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O mercado literário faz nascer o consumidor-leitor

3. Cultura pop: práticas de fãs transformadas, convergência midiática e particularidades de

3.1. Uma retrospectiva: práticas de fãs do sobrenatural Para entender as práticas de fãs no contemporâneo, fizemos uma breve retrospectiva

3.1.1. O mercado literário faz nascer o consumidor-leitor

Um aristocrata já com certa idade, se entrega com afinco aos prazeres da leitura de romances, um hábito de lazer cuja manutenção já dilapidava seu patrimônio. Dizem que pouco dormia e muito lia até que perdeu o juízo; passou a acreditar na veracidade das narrativas, transformou-se num cavaleiro andante e partiu pelo mundo afora. Essa é a história de Dom Quixote, um grande sucesso editorial lançado em 1605 (GRAF, 2013), mas esse também foi um temor legítimo que se popularizou no cotidiano; tal temor surgiu ao mesmo tempo em que se expandia um novo hábito: gostar de ler e fazê-lo em demasia, podia implicar em deixar-se dominar pelo mundo da fantasia, algo então, cada vez mais condenável. Essa batalha e uma oferta cada vez mais ampla se confrontaram durante quase três séculos (ZIBERMAN, 2001).

A substituição da oralidade pela literatura já havia sido temida por Platão no século IV a. C.; mas nesse período, em um contexto caracterizado por grandes inovações, o autor Miguel de Cervantes transportou o registro dessa ansiedade para o enredo da obra. O século XVI foi um período marcado pela revitalização da sociedade europeia frente à série de acontecimentos que promoveram a decadência da Idade Média. Desde o século XV com início da Renascença, a visão de mundo centrada em Deus, a supervalorização da fé e o coletivismo vinham sendo fortemente questionados. A época de intensa produção artística e de grande progresso da ciência humanista, ampliou o hábito de leitura para o cotidiano dos indivíduos (ZIBERMAN, 2001).

A proposição de mundo centrado no homem (humanismo) aliada à valorização do conhecimento racional (racionalismo) e à liberdade individual (individualismo) constituiu o movimento renascentista. Assim, em meio ao nascimento das novas concepções de vida, ao final do século XVI a literatura sobrenatural surgiu na França, inscrevendo-se na rejeição ao pensamento teológico metafísico, ainda muito presente no imaginário popular (SILVA; LOURENÇO, 2009). Assim, a obra Dom Quixote, ao discutir um temor em seu enredo, proveu o espaço social com ideias desafiadoras ao pensamento hegemônico.

Assim, no século XVIII o sobrenatural se opôs às consequências da ordem da razão que havia apoiado (VINT, 2013). O romantismo criticou os rumos que a civilização estava tomando em termos de superficialidade e artificialidade, advindas da ordem da razão iluminista que, por sua vez, havia embasado o liberalismo burguês, consagrado a ciência como o espaço oficial da verdade e desvalorizado o ideário ilusório (FACINA, 2004; MARÇAL,

2009; MOURA, 2010). O movimento fez voltar à cena social a liberdade de criação e a fantasia, reconstruindo e expandindo a literatura sobrenatural (RODRIGUES, A., 2013).

Desse modo, no século XIX, após as grandes mudanças acarretadas pelas revoluções (Inglesa, Industrial e Francesa), os mistérios do sobrenatural não mais diziam respeito ao que a lógica humana não podia dar conta, mas ao que a ciência ainda não conseguia explicar, ou seja, tornou-se uma crítica ao próprio homem (RODRIGUES, T., 2007). Dentre as produções surgiu, a obra Frankestein lançada em 1818 pela escritora Mary Shelley. A obra exerceu grande influencia na cultura ocidental (JOHNSON, 2006).

A exploração de técnicas literárias efetuadas a partir de 1820 colonizou as narrativas com outros seres estranhos, vampiros e feiticeiros (BATALHA, 2009). A experiência literária dos vampiros denunciou o momento social onde nobres tornaram-se parasitas decadentes e trabalhadores tornaram-se máquinas, pois desde a Revolução Industrial eram submetidos a trabalhos humilhantes que sugavam sua vitalidade (POGGIAN; HAYE, 2011). O vampiro encampou a figura do inimigo da sociedade organizada, um corruptor que precisa ser combatido por várias frentes (NAZÁRIO, 1998).

Até 1850 a energia de transgressão dos contos sobrenaturais renovou a atitude romântica e, enquanto gênero, o Fantástico havia agrupado subgêneros - ficção, horror e fantasia (TODOROV, 2003). Escritores e leitores estavam sensibilizados, e neste período alguns trabalhos de ficção tornaram-se Best-Sellers1, como as obras de Júlio Verne. Na obra de Terra à Lua, por exemplo, sua imaginação traçou possibilidades que alimentaram o imaginário vigente e posteriormente influenciaram os novos desenvolvimentos no Centro Espacial Kennedy.

Os métodos científicos e a lógica dedutiva, por sua vez, foram também merecedores de créditos neste século: o detetive Sherlock Holmes e suas aventuras admiráveis de raciocínio lógico foi uma das mais atraentes figuras de romances policiais. Ainda, neste que foi o século de grandes novidades, surgiu também a primeira história em quadrinhos moderna, de autoria do americano Richard Fenton Outcault, que chamou-se The Yellow Kid. A mesma surgiu em 1896 e inovou trazendo o balão para representar a fala de personagens (JARCEM,

1 O gênero Best Seller tanto pode ser caracterizado por seu volume de vendas no mercado editorial, quanto pela especificidade de seu conteúdo, considerado literatura de entretenimento ou de massa, ou seja, um tipo de literatura consagrada como o resultado de uma ação mercantil (capitalista) sobre a cultura (CARDOZO, 2007).

2007). Do mesmo modo que os romances, esse novo veículo de disseminação do sobrenatural condensou progressivamente ideologias políticas, crenças religiosas e problemas sociais.

Mas, de forma relevante, todas essas mudanças são indicativas de que definitivamente se consolidou um mercado que absorvia esses produtos. Contudo, diferente da demanda literária do século XVI, o mercado do século XIX tornou-se responsável por direcionar o conteúdo dessas obras, pois era imprescindível que esse conteúdo agradasse ao leitor, viabilizando a produção (FACINA, 2004). Ora, se os autores tornam-se primeiramente trabalhadores assalariados, seus textos precisaram ser elaborados de modo a assegurar sua máxima difusão, e os leitores, por sua vez, deveriam usufruir dos textos afetivamente já que tratavam de temas de seu interesse (ABRUZZESE, 2004). Até esse período vemos um fã cujas práticas ainda são pertinentes à posição de um consumidor entendido como passivo, mas já se delineia um mercado preocupado em prender sua atenção e atender as suas demandas.