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Protagonismo infantil frente à cultura de consumo e seus desdobramentos na

Capítulo 2: A criança como influenciadora de compra: relações entre

2.4 Protagonismo infantil frente à cultura de consumo e seus desdobramentos na

Até o momento, observou-se como a participação das crianças na vida familiar e social cresceu nas últimas décadas, fortalecendo o comportamento denominado como “protagonismo infantil”. As práticas sociais atuais permitiram (e ainda permitem) o reconhecimento da criança como ser participativo do mundo adulto. Na prática, várias famílias estão deixando o filho participar das execuções de tarefas e decisões, dividindo- as com os adultos.

Como visto neste capítulo, a opinião infantil também passou a ser considerada em itens a serem consumidos por todos os integrantes da família. De acordo com o processo decisório em questão, a possibilidade de contribuição infantil varia, pois diferentes assuntos envolvem diferentes percepções entre pais e filhos. Dependendo do produto ou serviço em questão, caso seja algum em que a criança tenha “autoridade”, isto é, seja

considerada “expert”, sua contribuição na escolha será muito maior19.

No primeiro capítulo, explicou-se que o protagonismo infantil é um dos propiciadores dessa abertura familiar para as crianças se expressarem. O fortalecimento deste processo social permitiu que a criança tivesse voz ativa dentro de casa, mostrando seus interesses e opiniões aos pais e demais membros da família. Como consequência, pode-se afirmar que o protagonismo infantil pode ser, ainda que sem intenção, um dos principais aceleradores da influência das crianças no cotidiano das famílias.

Esta influência ocorre em diversas tarefas e decisões do dia-a-dia, incluindo as referentes ao próprio consumo. Afinal, o processo de escolha de produtos a serem consumidos dentro de casa também pode ser entendido pelos pais como parte do papel de protagonismo da criança (visto como exclusivamente sadio para alguns). Ainda que este não tenha sido o propósito do protagonismo infantil, pode-se sugerir que este comportamento favoreceu a assunção da criança para o papel de porta-voz de diversas marcas e produtos dentro de casa.

Talvez esse papel de protagonista assumido pela criança permita que ela reforce seu papel de especialista em determinados produtos e vice-versa. Por conseguinte, reforçaria-se seu papel de decisora/influenciadora de compra.

Pesquisas como as mostradas no subcapítulo anterior apontam como os pais têm escutado mais seus filhos e acolhido suas sugestões de compras. Resultados como estes

demonstram uma tendência mundial em valorizar mais a opinião das crianças com relação ao que comprar. Para a gerente de pesquisa do canal Nickelodeon, Adriana Pascale, a explicação está no novo modelo familiar, pois “as famílias mudaram para um modelo menos hierárquico, onde todos têm algo a dizer. No modelo familiar antigo, havia certa ditadura contra as atitudes democráticas familiares”. Pascale ainda complementa que, antes, “os filhos, em sua maioria, estavam sob controle. Os pais tentavam compreender os filhos, enquanto hoje, eles os compreendem genuinamente” (REVISTA PONTOCOM, 2011).

Pode-se dizer que a explicação de Pascale também está embasada, ainda que não explicitamente, no conceito de protagonismo infantil. Isso porque o modelo menos hierárquico familiar e o crescimento do papel infantil são duas de suas características. Ainda que outros fatores também tenham influência nestas duas mudanças comportamentais, o protagonismo infantil parece ser um dos que apresentam maior responsabilidade sobre elas.

Em outras palavras, este novo modelo familiar, que projetou o protagonismo infantil, pode ter incentivado não só a relação da criança como consumidora mas também como influenciadora de compra. Portanto, a partir do que foi exposto até o momento, é possível afirmar que o protagonismo infantil pode ser um dos aliados do consumismo na sociedade atual – ainda que também não tenha sido incentivado para este propósito.

Para relacionar o protagonismo infantil com o aumento do interesse pelo consumo, aponta-se, aqui, três possibilidades. Elas seriam possíveis causas em que o novo posicionamento infantil, a partir da ótica do protagonismo, poderia estimular o papel da criança como consumidora.

A primeira remete a um dos autores utilizados no primeiro capítulo para explicar protagonismo infantil, Lev Vygotsky. Segundo o cientista russo, o aprendizado humano ocorre pelo ambiente social. No caso da criança, seu intelecto se desenvolveria a partir da sua interação com os outros à sua volta, ou seja, a característica essencial do aprendizado seria a de despertar “vários processos de desenvolvimento internamente, os quais funcionam, apenas, quando a criança interage em seu ambiente de convívio" (VYGOTSKY, 2008, p. 4). Assim, a formação de sua personalidade ocorreria em meio às práticas culturais.

Conectando este ponto à cultura do consumo, é possível inferir que, inserida em uma sociedade que valoriza o “ter”, a criança pode absorver esse valor para sua personalidade e se tornar também consumista – característica que pode se manter na fase

adulta. Assim, aprenderia dois comportamentos ao mesmo tempo: de expor suas opiniões e formas de pensar, e de ser consumista.

Vale ressaltar que o grau de intensidade desta característica pode variar de acordo com os hábitos e costumes da família, além de sua classe social. Como visto, para

Vygotsky, a cultura dá forma ao psicológico20, isto é, é um dos guias de como o indivíduo

deve pensar. Logo, pessoas de diferentes culturas têm diferentes perfis psicológicos e, por conseguinte, formas diferentes de lidar com os mais variados temas, entre eles o consumo.

A segunda relação que pode ser feita entre o protagonismo infantil e o consumo é quanto ao redirecionamento da publicidade mencionado ao longo deste capítulo. Acredita-se aqui que ele ocorre tanto porque a criança é consumidora, quanto porque o marketing almeja nela este perfil. Ou seja, a criança pode ter se interessado pelo consumo devido às mudanças estruturais familiares, que a projetam como protagonista, assim como pelo estímulo dos comerciais que lhe direcionam mensagens “exclusivas”, instigando nelas o desejo de serem reconhecidas como “especialistas” sobre determinados produtos. Este ponto remete a um posicionamento antiético das empresas de comunicação, que fere com a normatização referente a consumo na infância, como o Código de Defesa do Consumidor, por exemplo. Afinal, se, de fato, os anunciantes vislumbram a criança como porta-voz de sua marca dentro de casa mesmo sabendo que ela ainda não tem seu sistema cognitivo completamente desenvolvido para facilmente resistir a tais estímulos, tem-se aí uma nítida intenção de exploração da vulnerabilidade deste público. O estímulo ao consumo em quem reconhecidamente tem limitações cognitivas para lhe impor freios pode implicar em algum tipo de dano. Como há diversos estudos a respeito das possíveis consequências que a publicidade pode provocar na personalidade da criança e em seu

cotidiano21, não há como as empresas negarem este desconhecimento.

Além disso, tem-se o fato de que a criança gosta muito de receber atenção, sentir- se o centro dos olhares. Quando a publicidade se dirige a ela, esta tende a se sentir ainda mais especial, o que reforçaria seu interesse nesse estímulo. Isto porque, a publicidade, ao utilizar elementos visuais que atraem a criança e linguagem de fácil entendimento, parece sugerir a este público que está ali para “lhe dar atenção”. Se a mensagem mercadológica também lhe der conhecimento para opinar sobre o consumo dentro de

20 Vide página 24. 21 Vide páginas 69 a 75.

casa, o poder de sedução desta linguagem se torna ainda maior sob este público carente de mimos.

A terceira relação proposta por esta pesquisa indica que protagonismo infantil e consumo também se estimulam mutuamente pelo fato de que a publicidade busca a criança tanto quanto a criança a valoriza. Isto é, o interesse é mútuo: da mesma forma que a publicidade quer atingir o público infantil e fazê-lo consumir, este encontra nos comerciais um senso de autoridade infantil que lhe apodera para opinar em casa. Ao assisti-los, a criança fica sabendo dos últimos lançamentos das mais variadas categorias de produtos e serviços e poderia buscar manter-se informada, ganhando bagagem para influenciar seus pais no que comprar. Como exemplos de linguagem publicitária que pode incentivar a autoridade e o protagonismo infantil estão a colocação de atores mirins em destaque na peça, assim como o apelo direto realizado por estes. Por esta lógica, as crianças desejariam se informar sobre os mais variados produtos e, para tanto, estariam atentas aos comerciais.

Da mesma forma que foi possível relacionar o protagonismo infantil ao aumento do consumo infantil, também é possível associá-lo, portanto, à própria capacidade de influência das crianças sobre as decisões de compras familiares, ou seja, em relação a produtos que não são para seu uso exclusivo. Isto porque os dois comportamentos são resultado das mudanças na sociedade que projetaram a criança para o mundo.

Posto isso, cabe algumas questões. Nessa esfera de consumo, ser protagonista dentro do lar poderia trazer algum prejuízo à criança? Estaria a criança sendo vislumbrada pela publicidade para utilizar seu potencial de protagonismo a favor do mercado? A publicidade, sabendo da existência deste comportamento, estaria se aproveitando da ingenuidade da criança para atingir os demais membros da casa? E, por fim, o protagonismo infantil, fenômeno benéfico tanto para a criança quanto para a sociedade, estaria de certa forma favorecendo o mercado de consumo infantil?

Sugere-se, aqui, que, a princípio, a resposta seja positiva. Como o mercado sabe que o público infantil tem um grande potencial como consumidor e influenciador de compra, realiza diversos estudos para conhecê-lo melhor. Assim, poderia aproveitar as características defendidas pelo protagonismo infantil, como maior participação da criança em diversas esferas da sociedade, para insuflar seu ego e atingir os bolsos dos pais.

A linguagem infantil está presente em publicidades de diversas categorias de produtos e serviços, sejam infantis ou para outras faixas etárias. Dentre as possíveis causas para este redirecionamento publicitário, ou seja, para um maior número de

anúncios que antes se dirigiam a adultos e agora se voltam às crianças, fica a dúvida se isso não ocorreria justamente para “se aproveitar” da influência que a criança tem dentro de casa, favorecida pelas mudanças na sociedade e a filosofia do protagonismo infantil.

O protagonismo infantil em si tem diversos pontos positivos, como o estreitamento da relação entre pais e filhos, com mais autenticidade e democracia, e maior respeito às opiniões da criança. Colocar a criança em foco dentro da família e da sociedade permitiu que ela se sentisse segura para expor seus sentimentos e, por conseguinte, desenvolver-se como uma melhor cidadã e indivíduo criativo.

Porém, nem todas as consequências são benéficas. Em épocas passadas muitos indivíduos tiveram uma infância reprimida, o que os leva a buscar educar seus filhos de maneira diferente, dando voz às crianças, por exemplo. No entanto, com o decorrer dos anos, percebeu-se uma certa inexperiência dos pais em aplicar uma educação diferente da que haviam recebido. Seu embaraço em impor limites, por exemplo, permitiu – e ainda permite – que a figura infantil muitas vezes se torne a mais autoritária dentro da família (ZAGURY, 2001, p. 16). A figura infantil passaria de protagonista a ditadora, termo muitas vezes utilizados por educadores para se referir às crianças que literalmente “mandam” em casa.

Um curso online oferecido pelo Ministério do Meio Ambiente, intitulado “Crianças e o Consumo sustentável”, aborda a dificuldade recente em educar os filhos, principalmente com relação ao constante apelo ao consumo. Em um dos textos apresentados, menciona a importância de se dizer “não” aos pequenos.

Ao contrário do que a sociedade consumista veicula, permitir tudo à criança distorce sua noção de realidade, orientação e proteção. Com isso, ela não aprende a suportar frustrações, controlar impulsos e evitar rejeições do meio social por eventuais comportamentos inadequados.

Por isso é importante que você no papel de pai/mãe, seja firme ao negar algo a seu filho que você acha que não irá contribuir de forma positiva para a formação dele. É importante para ele lidar com frustrações e obstáculos para que possa se desenvolver de forma independente quando adulto. (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2014)

Pelo trecho acima, é possível perceber como a imposição de limites é algo essencial para que a relação entre o protagonismo infantil e o consumo não seja tão prejudicial à criança. A criança pode ajudar nas decisões familiares e ter suas opiniões consideradas, contanto que não queira ter todas as suas vontades atendidas.

Se o filho não recebe limites – isto é, tem suas atitudes positivas incentivadas e as negativas criticadas – e ainda gosta de consumir, os problemas podem ser ainda maiores. Entre as possíveis consequências, tende a rejeitar novos limites a seus desejos e pode se

comportar com descontrole emocional, histeria e ataques de raiva até conseguir o que deseja (ZAGURY, 2001, p. 37). Para ele, os pais têm que escutá-lo e realizar suas vontades, afinal é o que dizem muitos comerciais e o comportamento egocêntrico que pode ocorrer na infância.

No Portal Meu Bolso Feliz, uma iniciativa do SPC Brasil, há uma seção direcionada aos adultos sobre como educar financeiramente seus filhos. Em uma delas, o portal aborda a influência exercida pela publicidade sob o público infantil, onde menciona que “os comerciais podem provocar um comportamento muito consumista, levando seu filho a querer comprar tudo o que viu no anúncio da TV” (MEU BOLSO FELIZ, 2014a). Em determinado trecho do texto, o portal também explica que

muitas vezes, os pais se sentem culpados por ficarem muito tempo longe dos filhos, mesmo que estejam trabalhando. E passam a dar tudo o que eles querem. Isso é muito perigoso, porque estimula a criança a achar que pode obter tudo o que deseja a qualquer momento. Para ajudar seu filho e dar a ele uma boa educação financeira, não compre tudo o que ele quer, mesmo que você esteja com dinheiro. Essa atitude pode dar a seu filho a sensação de que é sempre fácil conseguir as coisas. Ele não vai se esforçar e não vai aprender a usar o dinheiro de maneira saudável. (MEU BOLSO FELIZ, 2014a)

A importância da educação financeira também é mencionada pelos doutores em Marketing e especialistas em Comportamento do Consumidor Blackwell, Miniard e Engel (2009, p. 405). Segundo eles, “muito do comportamento de consumo é aprendido durante a infância. A comunicação da família sobre compras e comportamento de consumo é a chave do processo de socialização do consumo da criança”. Além disso, como a família “é a mais importante influência nas atitudes e comportamento dos indivíduos” (Op. Cit., p. 408), aprender a se relacionar com o consumo dentro de casa torna-se de grande importância para o desenvolvimento da criança.

Para o professor de Economia da PUC Londrina, Márcio Massaro, uma forma de evitar as chantagens da criança é ensiná-la a poupar dinheiro em vez de consumir imediatamente (BERTOLDI, 2014).

Caso continuem a ceder aos mais diversos desejos supérfluos do filho ininterruptamente, talvez surja outra consequência: a permissividade em excesso dada pelos pais poderia estimular justamente o consumismo excessivo infantil.