer, contra o testemunho da consciência”123. A teoria das sensações a que se opõe acaba por construir uma série de leis de aparência em relação aos objectos, dotando-os de qualidades determinadas e construindo uma aparência de subjectividade onde estes são puros, absolutos e limpos de equívocos. Propugna por isso um regresso à noção clássica de sensação em que esta era um produto do pensamento voltado para os objectos, e um afastamento da percepção organizada onde uma

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Fenomenologia da Percepção, pp. 25

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Whitehead reconhece este problema no campo das emoções, admitindo haver antes uma «concomitância» em vez de uma associação. Simbolismo o seu significado e efeito. C. III, Pp. 71

121

Patente na união entre a psicologia e fisiologia que Merleau-Ponty quer denunciar.

122

Hubert Dreyfus, Intelligence without representation

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«gramática» indica uma «estrutura de conjunto124» dependente da memória e treino. Nos dois exemplos seguintes125, o autor vai criticar esta atitude mental. Assim, no segundo exemplo citado, Merleau-Ponty vai demonstrar que a associação é o resultado de um treino que leva o sujeito a ser induzido em determinadas associações. Supondo que se é treinado na rima de “dak-tak” ou na inversão de palavras de “ged-deg”. Para este segundo caso, o sujeito terá mais dificuldades em encontrar uma rima, pois o seu treinamento não consistiu nesta acção, contrariamente, terá bastantes mais facilidades para o realizar na anterior “dak-tak”, onde teve aperfeiçoamento. Contudo, se o exercício consistir numa mera mudança de vogal, que não está inserida num exercício de associação, o sujeito terá mais facilidade pelo facto de estar fora de qualquer contexto de treino. A operação de associação está assim totalmente dependente da experiência anterior que induz o sujeito em respostas, significando isto que esta operação não é uma força autónoma.

Figura 6 – figuras geométricas

No terceiro exemplo, são apresentadas duas figuras geométricas e propõe-se responder qual evoca qual. Uma figura geométrica complexa que inclua uma menos complexa não a evoca necessariamente. Não se pode considerar uma pessoa exterior a realizar a operação de Semelhança, mas sim o próprio sujeito que faz a verificação desta semelhança nas figuras geométricas. Tanto pode ser fácil para um sujeito descobrir na complexa figura 2 uma figura menos complexa como a ilustrada em 1, desde que tenha desta um conhecimento prévio, como pode um sujeito activo na busca de figuras geométricas ganhar mais rapidamente esta descoberta do que um sujeito passivo, indo mais longe e descobrindo até outras figuras geométricas.

Nestes dois últimos exemplos descobrimos que a associação, sobretudo de Semelhança e Contiguidade, não consegue trabalhar enquanto força autónoma, mas é sim o fruto de um treinamento que torna o conhecimento mais eficiente. Há um efeito de indução que torna atractiva determinada escolha para o sujeito, a qual está dependente da existência de ideias prévias na consciência – a memória tem aqui papel preponderante.

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Merleau-Ponty, Palestras, C. VI

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