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Internet: um suporte externo para as memórias

III – A memória

III.3 Internet: um suporte externo para as memórias

«O ciberespaço. Uma alucinação consensual, vivida diariamente por biliões de operadores legítimos, em todas as nações, por crianças a quem se estão a ensinar conceitos matemáticos. Uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de todos os computadores do sistema humano».

William Gibson153

«in antiquity, at any rate, memory was not meant to picture the entire world»

Albert Borgmann154

O problema de um espaço de memórias artificial e externo, como se caracteriza o ciberespaço, coloca dois problemas adicionais, para além da projecção de memórias,

149 Ibidem, pp. 61 150 Ibidem,. pp. 29 151 Ibidem, pp. 29 152

Floridi, The information Nature of Personal Identity, 3, 2011.

153

William Gibson, Neuromante, pp. 65

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focada por Merleau-Ponty, e da ausência de estados corporais, focada por Bergson, são estes:

a) O problema da infinitude informativa. Embora rigorosamente o espaço virtual não seja infinito, a extensão deste torna-o inalcançável como um todo para a mente humana

b) O problema da exterioridade. A memória não é propriedade da mente e a procura desta torna-se obrigatoriamente consciente, dentro de um juízo e propósito.

A necessidade de um “aparato155” para a memória já alcança grande relevância em Norbert Wiener, sem constrangimentos quanto à permutabilidade de informação entre natural e artificial, pois, como expusemos, os mecanismos são considerados na cibernética como semelhantes, daí que pela existência de uma “mente ou órgão”, se assegure esta junção “capaz de fertilizar um por meio do outro”156. A percepção por si só é insuficiente, pois apenas alcança coisas singulares, tornando-se necessária a memória para a construção de universais como já o afirmava Aristóteles. A arte e a ciência encontram-se dependentes de um unificador de todas as experiências, sem a qual a inteligência não é possível157. John Locke concebe uma memória onde estivesse “constantemente presente o sentido total de todas as suas acções” e uma capacidade de “reter em conjunto e ver constantemente, como numa só visão, a totalidade dos acontecimentos prévios, e tudo de uma só vez”158, algo apenas possível a seres superiores, como Deus e os Anjos.

Para Pierre Lévy, a existência de uma memória exterior é condição para a tornar maleável e actualizada, algo que falta no modelo clássico de biblioteca-livro, que é contextualizado e finito. Para tal, deve ultrapassar-se o problema da consciência solitária, tornando-se antes emissora, aumentando a corrente de uma “noosfera” que ganhe sentido num projecto colectivo de memória159. As consciências devem perder a territorialização que causa a memória situada, entrando num fluxo de permanentes mudanças. A memória, no seu sentido clássico, é situada e tem o problema da fixidez, tornando-se, com o tempo, descontextualizada, como é o caso das obras imortais, com

155

The Human use of human beings, pp. 60

156 Ibidem, pp. 126 157

Aristóteles, Metafísica, Livro I, 1

158

Ensaio sobre o entendimento humano, L. II, C. X, 9

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verdades que acabam por ficar fora do tempo actual. Para Lévy, a memória colectiva e dinâmica é a solução para os factos transmitidos ao longo das gerações que perdem valor real com o tempo. Lévy segue aqui algo já referido por Wiener, a informação como algo em avanço perpétuo – “não há linha Maginot do cérebro”160, afirma. Para Borgmann, este fluxo ou a «noosfera» de Lévy, levanta problemas, nomeadamente o da autoridade, algo que se desvanece num suporte com características infinitas. Sendo um espaço de expansão sem fim, não existe o princípio de dominação, já que não há espaço para a autoridade, perdendo-se a força centrípeta161 e sentido unívoco. A escrita corre o risco de cair num certo lirismo, onde, em alternativas infinitas, o rumo narrativo perde- se em escolhas aleatórias, sem comprometimento. Um problema que Merleau-Ponty apontou antes, referindo-se à elaboração própria do cinema, onde os criadores terão sempre a possibilidade de encontrar «conjuntos novos162», pois cada peça tem sempre um elemento de relação. Também Lucien Sfez caracteriza a informação desterritorializada como um espaço que se torna infinito e onde a genealogia se perde, por desaparecer o espaço da legalidade, que outrora confirmava a autoridade e a diferenciação163. A memória perder ligação ao concreto é inevitável, quando se despersonaliza, perdendo qualidades subjectivas, tornando-se num item permutável e comunicável. Distante da memória biográfica de Proust, o pessoal deve se tornar em itens exteriores passíveis de processamento colectivo, como defende Lévy. Também esta exteriorização acarreta problemas. A adesão à descontextualização fluída proposta por Lévy leva à reflexão sobre o problema das memórias externas em Fedro e do diálogo entre Theuth e Tamos, rei do Egipto. Nesta obra, Theuth tenta persuadir dos benefícios da escrita para a sabedoria, mas o rei argumenta que “essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício de memória, porque, confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças ao esforço próprio, que obterão as recordações”164. Este texto de Platão é recuperado por vários pensadores da tecnologia, quer Nicholas Carr165, reflectindo sobre a perda de memória que a internet provoca nos seus utilizadores, quer Borgmann166, que evoca a escrita como des-situante, quer Neil Postman167, onde o

160

The Human use of human beings, pp. 122

161

Holding on to Reality, Pp. 210C. XV

162

Palestras, C. VI

163 Lucien Sfez, Crítica da Comunicação, pp. 116 164

Fedro 274d – 275b

165

The shallows, C. 9

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problema da escrita é o de dar forma ao pensamento. É um tema que na era da internet, ganha destaque, como se verifica no estudo de Betsy Sparrow168, que conclui que é a procura de memórias e não o conhecimento a actividade cognitiva mais frequente no sujeito. O carácter de respostas já dadas pelo suporte internet torna o conhecimento numa técnica de busca e não numa reflexão interior, como caracteriza Borgmann, o utilizador informático é aquele que “aprende a aprender”, que “nada sabe”, apenas pretende “alcançar informação e seu armazém”169. Tal problema nunca se colocou, contudo, numa cultura de memórias externas como a do livro e bibliotecas, chegando autores a colocar ambas no mesmo plano: “Estamos a exteriorizar a memória, como já fizemos com os livros. Estamos a criar uma infra-estrutura do sentido”170. O livro é

fruto de uma leitura prolongada num ambiente neutro, contrariamente, a vivência é num local de actividade sem leitura, numa clássica dicotomia entre teoria e prática. Não se lê ao mesmo tempo que se vive (excepção das leituras funcionais como os mapas), mas a co-existência de objectos portáteis informacionais171 abre caminhos para a comparação não entre memória interna e percepção, mas entre memória externa e percepção. A semântica perde terreno quando está disponível um sistema de buscas, dentro de um arquivismo, acessível instantaneamente por um motor de busca. Se a memória reside em meios artificiais que acontecerá à retenção? Se, para Locke, a retenção cria as ideias mais complexas, com o acesso à memória externa evita-se a retenção individual. Este paradigma leva a um conceito de memória como presente e consciente que se esbate com o funcionamento orgânico da mesma, conforme estudado por António Damásio172. O neurocientista concebe um espaço próprio para as memórias naturais fora da contemplação directa, da atenção e da tirania das reacções imediatas, em «off-line» num tempo suspenso, para que possam, naturalmente e por si, manipular os seus dados173. Os meios de arquivo artificiais externos invalidam memórias deste tipo, por não permitirem estados de não-consciência174substituídos por um princípio da edição/processamento do conhecimento.

167

Tecnopólio – A rendição da cultura à tecnologia, C. 1.

168

Revista Science, vol. 333, 776, 2011

169 Ibidem, pp. 206, C. XV 170

David Weinberger, Everything is Miscellaneous, c.VIII

171

Os Cyborgs, segundo Sherry Turkle

172 O Livro da Consciência, 90-91 173

Ibidem, pp. 355

174

Ap Dijksternhuis, “think different: the merits of unconscious thought in preference development and

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