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Governamentalidade: multiplicidade e deslocamento para o terceiro ciclo

4. Fundamentação teórica

4.2. O saber-poder-subjetividade

4.2.2. Governamentalidade: multiplicidade e deslocamento para o terceiro ciclo

Candiotto (2010) analisa que os dois cursos de Foucault no Collège de France intitulados Segurança, Território e População e Nascimento da Biopolítica indicaram seu interesse em aprofundar o conceito de governamentalidade. O conceito foi desenvolvido a partir suas pesquisas da multiplicidade da arte de governo no século XVI. Segundo ele, pensar a força em seu caráter relacional possibilitou ao autor analisar a soberania por meio de uma topologia de poder: inversamente ao entendimento hegemônico a cerca desse poder, as micro forças se afetam entre si, produzem verdades e tornam, afetando o poder do Estado.

Essa linha de entendimento permitiu ao autor analisar que as estratégias de poder só funcionam porque se enraízam, ou seja, se tornam (ou se apoiam em) sujeições (FOUCAULT, 2003). A ação de sujeitar-se ou de rebelar-se conduzindo a si e aos outros estão ligadas ao que o autor chama de governo (FOUCAULT, 2009a, 2010a).

Por meio dos estudos do conceito de governamentalidade, o autor analisou a articulação entre soberania, disciplina e gestão governamental. O autor revelou que a noção de governo e seus procedimentos sofreram mudanças importantes de racionalidade desde a emergência da “razão do Estado”. Foucault (2005a; 2008a) indica ter acontecido uma transição da forma social disciplinar para a de controle, condição em que se passa a administrar as populações sob a lógica de uma biopolítica, um poder operado sobre a vida.

Para Foucault (2008b) o neoliberalismo promoveu uma inversão na arte de governar: a partir dele foi “necessário governar para o mercado, em vez de governar por causa do mercado”. Nesta forma de governo ou de governamentalidade surge, para o autor, uma nova concepção de homem: o homo oeconomicus que não é mais o parceiro de troca, mas o empresário de si mesmo; ele é o capital e produz a si mesmo para si mesmo, pois é o homem do consumo e, na medida em que consome, produz a própria satisfação. Assalariado, o trabalhador deixa de ser uma força de trabalho para se transformar em um sujeito econômico ativo, uma máquina de fluxos de renda, se deslocando, portanto, do conceito de homo

economicus clássico e criando uma nova natureza social (FOUCAULT, 2008a).

No interior desse contexto, Foucault analisou a experiência da sexualidade como um dispositivo. O autor revelou como uma rede de forças investiu diretamente sobre os trabalhadores e desenvolveu um poder sobre suas vidas de duas formas: uma anátomo-política do corpo (que considerou o corpo como máquina que deveria ser preparada para produção) e uma biopolítica da população (que atuou sobre o corpo biológico controlando natalidade e doença, com o objetivo de estender o tempo útil de vida). Assim, ao mesmo tempo, atuaram um biopoder e uma biopolítica, com fins de um controle de ordem econômica (FOUCAULT, 2005b).

Por meio da analítica poder-resistência, Foucault (1995a, 2003, 2009b) aponta que quando a vida é apropriada pelo capital, ela sempre reage, sendo essa uma forma de relação constante, mutuamente produtiva e constituinte da dinâmica social de nossas formas sociais. Dessa forma, o biopoder aliado a uma biopolítica favoreceu a disseminação e hegemonia do modelo social capitalista. Para Foucault, a relação de controle entre o corpo e suas intensidades produziu uma experiência político-econômica juntamente a uma experiência subjetiva, e ambas se tornaram uma relação de imanência (DANZIATO, 2010).

Essa rede de relações permitiu a análise sobre a constituição do sujeito moderno, pois apontaram uma mutação extrema da existência (bios) agora objeto da racionalidade econômica e analisada na representação (consequência do processo racional); e ainda um sujeito que se torna sujeito sem fazer um trabalho reflexivo sobre si para ter acesso à verdade, tal como fizeram os gregos; ou seja, a verdade, tal como é (verdade da ciência), não é mais capaz de salvá-lo, porque é incapaz de promover reflexividade e de fundar uma moral que possa guiá-lo em sua prática social (FOUCAULT, 2010b).

A condição traz várias discussões do autor acerca dos movimentos de libertação e de possíveis saídas frente ao poder. Para Foucault (1995a, 1995b) tais movimentos não encontram nenhum princípio que sirva de base à elaboração de uma ética, pois “[...] para o

pensamento moderno não há moral possível” (FOUCAULT, 2000, p.351); esse pensamento é forma e conteúdo de uma decisão social, embora essa seja “uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo” (FOUCAULT, 2010b, p.225). Foucault (1995b, p.225) questiona se nos últimos tempos, o nosso problema não seria esse: sofremos por não acreditar mais na ética fundada na religião, mas não desejamos a intervenção de um sistema legal que interfira “em nossa vida moral, pessoal e privada”.

A condição é muito significativa para o autor pois, se essas relações de governamentalidade indexaram verdade e subjetividade para produção de obediência no exercício de governo, isso indica que a própria conduta de si e dos outros foi produzida nessa, e produtora dessa, que é uma lógica pertinente ao capital e aos seus processos de razão. O cuidado de si se refere às relações mantidas consigo mesmo frente aos efeitos do saber e do poder (FOUCAULT, 2010b). Porém, o cuidado de si é necessário para o governo dos outros. A prática de si é um princípio dirigido aos outros. Foucault (1984, p. 127) justifica:

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder, ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina.

O cuidado de si é parte da questão da governamentalidade que diz respeito à prescrição de um modo da vida para si e um cuidado com o outro (FOUCAULT, 2010b). O cuidado de si ocupa-se da construção de uma estilização para a vida, a prática de uma ética. Portanto, refere-se à formas de subjetivação; o termo pode ser entendido como uma naturalização do ponto de encontro entre as técnicas de dominação e as técnicas de si, ou ainda, como o sujeito se reconhece e se conduz numa relação de força (PAIVA, 2000).

Desse modo, ao buscar analisar as formas de subjetivação por meio das tecnologias da relação de si, o autor se desloca para um terceiro momento de sua teorização e trata da constituição dos modos de ser sujeito (FOUCAULT, 2010a, p.17).