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O desejo desperto dos potterheads caracteriza sua experiência

6. Interpretando relíquias

6.2. A Pedra da Ressurreição desperta: as formações discursivas

6.2.5. O desejo desperto dos potterheads caracteriza sua experiência

Essa formação discursiva apresentou-se ligada a uma única regra: A intensidade dos quereres dos potterheads faz fluir agenciamentos coletivos de desejo. A mesma originou-se da relação entre sete enunciados e três funções (Fig. 24).

A relação entre si dada pelos enunciados dessa formação apontaram um grupo de significação que se refere à intensidade da vontade que atravessam os potterheads. A relação incidente dos enunciados 1, 4, 5 e 6 sobre o enunciado 3: Potterheads não resistem à práticas do fandom, explica o mesmo. Revelou-se também outras duas relações incidentes: a primeira foi entre o enunciado 4: Potterheads dependem afetivamente do universo e o 5: Potterheads cultuam o cânone; a segunda entre o enunciado 6: Potterheads produzem cultura a partir do universo e o enunciado 7: Potterheads estabelecem identificações no fandom, tendo em vista, em que ambas as relações um enunciado explica o outro. Uma relação síncrona se apresentou na relação entre os enunciados 2: Potterheads educam os novos fãs, e o enunciado 1: Potterheads estabelecem vínculos no fandom, e outra, entre o 5: Potterheads cultuam o cânone e o 6: Potterheads produzem cultura a partir do universo, pois eles se explicam mutuamente. Essas relações possibilitaram às funções se revelarem.

Desse modo, essa formação se refere à força do desejo que atravessam os potterheads em suas relações com o fandom, demarcando a qualidade dessa força como uma característica de sua existência. O desejo desperto dos potterheads deve-se à essa qualidade da força do querer que insiste em sua intensidade e os faz não resistir. Assim, as funções que aqui surgiram foram: Satisfazer vontade de práticas do universo, Perpetuar o universo de Harry Potter e Prover condição de fã. As mesmas levaram a essa regra.

Figura 24 (6) – Mapa das relações da quinta formação discursiva

Fonte: elaboração dos autores

Como vimos, os potterheads tem sido alvo de ações judiciais pela lei dos direitos autorais e precisaram se ajustar, se precaver; são vítimas de preconceitos sociais (principalmente em relação à idade e aos equipamentos do quadribol) e precisam fundamentar sua condição de fã; por sua vez sofrem também discriminações por serem fãs difíceis: são

acusados de fanáticos e intransigentes, tal como tratou Hills (2007) e Jenkins (2006). Porém, tudo isso é reflexo da intensidade de sua ligação ao universo; seu desejo é de continuidade e toda força de seu trabalho no fandom revela uma maquinaria eficiente que sustenta esse desejo. Nesse sentido, essa última formação discursiva que surgiu no arquivo trata exatamente dessa intensidade e como a mesma representa uma característica da própria forma de existência dos potterheads.

Revelar tal intensidade promove a compreensão de como os potterheads se mantiveram tão intensos em seus relacionamentos, mesmo após o término da saga. A questão refere-se à vontade de potência. Para Deleuze só tem têm vontade de potência o Ser querido (HARDT, 1996), mas esse é um princípio de síntese do eterno retorno da vontade e depende de uma conexão entre a quantidade e a qualidade que cabe a cada força nesse espaço (ORLANDI, 2003). Os saberes dessa formação são reveladores: promovem identificações, estabelecem vínculos, educam, produzem cultura, desenvolvem uma dependência afetiva dessa relação e, por tudo isso, não resistem às práticas do fandom.

Podemos ver nessa formação como o desejo estabelece a experimentação incessante e surge marcado por um devir (DAVID-MÉNARD, 2007), pois o querer permanecer vinculado ao cânone, que habita o plano da imanência (DELEUZE; PARNET, 1998) do potterheads, povoou de intensidades o corpo sem órgãos por meio dos registros em seu inconsciente. A intensidade da força afetiva que os liga e fortalece é o que faz com que os potterheads sejam constantemente arrebatados e não resistam às práticas do fandom ao qual sentem satisfação, um enorme prazer mesmo, tendo em vista que essas práticas estabelecem as relações que lhes oferecem um norte para condutas, lhe dão apoio para enfrentar os impasses sociais cotidianos, e, para além do conforto, constituem um pensamento de como a vida deve ser, que torna-se o desejo coletivo.

Esse é o processo de organização do virtual, imanente, que se abastece da razão da experiência aliada aos processos de memória (DELEUZE, 2008c; HARDT, 1996) - do que, por assim dizer, é recordado do vivido. Dessa organização se delineou a vontade de potência, uma força latente que arrebata o corpo dos potterheads e faz fluir seus agenciamentos de desejo, que, como vimos, vem por meio de vários queres, mas por uma razão ética estabelecida.

Essa formação, de certo modo, dá um fechamento ao entendimento da maquinaria de desejo dos potterheads. A mesma revela a qualidade da força afetiva como sendo de sua natureza. A intensidade desses quereres revela que potterheads selecionou para si mais encontros alegres que tristes, e que soube se deixar afetar por esses encontros (HARDT, 1996; ORLANDI, 2009). Potterheads promovem frequentemente mais ideias adequadas e com isso,

mantém intensiva sua vontade de potência. Potterheads são excessivos e essa intensidade promove a experimentação constante de seu desejo por continuidade.

6.2.5.1.

A intensidade dos quereres dos potterheads faz fluir agenciamentos

coletivos de desejo

Essa regra de formação foi desvelada a partir dos quatro critérios de regra, obedecendo a seguinte condição: objeto- vontade; conceito- tentação; modalidade- ética; e estratégia – força do hábito. A mesma advém da relação entre enunciados e funções que mostrou como a intensidade dos potterheads por práticas no fandom é um comportamento nutre, entusiasma e faz se alastrar os agenciamentos coletivos de desejo.

Assim, Perpetuar o universo de Harry Potter foi função para: Potterheads estabelecem vínculos no fandom e Potterheads educam os novos fãs; Satisfazer vontade de práticas do fandom foi função para: Potterheads estabelecem vínculos no fandom, Potterheads não resistem à práticas do fandom, Potterheads cultuam o cânone e Potterheads produzem cultura a partir do universo; Prover condição de fã foi função para Potterheads cultuam o cânone e Potterheads produzem cultura a partir do universo.

Essa regra se refere à qualidade de força dos potterheads. A resistência aos códigos tradicionais é um traço que configura sua singularidade. Seu desejo os faz atravessar certas cristalizações sociais e, nesse processo criativo, produzem intensidades. Se por um lado, o desconforto por vezes causado ao expandir seus hábitos para outros ambientes cotidianos os faz querer cada vez mais seus iguais, por outro, manter-se em contato é alimentar essa outra dimensão, é fazer fluir os agenciamentos desse desejo, que precisa apenas da ideia conveniente. Essa surge facilmente ao se apoiar, ao dividir, ao sentir falta, ao acreditar e compartilhar essas ideias no fandom. Potterheads gostam de promover intensidades no fandom. Corriqueiramente eles postam cenas marcantes da saga cinematográfica, por vezes sem nenhuma palavra, sequer título, e essa imagem, como diz Deleuze e Guattari (1997) atravessa esse espaço social como flecha. O exemplo a seguir é elucidativo (Figura 25):

Figura 25 (6) – [#10.35] Dementor

Fonte: disponível no Tumblr30

A imagem se refere ao ataque de dementadores, as figuras que sugam a vitalidade de suas vítimas e que surgem nos momentos de luta contra o mal na escola de Hogwarts, quase ao final da saga. Nesse caso, a figura seguiu apenas com um título: dementor e rapidamente alcançou 1073 notes (compartilhamentos e/ou curtidas). Esse tipo de ação, por ser incessante, é um agenciamento eficiente: potterheads estabelecem identificações com integrantes no fandom para Prover fanidade, e assim também Perpetuar o universo.

Como um corpo que se deixa afetar, potterheads querem verdadeiramente e querem cada vez mais; potterheads querem enquanto ética. Vários exemplos dessa intensidade foram tratados até aqui: a prática de reler os livros e rever os filmes, a saudade intensa, vivida e compartilhada, a produção prazerosa de cultura que se torna irresistível etc., tudo isso é exemplo de força intensiva dos potterheads.

É exatamente essa intensidade do querer estar ligado ao cânone, que chama a atenção em outros espaços sociais e fazem dos potterheads alvo de crítica pelos seus excessos. Como vimos, exemplos disso não faltam, eles adoram a obra. A figura 26 aponta como: Potterheads estabelecem vínculos no fandom, Potterheads cultuam o cânone e Potterheads não resistem à práticas do fandom para satisfazer vontades de práticas do fandom, prover condição de fã e perpetuar o universo de Harry Potter.

Figura 26 (6)– [#2.47] Eu todos os dias, todas as horas

Fonte: Disponível no Facebook31 dia 26 de outubro de 2014

Potterheads afirmam que não param de pensar no universo e por meio dele e, portanto, não param de falar sobre a saga:

[#6.28 Ref.1] Watching all as we speak again. Can't ever get enough I grew up with these movies

No trecho de fala, o fã observa que estão novamente falando sobre a saga, mas que, por mais que o façam nunca é o bastante, ao que alega que é porque cresceram com ela. Nesse sentido, podemos entender Satisfazer vontades, é função de: Potterheads não resistem à práticas do fandom, mas também de: Potterheads são dependentes afetivamente do universo.

O fã se incomoda com a crítica, mas logo ela se transforma em fluxo do desejo e é compartilhada no fandom como podemos ver na produção da Figura 27:

31 Disponível em: <https://www.facebook.com/vicioharrypotteresagas/photos/pb.268440969985222.- 2207520000.1438732429./375628212599830/?type=3&theater>

Figura 27 (6)– [#2.45] O Facebook é meu!

Fonte: Disponível no Facebook32 no dia 27 out. 2014

Assim, Potterheads não resistem às práticas do fandom para satisfazer vontade de práticas do fandom. Ainda, a produção aponta a constância desse tipo de crítica, mas mostra também que a partir dela existe uma afirmação, uma força afetiva que se estabeleceu por meio da solidariedade política (Fig. 28). Desse modo Potterheads produzem cultura a partir do universo para satisfazer vontade de práticas do fandom e prover condição de fã, sendo essa também a função de Potterheads estabelecem identificações com integrantes do fandom.

Figura 28 (6) – [#2.46] Pode julgar, pois você não é o único a me criticar

Fonte: Disponível no Facebook33 no dia 25 de outubro de 2014

Na figura 28 exemplifica essa afirmação. De forma oposta a costumeira prática de potterheads em demarcar identidade (ocasião em que diminuem sua vontade de potência), aqui eles produzem cultura e estabelecem identificações com os demais integrantes do fandom a partir de uma positividade: “Eu amo Harry Potter”; a partir dessa força afirmativa eles buscam desfazer de qualquer importância o julgamento do não fã: você não será o primeiro, o único e nem o último, ou seja, você é apenas mais um, e isso não muda nada. Esse tipo de apoio em uma ideia conveniente revela como a intensidade do querer, que foi alvo de crítica, se transforma em força e faz propagar agenciamentos coletivos de desejo.

Nesse sentido, o hábito das fics é uma das formas mais intensas de apego e prova de fidelidade que se registra no contemporâneo; fazer cosplay e participar de encontros temáticos é, da mesma forma, considerado irresistível. Esses hábitos geram prazer aos potterheads e

33 Disponível em: <https://www.facebook.com/vicioharrypotteresagas/photos/pb.268440969985222.- 2207520000.1438732429./375628212599830/?type=3&theater>

resistir a eles, por vezes, se mostra impossível. Uma ilustração dessa entrega pode estar no trecho abaixo, um caso já analisado por outros aspectos:

[# 15.8 ref.1] Disclaimer: Harry Potter, the world and characters recognized below do not belong to me, but to JK Rowling. The following is for pure entertainment only. Not ashamed as well as 2 guests left kudos on this work!

O aviso como já tratamos, ultimamente é recorrentemente postado nas fics e esse tem sido um cuidado, uma precaução tomada pelos fãs em relação aos direitos autorais dos produtores da saga. Depois de muitos casos de resistências, sucessos e insucessos, o assunto voltou a ser discutido recentemente por conta da distribuição musical. Os potterheads sabem que não é legal explorar a história, eles sabem também que os produtores solicitam retirar do ar conteúdos que consideram imorais, desrespeitosos ou prejudiciais ao cânone, mas continuam produzindo, eles não resistem! Assim, o fazem tomando esse tipo de cuidado: além de revelar que seu fim é só o entretenimento (e não lucro financeiro, uma finalidade que seria a da produtora), o fã ainda se antecipa ao afirmar que o conteúdo não é vergonhoso, inclusive recebeu até elogios. Essa foi à forma paliativa encontrada para continuar produzindo por meio da saga.

Os excessos de comportamento, quaisquer que sejam, são hoje popularmente tidos como uma doença de mercado; consumir muito ou deixar de consumir o necessário (anorexia), querer divertir-se excessivamente, aproveitar tudo como se fosse a última vez, tudo isso é comumente associado à lógica capitalista de ser. O contexto tecnológico de comunicação da sociedade de controle estimula os excessos; entretanto, cabe a cada um cuidar de si e controlar-se (DELEUZE, 1978; FOUCAULT, 2011). A racionalidade necessária para que a coletividade não entre em crise é o equilíbrio entre segurança e liberdade, entre tecnologia de si e de coerção e, como vimos, isso é matéria que deve praticada, ensinada e constantemente cobrada por si a si mesmo e aos outros. Todos devem maximizar seu poder produtivo dentro dessas relações saber-poder, mas condutas excessivas desequilibram o sistema, é um desgoverno que pode comprometer a qualidade de vida.

A economia das sociedades de controle se caracteriza por utilizar o controle e a sensação de liberdade em uma espécie de reforço mútuo. Controlar o excesso é uma questão de cuidar de si e conduzir-se frente às forças do campo social, é também uma questão de ética. A formação ética se dá não apenas priorizando os encontros que sejam convenientes, mas cuidando para que eles estejam dentro de um limiar adequado de intensidades. Mas a adequação desse limiar não deve preocupar-se apenas com os excessos, precisa também

alimentar a subjetividade e a alteração do ser no tempo, sendo isso também ética. Assim, os potterheads precisam se deixar afetar e ser tomados por intensidades; nesse sentido a doação aos encontros que apresentam ter nutre essa subjetividade.

Aqui também a educação torna-se fundamental. Não apenas anima a comunidade de fãs, mas também atrai novos seguidores, fortalecendo o que se tem por desejo: a continuidade. Potterheads educam os novos fãs para perpetuar o universo de diversas formas; muitas dessas acontecem no You Tube, pois a atratividade e a facilidade com que esse meio educa o torna um importante ferramental para canalizar essa força. O recorte abaixo é mais um exemplo de como acontece essa educação – é o título da produção do vídeo (Figura 28):

[# 10.37] In this video I will be whispering a lot of somewhat unknown Harry Potter facts! I certainly found them interesting as a huge Potterhead :)

O título é convidativo: ele promete trazer fatos não tão conhecidos, assunto que deverá interessar aos velhos e novos fãs. Vem em forma de sussurro, é uma espécie de revelação, onde apenas o tom de voz, sem imagem, promove suspense necessário. A Figura 29 mostra o pano de fundo dessa narração.

Figura 29 (6) – [# 10.37] Harry Potter Facts

Fonte: You Tube34 postado dia 29 de maio de 2014

Assim, intensidade dos potterheads é uma força afetiva que nutre relações subjetivantes e faz variar a vontade de potência, tornando o desejo de continuidade uma experimentação incessante. O agenciamento do desejo provido pela intensidade do hábito é uma força que se delineia no interior da multiplicidade, forma o sujeito ético e essa intensidade caracteriza a experiência dos potterheads. Por tudo isso, o termo “always” tornou- se uma afirmação fundamental de desejo e, portanto, de verdade para os potterheads, o símbolo máximo de sua potência (Figura 30):

Figura 30 (6) – [#2.48] Para sempre potterhead!

Fonte: Disponível no Wordpress35 dia 21 de março de 2013

A figura 28, portanto, representa toda intensidade característica dos potterheads, um agenciamento ou linha de força do desejo, responsável por dinamizar e manter a vitalidade de seu espaço social.