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Um giro pelo mundo no panorama regulatório: países que apresentam restrições

Capítulo 3: Publicidade e outras ações de marketing infantil: a criança

3.4 Um giro pelo mundo no panorama regulatório: países que apresentam restrições

Em termos gerais, muito já se evoluiu quanto ao respeito ao consumidor no momento da criação de uma campanha publicitária. Na primeira metade do século XX, o pensamento da época permitia que a publicidade fosse uma mentira consentida, portanto legalizada, como ilustrado pelo escritor britânico H. G. Wells (apud MARSHALL, 2002, p. 32). Com o surgimento de regulação e pressão social relacionadas à publicidade, a proteção ao indivíduo aumentou. Regulamentações e autorregulamentações sobre a atividade variam de país para país, de acordo com as características nacionais, principalmente com relação à cultura.

Quando o assunto é publicidade infantil as diferenças se acentuam. Como será visto a seguir, diversos países adotam medidas diferentes quanto ao tema.

Uma das primeiras resoluções sobre o assunto surgiu na Europa, quando em 1989, foi estabelecida a Diretiva Europeia sobre a Televisão sem Fronteiras, pelo Parlamento Europeu. Ainda que antes de sua implementação houvesse outras leis e autorregulamentações em vigor, sua entrada gerou uma mudança significativa no cenário, constituindo, atualmente, o principal instrumento da política audiovisual da União Europeia. Seu teor impõe diversas regras à publicidade televisiva, dentre elas a de proteção ao público infantil. Assim, no artigo 11 da diretiva, informa-se que programas infantis com duração menor que trinta (30) minutos não devem ser interrompidos para a transmissão de anúncios. Caso o programa seja mais longo, a pausa para os comerciais deverá ser feita após 45 minutos de transmissão. No artigo 16, aponta-se que os anúncios televisivos não devem causar detrimento físico ou moral a menores, assim como devem contribuir para sua proteção de quatro formas: não deve estimulá-los diretamente a comprar um produto ou serviço, ao explorar sua inexperiência ou credulidade; não deve encorajá-los a persuadir seus pais ou terceiros a comprar os bens ou serviços anunciados; não deve explorar a confiança que os menores depositam em seus pais, professores ou outras pessoas; e não deve mostrá-los em situações de perigo sem razão para tal (DIRETIVA, 1989).

Em dezembro de 2007, a diretiva foi revisada. O artigo 11, por exemplo, passou a permitir a interrupção de programa infantil para publicidade uma vez a cada 30 minutos, no mínimo. Caso a duração do programa seja de até 30 minutos, permanece o anteriormente disposto: a transmissão não deve ser interrompida. O artigo 16 foi revogado. Em um novo capítulo, a diretiva assumiu o compromisso de entregar ao

Parlamento Europeu, ao Conselho e ao Comitê Económico e Social Europeu um relatório sobre sua aplicação, que deve ser feito de três em três anos, a partir de dezembro de 2011. Neste relatório, se for necessário, serão formuladas propostas destinadas à melhoria da Diretiva. O relatório também deve avaliar a publicidade que acompanha programas infantis ou esteja neles incluída para analisar se está proporcionando o nível de proteção exigido (DIRETIVA, 2007).

Em outubro de 2011 e abril de 2012, o Parlamento Europeu rejeitou formalmente a proibição de publicidade para crianças. Para o comissário de Saúde e Proteção ao Consumidor, as restrições não são necessárias pois a indústria está comprometida com a publicidade responsável (CONAR, 2012).

No entanto, alguns países adotaram medidas mais rígidas. Por exemplo, desde 1993, a Alemanha proíbe que programas infantis sejam interrompidos para exibição de comerciais. Após a adoção desta medida, o número de programas infantis diminuiu, pois os anunciantes não podiam mais financiá-los. No restante da programação, a publicidade é permitida entre os programas ou quando o bloco de um programa tem mais de 45 minutos. No país, também há um órgão de autodisciplina do setor publicitário, que, na intenção de estar junto às normas publicitárias internacionais, estabeleceu que o anúncio não deve se dirigir diretamente à criança para solicitar o consumo (seja dela própria ou de terceiros), assim como não deve abusar do uso de personagens que as crianças e jovens confiam (CAPPARELLI, 2013).

A proibição total da publicidade infantil, segundo levantamento feito pela ABA e pelo CONAR, só ocorre na província de Quebec, no Canadá. O banimento já está em vigor há mais de trinta (30) décadas no local. Na Suécia, a publicidade infantil também está proibida, porém a medida só vale para a TV aberta. Assim, continua a ser veiculada nas demais mídias e na TV fechada. No Chile, estão proibidos os anúncios de alimentos HFSS (“high in fat, sugar and salt”, ou ricos em gordura, açúcar e sal) dirigidos a menores de quatorze (14) anos. No Peru, foi promulgada recentemente uma lei que veda a publicidade e a distribuição de brindes incentivando o consumo de alimentos HFSS. Esta lei também limita o uso de testemunhais e personagens com apelo infantil para este fim. Na Grécia, anúncios de brinquedos só podem ser veiculados na TV aberta em horário adulto. Alguns países não possuem legislação específica sobre publicidade infantil, assim como não abordam o tema em seus códigos de autorregulamentação, como China e Índia (ABA; CONAR, 2013).

Desde julho de 2014, o México proíbe a veiculação de anúncios de chocolate, refrigerantes e lanches em cinemas que estejam transmitindo filmes para crianças e durante os horários de maior audiência infantil na televisão. Estes seriam das 14h30 às 19h30, de segunda a sexta-feira, e das 7h às 19h30, aos sábados e domingos. A medida foi estabelecida na tentativa de conter a obesidade infantil no país, que ocupa o primeiro lugar no ranking da Organização Mundial de Saúde, seguido pelos Estados Unidos (CRIANÇA, 2014). De acordo com o canal televisivo CNN México, serão removidas do ar cerca de 55 das 139 horas de programação com esse conteúdo, ou seja, cerca de 10.233 anúncios publicitários (BARRETO, 2014).

De acordo com estudo realizado pelo “Harvard Law and International Development Society”, em parceria com o Instituto Alana e a ANDI, em quatro países (Canadá, França, Reino Unido e Austrália) e na União Europeia como um todo, a autorregulação só é eficiente na proteção de crianças quando há legislação sobre o tema. A pesquisa observou a publicidade dirigida às crianças e seu esforço no combate à obesidade infantil. Ao final, os pesquisadores concluíram que a existência de um regime legal subjacente que dê respaldo à fiscalização e ao cumprimento das regras é fundamental para o sucesso da autorregulação. O estudo também apontou a importância “de definições e regras claras, para não gerar ambiguidades que causem sobreposições de regras ou que possibilitem ao mercado criar seus critérios de acordo com interesses privados” (ALANA, 2013).

Independentemente de como é permitido fazer publicidade em cada nação, com o mundo cada vez mais globalizado, multinacionais tentam minimizar seus custos em publicidade. Para tanto, buscam criar campanhas que possam ser livremente transmitidas em vários países em que atuam, sem causar estranheza aos consumidores. Para produzir uma comunicação com estas características, é necessário que a agência publicitária e a empresa conheçam tanto as características legais quanto culturais de cada país.

Além do estabelecimento de regulações, outra forma de criar barreiras para o direcionamento de ações mercadológicas a crianças é a partir de compromissos internacionais entre empresas. Sabendo de toda a discussão a respeito da publicidade infantil, muitos anunciantes já se juntaram para anunciar mudanças nas suas estratégias de marketing para este público.

Uma das primeiras mudanças foi o termo de compromisso europeu EU Pledge, assinado em dezembro de 2007 por vinte e duas (22) empresas líderes em alimentos e bebidas na Europa. Com o objetivo de tornar mais responsável a comunicação entre

empresas e crianças, assumiu dois compromissos principais. O primeiro é de não anunciar alimentos e bebidas para indivíduos menores de doze (12) anos, em televisão, internet e impressos, exceto para produtos que tragam benefícios nutricionais à criança, segundo evidências científicas. O segundo é de não fazer nenhum tipo de comunicação relacionada aos produtos em escolas primárias, exceto quando for para propósitos educacionais (EU PLEDGE, 2014). Esta exceção, no entanto, parece contradizer a ideia de relação responsável proposta pelas empresas. Afinal, a presença destas marcas em escolas primárias, ainda que seja com “fins educacionais”, continuará a promover publicitariamente os produtos para o público menor de doze (12) anos. As empresas signatárias são responsáveis por mais de 80% dos gastos em publicidade de alimentos e bebidas na União Europeia, ou seja, são também as maiores anunciantes da categoria. Entre elas, estão Nestlé, Danone, Coca-Cola e Burger King (Op. Cit., 2014).

A Coca-Cola voltou a propor mudanças em junho de 2013, a partir de uma nova política internacional de marketing responsável para crianças. Desta data em diante, comprometeu-se a não mais anunciar em canais (televisão, rádio, revistas, internet, pontos de venda) que tenham audiência infantil maior que 35% ou direcionados para crianças, assim como proibiu brindes desenhados exclusivamente para engajar crianças. Também se comprometeu a não mostrar crianças consumindo seus produtos sem a presença de um adulto, além de todos os modelos que aparecerem em fotos deverão ter e aparentar ter mais de doze (12) anos de idade. A empresa também mencionou que a utilização de personagens só deve ocorrer quando tiver relevância para todo o público, independentemente de idade, sexo ou cultura; e que as escolas não são zonas comerciais, portanto as mensagens nestes locais deverão ser de cunho educacional (COCA-COLA BRASIL, 2013). Se comparadas às regras assumidas no Brasil, mencionadas no

subcapítulo anterior47, nota-se que as internacionais são mais rígidas.

Em agosto de 2013, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apresentou, junto com a Global Reporting Initiative (GRI), uma ferramenta para as empresas latino-americanas utilizarem em seus relatórios de sustentabilidade como forma de medir o impacto das mesmas sobre a infância. O objetivo é criar uma consciência empresarial sobre os impactos que suas atividades têm sobre os direitos da criança, pois poucas são as empresas que incluem estas informações nos relatórios. Segundo a diretora da GRI na América Latina, Andrea Pradilla, "muitos clientes e consumidores se sentiriam

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contrariados se soubessem que alguns dos bens que consumiram foram fabricados às custas do bem-estar de uma criança". Para Pradilla, esta ferramenta também pode ajudar "a proteger às crianças e a transformar as empresas". Na ocasião, o especialista em empresas e direitos de infância do Unicef para a América Latina, Marcelo Ber, também expressou seu desejo por esta mudança e convidou “as empresas a tomar [sic] consciência do impacto nas crianças de seus produtos, comunicações e políticas com provedores e empregados, adotar medidas a respeito e atuar com transparência neste âmbito” (EFE, 2014). Ou seja, ainda que a atenção maior esteja sobre o trabalho infantil, outras esferas dos direitos da criança, como sua exposição à comunicação, também ganham foco com esta ferramenta.

Em setembro de 2014, a World Federation of Advertisers (Federação Mundial de Anunciantes) anunciou um compromisso estabelecido pelos presidentes das empresas líderes globais nas vendas de alimentos e bebidas não-alcóolicas, membros da International Food & Beverage Alliance (IFBA - Aliança Internacional de Alimentos & Bebidas), com o marketing infantil. A entidade enviou uma carta à direção da Organização Mundial de Saúde com os detalhes das medidas a serem adotadas nos próximos anos. Entre os compromissos assumidos estão a publicação de informações nutricionais nas embalagens, pontos de vendas e outros canais, e a expansão de algumas políticas globais assumidas em 2009 pela IFBA. Isto significa que as empresas só podem anunciar produtos que tenham o critério “better for you” (“mais saudável para você”, em tradução livre), e que devem evitar marketing de todos os produtos para indivíduos menores de doze (12) anos de idade (MEIO&MENSAGEM, 2014a).

Este critério (“better for you”) identifica os produtos com perfil nutricional mais saudável, comprovado por estudos científicos, e/ou que sejam participantes de guias de dieta nacional e internacional para crianças menores de doze (12) anos. Entre eles, estão os produtos enriquecidos com vitaminas, com baixo teor de sal e açúcar e ricos em fibras. Caso os produtos tenham recebido esta classificação, estão permitidos a direcionar técnicas de marketing, como uso de personagens licenciados e celebridades, para indivíduos menores de doze (12) anos (IFBA, 2014). Desta maneira, o compromisso assumido por estas empresas também apresenta exceções que permitem a continuação do direcionamento de campanhas publicitárias às crianças.

Entre os associados da IFBA, estão McDonald’s, PepsiCo, Coca-Cola e Nestlé. Para o diretor da World Federation of Advertisers, Stephan Loerke, “este reforço das políticas globais da IFBA demonstra o grau de extensão em que os membros da entidade

estão assumindo suas responsabilidades no que diz respeito ao marketing para crianças”. Os novos padrões de marketing para crianças devem entrar em vigor até o final de 2016, passando a constituir o critério mínimo global para todas as empresas associadas à IFBA (MEIO&MENSAGEM, 2014a).

Ao se comparar às normas estrangeiras com as brasileiras, percebe-se que no exterior há mais restrições sobre o tema. Enquanto no Brasil, muitos proclamam pela liberdade de expressão e veem a regulação da área como um retrocesso, diversos países já tem esta discussão avançada.