• Nenhum resultado encontrado

Globalização e identidades culturais locais

3. HEGEMONIA CULTURAL E CULTURA LOCAL

3.1 Globalização e identidades culturais locais

Para Shohat e Stam (2006), esta relação de um cinema dominante e dominado possui sua origem no projeto imperialista, no qual nações europeias exerciam um controle político, econômico, social e cultural sobre países africanos, asiáticos e latino-americanos. O apogeu imperialista, final do século XIX e início do século XX, coincide com os primórdios do cinema mudo e, não por acaso, os principais produtores cinematográficos também eram das nações líderes, que usaram o cinema, entre outras artes, como um modo de enaltecer o colonialismo e a supremacia europeia em detrimento das tradições, costumes e crenças locais dos países colonizados. "O cinema [...] adequou-se perfeitamente à função de retransmissor das narrativas das nações e dos impérios, por meio de projeções" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 144).

61 Em termos estéticos, os valores da cultura dominante deviam ser encarecidos em detrimento das diferenças e particularidades da cultura local. Assim, algumas características próprias dos filmes ocidentais tornam-se hegemônicas em países dominados, como afirma Ella Shohat e Robert Stam:

[...] o início do cinema coincidiu não apenas com o auge do imperialismo, mas também com os paroxismos agonizantes do projeto do romance realista, do teatro naturalista e suas figurações obsessivamente miméticas. Apesar de sua fascinação com as novas tecnologias, o cinema dominante herdou as aspirações miméticas que os impressionistas haviam abandonado na pintura (SHOHAT; STAM, 2006, p. 410). Após a Segunda Guerra, com o continente europeu arrasado economicamente e estruturalmente, com o fortalecimento da Guerra Fria, que acirra a bipolarização do mundo entre comunistas e capitalistas, e quando diversos países colonizados declaram independência política em relação aos Estados-Nações europeus, Os Estados Unidos surgem como a grande nova potência mundial.

Com uma economia fortalecida e crescente e uma indústria cultural consolidada, os Estados Unidos começam uma nova etapa de colonialismo cultural. "Via-se uma cultura global como sendo formada através da dominação econômica e política dos Estados Unidos, que estendiam sua cultura hegemônica a todas as regiões do mundo" (FEATHERSTONE, 1997, p. 124).

Dissemina-se, então, ideias modernistas de uma cultura globalizada e homogeneizada, na qual os valores americanos seriam tidos como um padrão universal, a ser seguido em qualquer lugar do mundo, por qualquer pessoa, sem levar em conta questões e particularidades locais.

A teoria da modernização pôs esse modelo em movimento, partindo da suposição de que, à medida que cada nação não-ocidental se modernizasse, ela subiria na hierarquia e reproduziria ou absorveria a cultura americana, a ponto de cada localidade acabar manifestando os ideias culturais, as imagens e os artefatos materiais do estilo americano de vida (FEATHERSTONE, 1997, p. 124).

O cinema, junto com a música, foi a forma artística mais influente neste sentido. A partir de um controle estético já sedimentado em relação ao que seria um 'bom filme' e utilizando-se de uma forte rede de distribuição, o cinema hollywoodiano estabelece uma dominação comercial em relação a qualquer outra produção cinematográfica. Trata-se do que Mike Featherstone chama de Americanização:

Dessa perspectiva, o estilo americano de vida, com seu individualismo predador e sua crença no progresso, manifestada em personagens dos filmes de Hollywood, tais como Pato Donald, Super Homem e Rambo, ou corporificada na vida de estrelas como John Wayne, era encarada como uma força homogeneizadora corrosiva, como

62 uma ameaça à integridade de todas as particularidades (FEATHERSTONE, 1997, p. 124).

Política e culturalmente, esta supremacia e influência exercida pelos estúdios hollywoodianos encontra semelhanças com a hegemonia entre classes estudada por Raymond Williams. Para o autor, em toda produção cultural de qualquer sociedade e de qualquer período, existem formas de expressão dominantes formadas por “um sistema central de práticas, significados e valores que podemos chamar especificamente de dominante e eficaz” (2011, p.53).

A produção cultural torna-se então o principal veículo no qual será confirmada a dominação de uma classe em relação à outra, ou, no caso aqui estudado, de uma cultura nacional (ou regional) em relação a outras. Porém, esta autoridade depende da legitimação do controle, que se dá a partir de uma universalização de sentimentos, práticas, pensamentos e significados pertencentes ao grupo dominante em relação ao todo. Instaura-se, então, o que o Willians (2011) denomina tradição, que, no cinema, tem como principal representante as produções originárias dos estúdios de Hollywood e, no cinema de animação do século XX, os filmes de Disney, nome que, segundo Wells (2002), na imaginação do público e na cultura universal, define tematicamente e esteticamente a arte da animação por quase um século.

Originalmente, o conceito de hegemonia de Williams (2011) se refere ao modo como uma classe exerce um controle ideológico e social sobre outra. Esta relação não é de forma alguma estática, mas sim dinâmica e está constantemente em transformação, sendo pautada por conflitos, mudanças e adequações entre a cultura dominante e o que o autor denomina formas residuais e emergentes.

O imperialismo cultural cria um fluxo unilateral de bens culturais do centro para as periferias, o que gera uma reação por parte da população marginalizada, ao ver o enfraquecimento de sua cultura regional, resultando na "necessidade de preservar a integridade de suas próprias tradições nacionais e [...] promover reações contrárias ou desglobalizantes" (FEATHERSTONE, 1997, p. 156).

Esta reação gera um entrechoque de culturas que pode criar um delineamento de fronteiras que vai de encontro ao projeto unificador, ordenador e integrador da modernidade, sendo a valorização das diferenças, dos aspectos locais e vernaculares uma das principais características do esquema pós-moderno. Pode-se dizer, de acordo com Featherstone (1997, p. 158), que, de certa forma, "a globalização produz o pós-modernismo". Ainda segundo o autor: "A pós-modernidade não deve ser considerada uma nova época, um novo estágio de desenvolvimento a partir da modernidade, mas como percepção dos pressupostos imperfeitos

63 dessa última" (FEATHERSTONE, 1997, p. 125).

Historicamente esta reação se dá após a Segunda Guerra, o que fica muito claro na cinematografia de países antes dominados, como a Índia, Egito, Paquistão etc. "Para o Terceiro Mundo, esta 'contranarração' cinematográfica basicamente começou com o colapso dos impérios europeus no pós-guerra e a emergência dos Estados nacionais independentes do Terceiro Mundo" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 355).

Por mais que o resultado e os produtos dessa reação cultural sejam, basicamente, iguais em qualquer país periférico, os motivos que os originam pode variar de acordo com cada situação sócio-histórica: questões políticas, valores estéticos ou uma busca por oportunidades econômicas. Estas questões são muito particulares em cada situação e não possuem um limite claro.

Por exemplo, em países que recentemente conquistaram a independência, nota-se uma busca por uma identidade em um sentido político. Existe a necessidade de uma 'autorrepresentação', esses países desejam falar por si mesmos, contar a história de um outro ponto de vista, utilizando outros argumentos, que não sejam os da narrativa dominante. Assim, eles "propõem 'contraverdades' e 'contranarrativas' informadas por uma perspectiva anticolonialista, recuperando e reforçando os eventos do passado em um amplo projeto de remapeamento e renomeação" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 358).

Esta luta política e histórica é acompanhada de reações estéticas, "combinando a historiografia revisionada com a inovação formal" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 359), sendo estas duas frentes inseparáveis quando se trata de produtos culturais. Porém, em lugares como o Brasil, que politicamente tiveram sua independência há mais tempo, as principais questões abordadas são mais voltadas para uma reação contra o imperialismo estético e artístico, uma tentativa de fazer cinema, no caso, com uma linguagem própria, longe dos cânones hollywoodianos. Neste sentido, o nosso cinema não é menos politicamente 'guerrilheiro'.

A estética do cinema terceiro-mundista da década de 1960 e 1970 é revelada tanto em termos práticos como em termos teóricos. Os cineastas prezavam muito a reflexão sobre a obra e sobre a situação em que a obra foi executada, adaptando a estética ao contexto de produção e à conjuntura econômica da realização. No Cinema Novo, por exemplo, os diretores construíram 'alegorias do subdesenvolvimento', explorando de forma expressiva a escassez de recursos e transformando as adversidades em pontos positivos para a significação do filme (XAVIER, 1993). Um exemplo é a fotografia de Vidas Secas (1963), feita por Luiz Carlos Barreto, que usa uma exposição total e cria um grande contraste entre as figuras em sombra e o fundo estourado de luz. "Ele transformou a necessidade em virtude

64 cinematográfica" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 371).

Para Shohat e Stam (2006, p. 368), na verdade, este é um fenômeno característico de boa parte da produção fora do eixo:

As circunstâncias difíceis em que os cineastas do Terceiro Mundo trabalham são bastante desconhecidas de seus colegas do Primeiro Mundo. Além dos baixos orçamentos, das taxas de importação sobre materiais e dos custos de produção, eles também se confrontam com mercados mais limitados e menos ricos. Além disso, precisam competir com os filmes estrangeiros luxuosos de orçamentos altos que são 'despejados' sem cerimônias em seus países. Essas diferenças na produção inevitavelmente se refletem tanto na ideologia como na estética dos filmes.

A cinematografia de oposição, não só pela necessidade, mas em termos de atitude, adota estéticas, narrativas e estratégias de linguagem alternativas. Estas, muitas vezes, fogem do realismo, buscando em tradições locais e regionais outras formas de narrativa e representações dos personagens e suas relações. "Muitas fundem tradições paramodernas com estéticas claramente modernizadoras ou pós-modernizadoras, problematizando dicotomias simplistas como tradicional/moderno, realista/modernista, modernista/pós-modernista" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 407).

A estética do periférico, entretanto, não é criada hermeticamente fechada em uma bolha, isolada da influência do que chega do centro ou de outras partes do mundo. “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (BHABHA, 2003, p. 19). Há muito tempo que países de Terceiro Mundo desenvolvem uma cultura própria que une aspectos do local com o que chega de fora.

A dimensão espacial e o relacionamento geográfico entre o centro e a periferia, nos quais as primeiras sociedades multirraciais e multiculturais se encontravam na periferia, e não no centro. A diversidade cultural, o sincretismo e o deslocamento ocorreram inicialmente lá (FEATHERSTONE, 1997. p. 164).

Assim, a periferia tem a habilidade de captar os significados de bens, informações e imagens e transformá-los, ou digeri-los no sentido antropofágico dos modernistas brasileiros, mesclando-os com tradições culturais já arraigadas localmente, criando algo novo. Para alguns, a periferia possui uma certa 'vantagem' cultural, pois "esses artistas historicamente multiculturais [...], trabalham nas 'margens', mas conhecem o 'centro', o que lhes permite desenvolver uma consciência afiada das diferenças linguísticas e culturais" (SHOHAT; STAM, 2006, p. 395-396).

Mas esta hibridização, no sentido posto por Canclini (2008), dá origem a processos que ele chama de desterritorialização e reterritorialização, que, respectivamente, correspondem à

65 “perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas” (CANCLINI, 2008, p. 309). Shohat e Stam (2006) completam: “não são simplesmente operações de adição, mas um espaço de choque e troca entre elementos culturais” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 438), que, apesar de conflituoso, pode ser um ambiente rico culturalmente e socialmente, como afirma Mike Featherstone:

É claro que as coalizões não são espaços livres de conflitos: as alianças podem ser difíceis, o diálogo pode ser doloroso e a polifonia pode se tornar uma cacofonia. Mas a polifonia cultural também pode orquestrar uma relação multifacetada entre aqueles interessados em uma reestruturação mais justa do poder, pode promover uma proliferação mutuamente enriquecedora de discursos emancipatórios, transcendendo uma mera coexistência de vozes para encorajar uma adoção mútua de outras vozes e sotaques (FEATHERSTONE, 1997, p. 452).

Assim, o resultado do pensamento pós-moderno é não encarar o global e o local como instâncias separadas no tempo e no espaço, pois, na atual fase, estes processos estão inseparavelmente ligados:

Com efeito, todos nós estamos no quintal uns dos outros. Assim, uma consequência paradoxal do processo de globalização, a percepção de finitude e da ausência de limites do planeta e da humanidade, não é produzir homogeneidade, e sim familiarizar-nos com a maior diversidade, com a grande amplitude das culturas locais" (FEATHERSTONE, 1997, p. 124).

Como estas localidades se posicionam dentro de um mercado cultural global que ainda é bastante dominado por agentes norte-americanos e europeus? Uma nação ou região, para se impor em um cenário cultural como o atual, deve tornar conhecidos seus símbolos, marcas, construções, paisagens, tradições, personagens, cerimônias, rituais, etc. Faz-se necessário que agentes de outras localidades reconheçam estes indicadores e os associem a um determinado espaço geográfico, que se torna, assim, um lugar simbólico.

Essa consciência de uma cultura local é uma invenção, uma convenção, uma comunidade imaginada, nas palavras de Shohat e Stam (2006, p. 144), uma "unidade fictícia imposta a um conjunto de indivíduos". Este sentido comum de passado, de pertença e familiaridade deve ser imbuído não só em quem enxerga de fora, mas principalmente nas pessoas que fazem parte do lugar simbólico. Este deve possuir um poder emocional suficiente para criar um sentido comunal (FEATHERSTONE, 1997).

Uma cultura local é dinâmica e cambiante, porém ela deve se tornar material, através de construções, obras de arte e especialmente textos impressos, que possam conectar os indivíduos além do tempo e do espaço. Mike Featherstone cita o exemplo da Europa, onde, com o crescimento do nacionalismo no século XVIII, houve a necessidade de:

66 descobrir e registrar os costumes, práticas, lendas e mitos vernaculares, a cultura do povo. [...] Os extratos de expansão da intelligentsia nativa procuravam juntar e estruturar, de forma coerente, esse corpus de fontes culturais populares, que poderiam ser usadas para dar ao passado um sentido de direção e construir uma identidade nacional (FEATHERSTONE, 1997, p. 152).

Ainda segundo o autor, uma cinematografia forte (o que também inclui a televisão) talvez seja ainda mais eficaz para a formação de uma cultura nacional, ou local, por conta da instantaneidade e alcance deste meio. "Todo filme é produto de uma indústria nacional, é falado em uma língua nacional, retrata situações nacionais e recicla intertextos nacionais. Todo filme [...] projeta um imaginário nacional". (SHOHAT; STAM, 2006, p. 399).

"Temos assim uma pluralidade de reações nacionais ao processo de globalização" (FEATHERSTONE, 1997, p. 157). Esta multiplicidade de vozes ao redor do mundo aliada aos novos meios como internet, que une alta velocidade de transmissão a uma larga democratização da informação, exigem uma contrarreação dos centros produtores de cultura de massa.

A densidade e a multiplicidade de direções da fala, que ocorrem no estágio global, exigem necessariamente que os Estados-Nação assumam uma posição, à medida que eles, cada vez mais, constatem ser impossível silenciar as outras vozes ou cogitem em não participar desse processo (FEATHERSTONE, 1997, p. 156).

Esta reação, no caso do cinema, pode ser exemplificada em grandes produções de orçamentos milionários que incorporam de maneira superficial e estereotipada elementos tradicionais de culturas locais. Estes filmes possuem um tratamento estético e narrativo tradicional, próprio das produções hollywoodianas, e trazem um olhar do homem branco e ocidental sobre os outros países, suas tradições e pessoas. Um exemplo é a animação Rio, que, mesmo sendo dirigida por um brasileiro, Carlos Saldanha, expõe todos os clichês relativos ao Brasil, sua gente (especialmente as mulheres) e seus costumes.

Tendo como base as ideias expostas anteriormente, além dos critérios de Wells (1998), nota-se que, em produções fora do eixo, existem outras questões, como o local e o global, ou o contexto político de produção e mercado. Estes critérios não são observados por Wells (1998), mas, no contexto da produção periférica, são assuntos que possuem demasiado valor para o produto final, artística e esteticamente.

Furniss (2009) distingue algumas das principais tendências da animação independente em relação à animação industrial. Pode-se destacar, em relação à produção que reflete estilos culturais locais versus o estilo ortodoxo, que a animação industrial tende a refletir estilos e normas tradicionais da sociedade ocidental, enquanto a animação considerada independente reflete crenças, narrativas e estilos de vida alternativos e periféricos. Wells (2002, p. 2)

67 completa que "diversos estúdios no mundo inteiro insistem em usar suas próprias tradições artísticas, mitologias e imperativos culturais".

Wells (2002) indica alguns exemplos onde podemos encontrar estilos inspirados em formas particulares de arte gráfica, como a espontaneidade da linha e das sombras expressionistas da animação Crac! (1981), baseada nas pinturas de artistas locais da comunidade franco-canadense do Quebec que retratam suas paisagens e o estilo de vida das pessoas da região (figura 24). Outro exemplo citado pelo autor é o trabalho do animador Hayao Miyazaki, que se baseia na tradição japonesa da arte da jardinagem, nos trabalhos dos pintores Utamaro e Hokusai e na estética do cinema moderno japonês, em conjunto com os efeitos hiper-realistas da Era de Ouro do próprio Walt Disney (figura 24).

Figura 24 – Respectivamente: cenas de Crac! (1981) e A Viagem de Chihiro (2001), respectivamente.

Fonte: Captura de tela do arquivo digital dos filmes.

Essas fontes visuais inspiradas nos elementos de uma cultura nativa intensificam bastante a autenticidade e a originalidade dos trabalhos através de habilidades técnicas próprias de alguns artistas e significados históricos impressos nos resultados gráficos e narrativos das animações. Estes estilos particulares sustentam uma posição autoral que se coloca dentro de uma tradição, tirando dela elementos estéticos, mas também a transformando, realçando-a e modernizando seus princípios. Esta 'historicização' das obras oferece uma profundidade no trabalho artístico que é evidenciada na criação e tratamento dos seus elementos gráficos (WELLS, 2002).