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Globalização e Linguagem: perspectivas da análise discursiva crítica

3 MÍDIA E LINGUAGEM EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

3.2 Globalização e Linguagem: perspectivas da análise discursiva crítica

Em 2006, Fairclough lançou o livro Language and globalization. Essa obra tem como objetivo a identificação e a análise de discursos que estão associados a estratégias hegemônicas para flexionar e direcionar aspectos da globalização em situações particulares; além disso, ele reforça o papel da análise textual como sendo uma contribuição importante que a ADC pode fornecer para a pesquisa social sobre globalização, ou qualquer outro aspecto da mudança social. Para isso, Fairclough (2006) usa exemplos de diversos países, tais como Estados Unidos da América, Inglaterra, Romênia, Hungria e Tailândia, para mostrar como a análise de textos pode ser coerentemente integrada dentro das análises que envolvem economia e política.

Fairclough (2006), ao tratar sobre Linguagem e Globalização, apresenta uma discussão sobre a “reestrutura e o re-escalonamento do capitalismo”, na qual aborda o elemento semiótico que instaura uma nova ordem do discurso e novas relações entre gêneros, discursos e estilos para a análise da linguagem. De acordo com Fairclough,

língua e semiose têm uma considerável importância na reestruturação e reescalonamento do capitalismo. Toda aquela ideia de uma economia baseada em conhecimento, na qual conhecimento e informação têm um novo e decisivo significado, é fruto de uma economia baseada no discurso: os conhecimentos são produzidos, circulam e são consumidos como discursos, os quais são operados como novas formas de agir e de interagir (inclusive como novos gêneros) e inculcados como novas formas de ser, novas identidades (inclusive com novos estilos). Um exemplo disso seria o conhecimento das novas maneiras de administrar organizações. A reestruturação e o reescalonamento do capitalismo é em parte um processo semiótico – a reestruturação e reescalonamento das ordens do discurso, envolvendo novas relações estruturais e escalares entre os gêneros, discursos e estilos (FAIRCLOUGH, 2012, p. 309).

Para ele, a globalização deve, pois, ser vista como uma questão de mudança nas relações entre diferentes escalas da vida e da organização social.

Segundo Fairclough (2006), assim como para Giddens (2003), o processo de globalização transcende os limites das relações formais entre os países pela via diplomática, pelas relações comerciais entre governos e pessoas jurídicas e físicas. Esse processo permite maior integração entre as pessoas e novas formas de relações interpessoais.

Dessa forma, as consequências da globalização nos levam a buscar um entendimento para os processos que a envolvem, especialmente no que diz respeito ao uso do discurso, pois

os discursos da globalização não apenas representam processos e tendências de globalização que estão acontecendo independentemente. Eles podem em certas condições também contribuir para a criação e mudança dos processos atuais de globalização40 (FAIRCLOUGH, 2006, p. 3).

Além disso, para o autor, as transformações no capitalismo têm ramificações em toda a vida social e, ao utilizar-se da globalização como tema de pesquisa, deve-se voltar para os interesses de como as transformações sociais no capitalismo impactam a política, a instrução, a produção artística e outras áreas da vida social. Dessa maneira, os discursos produzidos nos novos meios de comunicação, redes sociais e internet não podem ser dissociados do contexto da globalização. Assim, devemos considerar que há uma interdiscursividade mediada e, hoje, a mídia tem importância central na maioria dos países capitalistas; por meio dela decorrem interesses de grupos em disputa por poder político, econômico e social, tornando-a importante instrumento de perpetuação da hegemonia.

O mundo social e o texto são agentes que viabilizam a mudança do discurso, essa mudança não deve ser considerada como um processo natural, inato e isento, já que também é fruto desse processo de mediação entre o mundo social e o texto. Os meios de comunicação, em especial a televisão e a internet, são instrumentos fundamentais na construção de imagens que representem os grupos sociais e os atores em disputa na esfera pública41 e tornaram-se um cenário de disputa de sentidos e de construção de consenso social. Dessa forma, o que eles representam afeta diretamente na construção de identidades e na formação discursiva de seus leitores, e todos esses aspectos estão diretamente relacionados ao mundo globalizado no qual vivemos, fortalecendo a naturalização de ideologias dominantes.

Sobre a globalização, Fairclough a descreve da seguinte maneira:

um jogo de processos reais que tem produzido e continua a produzir características estruturais do mundo em que vivemos. Mas o mundo social que está diante de nós também inclui ação estratégica por parte de vários grupos e agências para flexionar ou redirecionar os processos de globalização em direções particulares, e as várias estratégicas utilizadas

40 Tradução nossa de: “discourses of globalization do not merely represent processes and tendencies of

globalization which are happening independently. They can under certain conditions also contribute to creating and shaping actual processes of globalization” (FAIRCLOUGH, 2006, p. 3).

41 Fairclough (2003, p. 144) busca em Habermas o conceito de esfera pública e conceitua-a como uma “zona de

conexão entre os sistemas sociais e o ‘mundo da vida’, o domínio da vida cotidiana, em que as pessoas podem decidir sobre questões sociais e políticas como cidadãos e, em princípio, influenciam as decisões quanto a políticas públicas”.

incluem o discurso da globalização42 (FAIRCLOUGH, 2006, p. 164, tradução nossa).

Não podemos negligenciar, no processo de globalização, as várias facetas que estão presentes nos discursos sem analisarmos as transformações operadas no mundo social e no texto. É necessário apontarmos para outros aspectos da globalização, os aspectos discursivos, especialmente, porque cremos que, ao analisar mais acuradamente o discurso, somos levados a compreender melhor os comportamentos dos sujeitos sociais, especialmente porque

certos discursos... que podem ser apresentados como inadequados para os processos reais [de globalização], em que falta ‘adequação prática’, podem também ser usados para criar e sustentar posições injustas e anti- democráticas e relações de poder, e podem nesse sentido serem considerados como ideologias43 (FAIRCLOUGH, 2006, p. 4).

Por isso, ao aprofundar e analisarmos cuidadosamente as práticas discursivas no contexto da globalização, compreendemos os indivíduos na contemporaneidade globalizante. O processo da globalização é sensível não apenas fisicamente, mas sua presença é verificável no campo ideológico. Partindo da premissa de que a globalização atinge também aspectos ideológicos sua influência perpassa também os aspectos discursivos. Dessa maneira,

se, de um lado, a globalização é um fator facilmente reconhecível quando se trata de elementos ‘físicos’ (carros, roupas, acessórios, equipamentos de informática etc.) presentes no nosso cotidiano, de outro, sua presença no uso linguístico parece não ser tão facilmente reconhecida ou sua influência detectada como uma possível manipulação ou exercício de poder. Nesse sentido, devemos salientar especialmente que o poder não apenas aparece ‘nos’ ou ‘por meio dos’ discursos, mas também que é relevante como força societal ‘por trás’ dos discursos proferidos por agentes reais do cenário sociocultural (SILVA; PEDROSA; DAMASCENO, 2011, p. 35).

Assim, os discursos presentes nas propagandas, nas reportagens e nos comentários, produzidos nesses novos meios de comunicação, são parte constituinte do processo de modalização do discurso, da alteração linguística e de novos paradigmas de significação produzidos pelo processo de globalização. Sabemos ainda que o discurso não deve ser

42 Tradução nossa de: “um jogo de processos reais que tem produzido e continua a produzir características

estruturais do mundo em que vivemos. Mas o mundo social que está diante de nós também inclui ação estratégica por parte de vários grupos e agências para flexionar ou redirecionar os processos de globalização em direções particulares, e as várias estratégicas utilizadas incluem o discurso da globalização” (FAIRCLOUGH, 2006, p. 164).

43 Tradução nossa de: “Certain discourses... which can be shown to be not adequate for real processes, which

considerado como discurso isolado, sem contexto e texto, os discursos perpassam pelas relações sociais e práticas sociais.

Para Fairclough (2006), a informação e as notícias são globais em detrimento das comunicações de massa. A globalização criou uma integração dos indivíduos; como afirma Fairclough (2006), um mundo em que as comunicações de massa são monopolizadas por corporações transnacionais que detêm o controle dos grandes conglomerados das mídias, da internet, das redes sociais. Conforme Fowler, “as notícias permitem uma representação do mundo por meio da linguagem, portanto, trata-se de uma construção, não de um reflexo dos fatos, isento de valor” (FOWLER, 1991, p. 36). Posto isso, ampliamos essa noção ao nosso trabalho, uma vez que as representações em torno da Reforma do Ensino Médio são construções discursivas nos três gêneros analisados.

As corporações transnacionais, em regra, possuem trânsito livre e interesses intercambiados pelos detentores do poder político e econômico, permitindo o uso desses meios para viabilizar que suas mensagens, interesses, valores e crenças sejam disseminados e que os indivíduos se sintam integrantes desses preceitos. Exemplo disso, podemos citar a exposição de motivos44, escrita pelo ministro da educação, Mendonça Filho, e as propagandas governamentais, já que o discurso neoliberal e as referências ao Banco Mundial são reforçados em vários momentos, ou seja, o aspecto da formação de mão de obra trabalhadora parece prevalecer em detrimento de uma educação libertadora e emancipadora aos moldes de Paulo Freire.

Fairclough (2001) explica que a universalização de um objetivo, de um posicionamento, de um interesse, tomada como comum aos diferentes participantes, só é alcançada pelo domínio econômico, político, cultural, por meio do poder ideológico sobre um grupo ou sociedade; assim, o Governo Federal, ao utilizar os meios de comunicação para demonstrar os benefícios da Reforma, tenta universalizar sentidos e naturalizar as mudanças previstas em lei e, por conseguinte, naturaliza a ideologia hegemônica do capital. De acordo com Fairclough (2003), as representações são operacionalizadas pelo poder na constituição de processos de dominação e exploração, a ponto de serem inculcadas em identidades que repercutem nas formas crenças, valores e no próprio modo de agir. Com isso, ao serem repetidas várias vezes em práticas distintas, sob diferentes formas de manifestação

44 Para fundamentar o pedido da Reforma do Ensino Médio, o Ministro da Educação, à época, Mendonça Filho,

escreveu uma exposição de motivos ao Michel Temer, na qual tentava justificar a necessidade das alterações educacionais. A maioria dos pontos levantados por Mendonça Filho leva em consideração o mercado de trabalho, as necessidades do “novo” mercado global e a importância de atender aos anseios das propostas do Banco Mundial. Esse ponto é discutido de maneira mais ampla na seção 4.2 deste trabalho.

(propagandas e reportagens, por exemplo), o ideário de que a Reforma do Ensino Médio é profícua passa a ser incorporado e naturalizado pela sociedade.

Outro ponto que merece destaque é o fato de que o discurso da globalização se apresenta como um processo sem um detentor, sem um agente conhecido, mas uma necessidade, o que, para Fairclough (2006), implica em naturalizar a globalização, ofuscando seus mais íntimos e ínfimos interesses. “Sem a percepção das polaridades dos agentes-alvo das ações, a população não tem a quem atribuir o poder, senão a um “sistema” tão perverso quanto abstrato” (SATO, 2018, p. 126). Essa globalização perpetrada é uma globalização hegemônica e ideológica, na medida em que globaliza os interesses dos detentores do poder, sendo, portanto, um exercício de poder, muito distante de uma globalização cosmopolita.

Além disso, ao analisar o discurso da globalização, Fairclough (2006) fala em discursos centrais ou nodais, e diz que em torno desses discursos muitos outros se aglomeram, transformando o termo em um nódulo central tanto para a compreensão do leitor quanto para a própria concepção de sua significação e, nesse sentido, é importante que percebamos as nuances desse comportamento do mercado (e de seus agentes), pois os procedimentos todos devem ser entendidos como globalização, mesmo que veladamente.

Dessa forma, o processo da globalização possibilita que, no mundo prático, ocorram representações em contraste do que realmente acontece, porém, essas representações são complexas, diversas, desiguais e estão imbricadas com aspectos social, cultural, econômica e outros. Assim, para o autor, há dois discursos da globalização: o primeiro discurso da globalização é o discurso que permite uma efetiva globalização, cosmopolita e integradora; em segundo, há o discurso da globalização que é apropriada pelas concepções liberais no sentido de propagar e consolidar relações de poder e hegemonia.

Nesse sentido, podemos considerar que a linguagem, nos novos meios de comunicação, redes sociais e internet, não ficou imune ao processo de globalização. A linguagem como parte integrante do processo social sofreu modificações para adequar aos ditames do processo de globalização, acompanhando as novas imposições econômicas, sociais e culturais. No Brasil, por exemplo, isso tem sido pesquisado por Vieira (2007) em sua pesquisa sobre multimodalidade. A autora identificou que as mudanças que ocorreram no mundo desencadearam um processo de transformação das ordens do discurso e, com isso, mudanças na linguagem, decorrentes dos avanços da tecnologia da informação.

Vieira (2007) associou a reconfiguração da linguagem às práticas de letramento, além de estabelecer uma reflexão sobre as principais transformações ocorridas na forma como a

de novas ordens discursivas. Fairclough (2003; 2006) destaca que as transformações no capitalismo têm ramificações em toda a vida social e que a globalização e as mudanças advindas dela devem ser objeto de investigação na pesquisa social contemporânea. Fairclough (2006) afirma que o estudo de aspectos da linguagem do novo capitalismo se tornou uma área de pesquisa significativa para os analistas de discurso crítico e aponta que a linguagem tem papel significativo nas mudanças socioeconômicas oriundas da transformação social contemporânea.

Assim, a globalização e a nova era do capitalismo estabeleceram modificações importantes no papel da linguagem, sendo um dos alicerces para a sua consolidação. Os alicerces e os pilares da globalização estão no discurso que viabiliza e impõe mudanças nas formas de imaginar, interpretar e representar.

Os discursos foram incorporados para dar concretude e viabilidade a uma nova ordem, são instrumentos apropriados e recontextualizados no projeto de consolidação da globalização. Dessa forma, entendemos, assim como Fairclough (2001), que o discurso é um instrumento de poder, hegemonia e controle. Ao nos debruçarmos e analisarmos os comentários virtuais disponíveis nos mesmos sites das reportagens on-line, devemos considerar que incumbe ao analista de discurso identificar esses instrumentos de poder, hegemonia e de controle, almejando expor, revelar e clarificar como tais aspectos modalizam e modificam o sistema linguístico, demonstrando o poder da linguagem, bem como identificar como o discurso é moldado e molda as opiniões dos comentadores.

Os comentários nos meios digitais são discursos mediados que, para Chouliaraki e Fairclough (1999, p.42), “objetivam estabelecer e ampliar os hiatos espaço-temporal”. A mediação operada nessa perspectiva constitui o que Fairclough (2003) denomina de “cadeia ou rede”, que significa que as mediações abrangem as práticas sociais da vida social. A mediação não só possibilita a orientação do texto, mas elabora, disponibiliza e produz significados em consonância com as demandas do poder, sendo um fundamento crucial de exercício de poder nas sociedades contemporâneas.

Logo, as discussões apontadas nesta seção contribuíram para o entendimento de como globalização, capitalismo, tecnologias da comunicação e informação alteraram e ainda alteram cotidianamente as práticas sociais; ademais, corrobora a posição de Fairclough de que todos estes elementos estão diretamente relacionados às práticas discursivas, que por sua vez moldam e são moldadas pelos outros elementos das práticas sociais, numa relação dialética. A partir disso, o analista de discurso deve preocupar-se com todos estes componentes na busca do desvelamento de práticas hegemônicas e relações assimétricas de poder.

4 O ENSINO MÉDIO NO BRASIL: UM CICLO EDUCACIONAL CONTROVERSO