• Nenhum resultado encontrado

Mapa 1 – Região Metropolitana de Belém

3 IDENTIDADE DE LUGAR: fio da meada, fio condutor

3.2 Globalização e identidade

Ainda que uma das marcas da identidade seja a diversidade de olhares pela qual ela é abordada, um consenso é que ela remete à noção de indivíduo e ao conceito de si. Com isso, seu surgimento está em muito relacionado ao modo como essa noção e esse conceito se desenvolvem no decorrer da história.

Os questionamentos acerca de quem somos existem desde a Antiguidade, período em que a vida individual e o mundo interno eram bastante valorizados. Posteriormente, o estabelecimento da concepção cristã de homem causou um declínio nessa valorização, acentuado ao ponto de muitos historiadores situarem a “descoberta da individualidade” somente entre os séculos XVI e XVIII (JACQUES, 1998). Indo mais a fundo na contextualização temporal, Hall (2006) apoia-se em elaborações de vários teóricos contemporâneos para afirmar que a concepção de sujeito individual e de identidade ganha

contornos novos entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, período referenciado por ele como sendo o início da época moderna.

O desenrolar de alguns movimentos importantes contribuiu para a emergência desta nova concepção. A Reforma e o Protestantismo promoveram a libertação da consciência individual da soberania exercida pela Igreja. O Renascentismo colocou o homem no centro do universo; as revoluções científicas demonstraram a faculdade e capacidade humanas de compreender os mistérios da Natureza. O Iluminismo promoveu a emergência do homem racional dotado de capacidades para compreender e dominar a história da humanidade. A formulação teórica cartesiana do dualismo mente e matéria, que destacou no centro da mente o sujeito individual, dotado de capacidade para raciocinar e pensar (HALL, 2006).

No princípio da história moderna do sujeito individual, este é visto como indivisível, uma entidade unificada em seu interior, que se desenvolveria permanecendo essencialmente o mesmo do nascimento à morte. Jacques (1998) afirma que o radical da palavra identidade advém do latim idem, cujo significado é “o mesmo”, conferindo essa noção de continuidade, de sujeito idêntico a si permanentemente, com base em um referencial de estabilidade que, para a autora, deve ser superado nos estudos sobre identidade. A mesma autora afirma que o ápice do culto ao egocentrismo pode ser atribuído ao movimento romântico, assim como a profusão de produções teóricas acerca da identidade aos primórdios da Psicologia independente. Bonaiuto e Bonnes (2000) afirmam que neste período emergiram algumas perspectivas psicológicas tradicionais, que definem a identidade pessoal com base em aspectos referentes a concepções ou características singulares do indivíduo, enfatizando processos psicológicos individuais isolados de qualquer influência do ambiente.

Com a complexificação crescente da vida moderna, o indivíduo passa a ser definido no interior das grandes estruturas sociais. As “maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno” (HALL, 2006, p. 30) envolvem o cidadão individual em um momento de substituição do referencial das tradições e das pequenas comunidades por organizações mais impessoais e complexas. Este momento coincide também com o surgimento de novas ciências sociais, entre as quais figura a Psicologia, à qual coube um papel privilegiado na investigação do indivíduo e seus processos mentais. Àquela época, a Antropologia já estava consolidada como campo do saber, no seio do qual vários temas eram estudados.

Um desses temas era a identidade, que na Antropologia começou a ser pesquisada como um fato de organização social, prevalecendo em suas análises a apreensão do caráter normativo das relações sociais, sendo consideradas também as relações de organização dos meios de produção material que envolviam os indivíduos, nas diversas culturas. Se inserem

aqui os estudos de Lévi-Strauss (2000), para quem cada sociedade e cada cultura divide a identidade em uma abundância de elementos. Assim, a identidade individual “esconde-se” no seio da sociedade, como se fosse um “abrigo virtual” ao qual é indispensável a sua referência para explicar um determinado número de coisas e situações cotidianas, sem que este tenha jamais uma existência real. Podemos também citar Goffman (1988), que definiu a identidade como uma representação do “eu” na vida cotidiana e papéis sociais que cada indivíduo concebe sobre sua imagem, para si mesmo e para a sociedade. Para este autor, é possível analisar a identidade como o reflexo de um conjunto de subjetividades, incluindo concepções de mundo, de sociedade e de padrões socioculturais que controlam a vida cotidiana.

Assim, fica claro que há especificidades em se discutir identidade no contexto da modernidade e de consolidação da sociedade capitalista. Enquanto a primeira inaugura a era dos constrangimentos, do ser psicológico, a segunda produz relações sociais antagônicas. A tais aspectos, somam-se os efeitos da globalização, fenômeno controverso e cheio de nuances.

Para alguns autores, não existe uma única globalização, mas muitas globalizações influenciando a configuração das identidades humanas das culturas local e global (BERGER; HUNTINGTON, 2004; SANTOS, 1993). Outros preferem tratar da globalização como símbolo da vida moderna, composto por um complexo conjunto de processos e forças de mudanças que sustenta um poder de enorme magnitude (AGIER, 2001; BAUMAN, 1999; HALL, 2006), capaz de deslocar identidades culturais nacionais e que reflete inevitavelmente nas culturas locais. Entre estes últimos, destacamos Bauman (1999, 2005), pelas articulações que faz entre globalização e identidade.

Para Bauman (1999), a globalização seria um conjunto de rápidas transformações sociais, econômicas e culturais que, favorecido pela revolução tecnológica e nas comunicações, assumiu a tendência inexorável de integrar as sociedades de todo o planeta como em nenhum outro momento da história. Processo irreversível e dinâmico, cujos efeitos são desprovidos de unidade, propicia que a dimensão espacial seja suplantada pela modernidade líquida, móvel, flexível, plástica das transações comerciais e culturais. De diferentes formas, afeta desde as estruturas estatais, passando pelas condições de trabalho, as relações entre o Estado, chegando à subjetividade coletiva, a produção cultural, o dia-a-dia do viver, as relações entre o eu e o outro (BAUMAN, 1999, 2005).

Assim, estaríamos vivendo em um mundo fragmentado em pedaços mal coordenados, no qual as existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios conectados que oportunizam situações em que cada indivíduo possa experimentar ideologias, ideias e princípios em diferentes fases da vida, podendo defendê-las ou negá-las. Nesse

mundo, os laços sociais criados podem gerar exigências de proteção e o retorno a um mundo restrito (comunidades) que cria fronteiras e barreiras – ainda que intangíveis – para manter distante o “outsider”, sem se importar com quem este seja. Por isso, as sociedades são convidadas a exercitar a sabedoria humana, para buscar adaptar-se à liquidez moderna caracterizada por um conjunto de relações sociais, que tornou incerto e transitório o conceito de identidade – seja social, cultural ou sexual (BAUMAN, 1999, 2005).

Esse é um aspecto muito explícito nas teorizações de Bauman (2005) – a identidade como algo bastante negociável e revogável, algo a ser inventado, alvo de um esforço, eternamente inconcluso. Para ele, a identidade nesses termos surge como resultante da história do nascimento e da maturação do Estado moderno, com todas as suas estratégias de coerção e convencimento. Mais especificamente, Bauman (2005) afirma que a identidade nasce como problema e, acima de tudo, como tarefa, com a lenta desintegração e a redução do poder aglutinador das vizinhanças, complementadas pela revolução dos transportes. Assim, foi com a perda das âncoras sociais que a faziam parecer "natural", predeterminada e inegociável que a identidade se tornou tema central na atualidade. Em suas próprias palavras, “num ambiente de vida líquido-moderno, as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mas profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência” (BAUMAN, 2005, p. 38).

Nesse contexto, a "identificação" se tornou cada vez mais importante para os indivíduos que buscam um "nós" a que possam pedir acesso. Diferentemente do momento em que se vivenciava uma identidade pré-determinada pelos costumes tradicionais, pelas autoridades imutáveis, pelas rotinas pré-estabelecidas e pelas verdades inquestionáveis, agora os indivíduos precisam construir suas referências de si em um mundo em constante mutação. Para tanto, é preciso reinventar sua própria história, em uma combinação do passado nostálgico com a modernidade líquida, sendo crucial as decisões que tomam, seus modos de agir, os caminhos que percorrem. Por consequência, é preciso que as análises sobre a questão da identidade também modifiquem suas ênfases e perspectivas. Na próxima seção, é apresentado como tem se dado a evolução da Psicologia no estudo da identidade mediante esse contexto, com destaque para a inclusão do lugar em suas análises.