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5 – Merleau-Ponty: para além do associacionismo e do racionalismo.

Parte II – Estrutura do conhecimento cibernético

I. 5 – Merleau-Ponty: para além do associacionismo e do racionalismo.

No capítulo terceiro da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty aponta duas características presentes nas formas de conhecimento decorrentes da modernidade: a

Attention (presente no empirismo e no racionalismo) e o Jugement (predominante no

racionalismo e com alguma relevância no empirismo). Recordemos que ambas eram elogiadas por La Mettrie. Ponty irá criticá-las.

a) A Atenção

A Atenção é uma atitude intelectual que serve de dissociativo entre a consciência e a sensação, tornando os objectos apercebidos em alvo de análise. É um poder geral e incondicionado que não se torna em parte interessada dos objectos, ficando estes expostos de forma indiferentemente à sua disposição. Por essa razão, a Atenção acaba

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Ibidem, L.I. P. III, S. XI

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por ser vazia - “não cria nada86” -, tanto na soma das qualidades como no sistema das relações, que se ocupa em apreender, mas que não encontra função para o indeterminado, deixando um espaço por ocupar na consciência e na percepção para o que é contingente Se no intelectualismo a atenção encerra a estrutura inteligível do objecto, ao invés, no empirismo, é este objecto que irá despertar a Atenção, e esta por sua vez configura-se como forma de enriquecer e desenvolver o mesmo objecto. O modo como estas duas formas de conhecimento tentam escapar ao caos faz-lhes ter uma posição filosófica fraca quanto a conceptualizações, por exemplo, do nada. Por exemplo, num estado de semi-sono, em que a consciência não está desperta, é considerado nestes sistemas como uma vertigem e é apenas pela Atenção, seja dos objectos ou das ideias, que há lugar para um acertar da organização das coisas. A

Atenção cria um campo que possa ser dominado (Dominer/Uberschauen87), onde os objectos possam ser fixados e objectivados guardando uma distância entre conhecedor e conhecido. Por este meio, os objectos surgem de forma indiferente ao conhecedor, partindo deste a sua organização. Seja no racionalismo onde a consciência constitui o todo, seja no empirismo, onde a consciência nada constitui, a Atenção permanece eficaz, pois acaba por nada criar, além de não criar nenhuma relação nova. A Intenção que Ponty pretende valorizar transforma-se em actos vazios de atenção. O empirismo empobrece a consciência, ao passo que o racionalismo enriquece a consciência, mas se, no primeiro, se perde a conexão interna entre o objecto e o acto que o desencadeia, no segundo perde-se a contingência das ocasiões de pensar. Para Ponty, o empirismo não se apercebe de que é preciso saber o que se procura, sem o que não se procuraria, e o racionalismo não vê que é preciso ignorar o que se procura, sem o que também não se procuraria. No racionalismo, a atenção faz possuir aquilo que procura, ao passo que, no empirismo, a atenção vai obtendo o que procura num “milagre renovado88”. No racionalismo, a atenção é o método para esclarecer o objecto. Por exemplo, na afirmação “o prato é um círculo geométrico”, o objecto já encerra a estrutura inteligível que cabe à atenção encontrar. Contrariamente, o empirismo vai necessitar da atenção para o acumular de impressões, a fim de efectuar as respectivas acções correlativas, onde os objectos nada têm de imanente, sendo considerados apenas “dados89” para construir a consciência. Utilizando um exemplo de Malebranche, Ponty interroga-se

86 Fenomenologia da percepção, Pp. 55-56 87

Phénoménologie de la perception, Pp. 37

88

“Miracle renouvelé”, Ibidem, pp. 36

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sobre o fenómeno perceptivo de a Lua ser maior no horizonte do que no seu Zénite90. Para encontrar resposta para esta incongruência perceptual, os empiristas recorrerão a uma luneta medidora, ao passo que os racionalistas efectuarão uma redução da percepção de facto a uma percepção analítica. Ambas estas posições ignoram, no entanto, algo como a “consciência em presença da sua vida irreflectida nas coisas [que as desperta] para a sua própria história que ela esquecia91”. A Lua contemplada sem

Atenção despertaria outro tipo de percepção, onde uma resposta poderia ser o descobrir

natural e intuitivo de que as partes do campo agindo umas sobre as outras motivam uma Lua grande quando esta está no horizonte, dentro da tese de Ponty de que o “todo determina o que conta como elemento92”.

b) O Juízo

O Juízo é um método mais predominante no Intelectualismo, transformando a percepção em reflexão. Afasta-se da aparência do sentir, que é a não-procura da verdade. Pelo juízo, tenta-se cobrir a percepção, afastado-se da multiplicidade de impressões e das intelecções confusas. Por exemplo, cria-se o juízo de que “há pessoas ali na rua” pela observação apenas dos seus fatos e chapéus, quando, rigorosamente, as características de “pessoas” não estão acessíveis à retina – aquilo que Ponty designa “uma actividade simples de conclusão93”. Mas se, neste caso, há uma pressuposição do observado, também pode acontecer ser a própria visão a criar o Juízo, como, por exemplo, a classificação de uma caixa grande como mais pesada que uma caixa pequena. Ou seja, Ponty critica não só o ajuizar mental, como denuncia um ajuizar perceptivo que dificulta o conhecimento sensível. No caso do racionalismo, o problema ocorre porque a concepção do espírito modifica esta mesma percepção, construindo-a em vez de deixar revelar o seu funcionamento próprio. Considerando os erros da percepção, o racionalismo adere à fórmula «habemus ideam veram94», que se afasta de evidência

ingénua do mundo, o espirito não desce à natureza, mas é a natureza que se eleva ao conceito. Neste método, o ser cognoscente não tenta explicar a percepção, mas fá-la coincidir com a operação perceptiva a fim de compreendê-la, colocando-a no mundo das verdades matemáticas. O problema deste sistema, para Ponty, é o de apresentar um

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Palestras, C. II.

91

Fenomenologia da Percepção, Pp. 60

92 Hubert Dreyfus, Merleau-Ponty’s Phenomenoloy of Perception, Lecture 3 – Attention and Judgement,

Podcast -25 Janeiro, Universidade de Berkeley.

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Fenomenologia da Percepção, pp. 62

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mundo inteiramente acabado95, sem lugar à reflexão como elemento criador. As qualidades do objecto são apenas o invólucro do mesmo objecto que passam de seguida a lei: signo sensível e sua significação não se dissociam, nem mesmo idealmente. Encerra-se a possibilidade de contingência no universo da percepção e o objecto novo tem de ser submetido a uma lei já pré-existente.

Esta ambiguidade perceptiva no racionalismo pode ser analisada nas linhas de Zöllner.

Fig. 4 – Linhas de Zöllner

O que faz estas linhas serem por sensação oblíquas, quando são por realidade rectas? Respostas: para os empiristas, as linhas auxiliares fazem uma associação errada com as linhas rectas dando uma aparência de oblíquo a estas. Para os racionalistas, não se faz uma análise dos objectos propostos, as linhas principais, deixando-se intervir linhas auxiliares que conduzem ao erro. Existe um problema relativo à ordem da percepção comparando-se conjuntos e não seus elementos principais.

É da determinação dos objectos que a teoria de Ponty vai querer escapar, convidando a uma lógica própria do corpo percepcionante que não dá conta de si mesma e cuja significação imanente é constituída por fenómenos inassimiláveis pelo pensamento objectivo. Verificamos aqui, uma vez mais, que o cartesianismo não constitui resposta ao problema da contingência, porque oferece um mundo totalmente planeado, incompatível com a inconstância da realidade resultante da Lei da Entropia. Veremos de seguida como o associacionismo vai oferecer condições mais seguras para a Cibernética, partindo de uma análise da teoria Gestalt.

95 Ibidem, Pp. 77

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