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Luciano Floridi 453 : Ciberespaço como evolução naturalista da identidade

Parte III A construção de uma Identidade Informacional

I. 2 A identidade segundo Hume.

III.1 Luciano Floridi 453 : Ciberespaço como evolução naturalista da identidade

“Embalado num sonho inconsciente, indiferente a tudo, perdera a sua identidade na cedência estupefaciente das vagas e dos seus pensamentos. Tomava o oceano místico a seus pés pela imagem azul da alma profunda do universo, confundindo a humanidade e a natureza.”

Herman Melville454

Tal como Locke, Floridi não concebe a identidade na sua singularidade, sendo necessárias três perspectivas: corpo, cognição e consciência. Há antecedentes desta concepção em Platão pela noção de que o homem é uma carruagem comandada pela alma, que perde unidade tornando-se num “multi-agent system”. A definição de Eu apresenta duas perspectivas possíveis: diacronia e sincronia. Pela primeira destas, o indivíduo encerra-se na teleologia que o assume como durador dentro de um estado constante. Floridi opta pela perspectiva do Ser como sincrónico que o afasta da metafisica e insere na Filosofia da Mente, conforme a perspectiva de Locke, em oposição à de Proust, diacrónica, onde o Ser se insere numa narrativa auto-biográfica, onde a relação com o outro é de cabal importância. Não obstante, nestas duas perspectivas – a de Locke e a de Proust - a questão de como manter o Ser num todo unitário permanece. A perspectiva do Ser como narrativa aceita que a privacidade pode ser o local onde o Eu se encontra mantendo uma unidade e coerência, contudo, tal torna-

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Ibidem, pp. 92

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Luciano Floridi, The informational Nature of Personal Identity

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se difícil ao encarar a teoria do Eu dentro de um feixe de impressões conforme Hume preconizou ou, no âmbito do ciberespaço. Afastando-se da fenomenologia, Floridi vai conceber a continuação do Ser dentro do Ciberespaço como processo sincrónico de continuação dos processos naturais que já antes acompanhavam o desenvolvimento das espécies, dentro dos 3 estádios de desenvolvimento da identidade que apresenta:

1. Da membrana física ao organismo. As estruturas físicas já detêm um padrão, mas há uma membrana que cobre o organismo separando-o do mundo externo e que permite que este escape à segunda lei da termodinâmica – trata-se de uma membrana “negentrópica” Neste estado, os estímulos externos são já um broadcast, uma transmissão de sinais, e não a realidade em si.

2. Da membrana cognitiva ao animal inteligente. O organismo ganha capacidade de descodificar as mensagens exteriores de forma tal como o modelo de informação de Shannon, passando a um estado de cognição capaz de memória e linguagem.

3.Da membrana consciente ao Self. Atinge-se o estado semântico em relação à informação, capaz de significações e interpretações. O Self passa a Uno, não se divide mas aprofunda-se pela auto-reflexão.

Quanto mais virtuais se tornam as estruturas, menos compromissos assumem com o mundo exterior, envolvendo-se o Self dentro da sua própria teia de significados e interpretações. Tal não leva ao extremo de uma semântica privada, como Wiener dizia455: antes do mundo da comunicação, já existiam comunidades que detinham alto grau de organização, capaz de escapar à Entropia. Não se isolando, e afastando-se do que acima falámos em Mounier, o Ser irá continuar a sua evolução sincrónica em ascendente virtualização, onde muitos dos conceitos habituais da cultura humana poderão sofrer mutações. Floridi avança com cinco tipos de alterações:

1. Corpo: do dualismo à polaridade. Não há conteúdos latentes de antigos Self’s no Self presente – esta é uma perspectiva do sincronismo, por exemplo, uma borboleta não é mais uma lagarta, mas sim algo completamente novo devido ao ambiente. O ambiente irá abrir a possibilidade e necessidade do Hetero-incorporação (heterobodiment) sem dualidade, onde a linguagem se torna pública e comunicativa.

455 Cybernetics, C. VIII

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2. Espaço: o desligar do local e da presença. Passa-se no ciberespaço a ter um novo

Self que embora se localize no cérebro não está presente nesse mesmo cérebro. O lugar

muda e a consciência forma-se no mundo digital.

3. Tempo: o desligar entre desactualização (outdating) e envelhecimento (ageing). O digital aumenta a durabilidade, mas torna-se desactualizado quanto a formatos e a tecnologias, embora não envelhecendo. Isto leva a uma desalinhamento cronológico entre o Self e o seu habitat online, neste sentido há uma “a-sincronicidade”.

4. Memórias e interações: fixando o Self. Quanto mais memórias se acumulam digitalmente, mais constrangimentos se criam à identidade no sentido de a inovar e desenvolver. O registo constrange um novo Eu, por isso, as acções de “capturing,

editing, saving, conserving e managing” das memórias terão uma importância maior.

5. Percepção: o olhar(gaze) digital. Há um prolongamento e ampliação da experiência contemplativa de uns em relação aos outros. O Self passa a ver-se como uma 3ª pessoa e perde-se na auto-percepção do si atribuído pelos outros, uma “re-ontologização

heteronómica”. Desenvolveremos este ponto em Sherry Turkle.

III.2 - Pierre Lévy: Ciberespaço como evolução metafísica da Identidad

“Toda a vida, todos os dias, [o que] é mandado de pessoa para pessoa são casualidades e fragmentos da vida apenas para aquele que também considere casual a sua própria existência, mas já para aquele que considera a sua vida uma parte desta unidade, eles são partes de um organismo único, milagroso e inteligente” Anton Techékov456 O conceito de identidade em Lévy não descura uma visão naturalista tanto a nível da biologia como a nível da física. Os conceitos darwinistas de evolução estão presentes quando se denota que são os organismos cooperantes aqueles que melhor se conservam, além de que a genética é o suporte de memória necessário que perpassa gerações e Eus singulares, assegurando uma universalidade acima do Eu. Tal como para Hume, o Eu não passa de uma ilusão, incluída em Lévy dentro da herança da selecção natural, como truque para útil reprodução da espécie457. Numa analogia entre Física Quântica e ciberespaço, faz equivaler energia física à consciência, as massas às ideias e o espaço- tempo ao mundo virtual-semântico. A construção empírica de identidade contribui para

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Conto Por razões de Serviço

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a definição do Eu digital, nomeadamente nos conceitos Lockeanos e Humeanos de consciência e fluxo de sensações. Tal como em Locke, a interrogação acerca da perdurabilidade da identidade, considerando-se uma pessoa como a mesma de quando tinha 5 anos458. A consciência garante da continuidade, onde pensamento, emoções e percepções mudaram, e não permitem a constituição do ser como singular, anulando individualidade. A consciência deve então ser em prol do total, de uma “consciência universal” em que as consciências individuais são energias últimas e criadoras do unitário. Se a consciência se mantivesse solitária, encontraria a barreira das suas próprias percepções, que não lhe permitiriam descobrir as consciências noutros corpos. Deste modo, a consciência individual deve deixar o seu marco solitário e identitário, contribuindo para uma consciência colectiva, cujo espaço é virtual e crescente devido à adição de consciências. Ao estado consciente deve opor-se o inconsciente, que é um fundo e o território infinito das formas459, que deve ser conhecido. Tal como Hume, Lévy concorda que a consciência está “presa” num fluxo permanente de sensações, em que a atenção é algo em circulação por entre sensações e ideias, daí, propor uma cultura de corrente460, em que se substitua a reprodução de imagens fieis a certas formas de vida pela cultura dos objectivos universais, em que todos “somos vias” interagindo num reservatório dinâmico que é o ciberespaço. O contacto com o universal é essencial para a criatividade e a originalidade, que implica despojamento e abstração de si, sendo que sensações e ideias são algo que atravessa a consciência e que pertencem ao ecossistema. As ideias não se podem reduzir a meras abstrações de conceitos, pois, nesse caso, prender-se-iam a uma cultura fixa. Estas devem ser representações, quer de objectos directos das sensações, quer de pensamentos e emoções.

A concepção de identidade de Lévy toma em consideração o grau instável da realidade, encarando o Homem como espécie dentro da Evolução num espírito de luta e cooperação para a sobrevivência. O grau mais recente da evolução é o estado cultural, que continua o desafio da evolução das ideias sem estados fixos, mas transitórios, de permanente associacionismo, perdendo-se em formas de múltiplas possibilidades. A adição de consciências irá potenciar as formas, abrindo-se a possibilidade de as consciências não serem já individuais, mas ligadas, conectadas numa rede de troca de ideias que alcance uma consciência universal mais perfeita, muito embora nunca

458 Ibidem, pp. 185 459 Ibidem, pp. 134 460 Ibidem, pp. 149

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acabada ou definitiva. É o que ocorre no historial genético das espécies: alvo de aperfeiçoamentos e sucessivas combinações, as memórias foram amadurecendo – o ciberespaço encontra aqui analogia.