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O processo de subjetivação e a dobra ética de pensamento

4. Fundamentação teórica

4.2. O saber-poder-subjetividade

4.2.3. O processo de subjetivação e a dobra ética de pensamento

A partir de 1980, Foucault completa a ideia de seu terceiro ciclo. Com a dimensão ética envolvida, a questão foucaultiana central passou a ser “que modos de subjetivação vêm

se articular nas formas de governos dos homens, para resistir a elas ou habitá-las?” (GROS, 2010, p.309). Para Foucault, o eixo ético se encaixou, bastante ajustado, em seu projeto genealógico porque:

Três domínios da genealogia são possíveis. Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à verdade através da qual nos constituímos como sujeitos de saber; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos de ação sobre os outros; terceiro, uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos como agentes morais (FOUCAULT, 1995b, p.262).

No terceiro eixo, a resistência se revela sempre uma luta ética em oposição ao conjunto de regras moral (FOUCAULT, 2010a), sendo essa uma das linhas do processo de subjetivação. A luta ética, portanto, não é o vislumbre de um ideal onde se pode pensar um mundo melhor, e sim é uma batalha para despojar-se de lutas idealistas que se dá por meio da busca de alternativas (PAIVA, 2000). A resistência, por materializar sempre outra possibilidade, é positiva e, quando surge, perturba a ordem e já representa a quebra dessa ordem. Foucault (2009e) reconhece que a subjetivação é um trabalho produtivo e ocorre por meio das singularidades do processo de objetivação, subjetivação, poder e resistência, frente ao agenciamento coletivo, numa luta constante e multiforme. Assim, na relação, o que impõe novas possibilidades na conjunção de redes de forças é a condição de vida outra estabelecida por essa alteridade (FOUCAULT, 2003).

Desse modo, em seu terceiro ciclo Foucault desenvolve seu entendimento de sujeito como aquele que ocupa uma posição de verdade e sua prática envolve um trabalho ético efetuado consigo mesmo e estendido para sua prática social com o outro, possibilitando uma dobra da força sobre si mesma. A dobra de força no cuidado de si é concebida como uma ascese (FOUCAULT, 2010a) – provém da escolha de um modo de vida, um modo de ser, onde se elabora sobre si mesmo a constituição de um sujeito, e se pratica essa escolha, também por si mesmo. É estilizar a vida, é decidir por viver uma vida moral, é determinar como vai ser objeto dessa prática e é agir sobre si para assumpção dessa posição ética (FOUCAULT, 2010b).

Assim, a dobra da força sobre a força é resistir e produzir subjetivação, pois luta-se para estabelecer uma forma de vida normalizada, ao mesmo tempo em que se abre fissuras de onde brotam novas possibilidades. Vale salientar que essa é uma forma de pensamento completamente destituída de moralidade, que situa-se no plano da imanência e revela-se uma experiência de si como ética no exercício da liberdade (FOUCAULT, 1995b).

Assim, a constituição de formas de sujeito para Foucault é um trabalho ético embasado por regras facultativas, por oposição a um trabalho moral embasado por regras coercitivas. Portanto, se o processo possibilita escapar aos saberes e aos poderes constituídos, é produtivo, se referindo às práticas sociais que constituem subjetividades e são matéria mesma da ética (FOUCAULT, 2010a); embora esse processo seja recorrentemente recapturado pela relação saber-poder. Deleuze (2005) reforça esse entendimento: as construções entre saber-poder são recorrentemente arrebatadas no processo de dobra e desdobra; elas começam por derivar, mas terminam por ser reintegradas ao sistema de onde partiram.

Enfim, no terceiro ciclo, o autor encontra a saída para o encurralamento da relação saber-poder, tendo em vista que para o autor, em todas as formas sociais existem tecnologias que permitem aos sujeitos agirem sobre seu próprio pensamento e modificar a si e aos outros. O sujeito ou subjetividade é constituído como um resultado das redes de poder-resistência, que sustentam verdades e possuem prolongamentos políticos (FOUCAULT, 2011). O sujeito surge ao desempenhar um papel nesse campo de batalha onde coexistem as forças que promovem instabilização, que fazem emergir os processos de resistência, de singularização, frente ao agenciamento coletivo (PAIVA, 2000).

Assim, as experiências do sujeito são dadas em determinado regime de verdade ou racionalidade de dispositivos. Constituídas e praticadas, as subjetividades tornam-se formas aletúrgicas, e esses jogos autorizam os exercícios de poder, dados por meio do governo de condutas de si e dos outros, pois os naturaliza no campo social (FOUCAULT, 2009a, 2010a, 2010b, 2011). O social ganha, desse modo, sua existência por meio de matizes normativas de comportamento e esse é um poder que se exerce como um campo de procedimentos de governo. O governo como uma conduta de conduta, deve ser pensado como um direcionamento político operado nessa construção, uma arte de integrar tecnologias de coerção e tecnologias do si. Por isso, as formas de subjetivação efetuadas por meio de tecnologias da relação de si consigo e com o outro são, além de práticas de subjetividades, matéria mesma da ética (FOUCAULT, 2010a).

Dessa forma, “[...] as práticas de si não são nem individuais nem comunitárias: são relacionais e transversais” ao corpo social (FOUCAULT, 2010b, p.492). Nesse sentido, o cuidado de si é um intensificador das relações sociais, e uma prática social que incita o indivíduo e o corpo social ao agir correto, ou seja, em conformidade com a moral que está sendo definida nesse coletivo. Como essas relações terminam por constituir um ethos atuante nos exercícios de poder e nas relações com a verdade (FOUCAULT, 2010a), a excelência política do governo depende da condição de constituição ética do agente (FOUCAULT, 2011);

essa é a condição que autoriza qualquer agente nesse meio. Portanto, podemos entender o si como uma posição subjetiva construída nessas relações, o si refere-se à dinâmica de uma posição.

A experiência social de exercer um papel singular perpassa, portanto, pela articulação dos três eixos: saber-veridição, poder-governo e si-subjetividades (FOUCAULT, 2011). Deleuze (2005, p.109) lembra: é a relação de si que tem a capacidade de vergar a força, embora essa “só se estabelece se efetuando”. A partir dessa construção, podemos deduzir que, do mesmo modo que no nível do saber o enunciável se sobrepõe ao visível, e no nível do poder esse se sobrepõe ao saber, na última instância é o pensamento que se sobrepõe ao poder. O pensamento é a possibilidade de vergar a força sobre si mesma. Isso porque, diante da complexidade dos processos de subjetivação “[...] um si-mesmo é posto a decidir-se num problemático campo de diferenciações complexas que o invadem”; ver e falar são exterioridades, mas pensar se conduz para um fora desprovido de forma. Nessa condição, as linhas de resistência se acoplam à vida como singularidades (Deleuze) e são capazes de suscitar acontecimentos (Foucault) (ORLANDI, 2004, p.9).

Assim, os choques de intensidades que frequentemente ocorrem entre a vida e o poder, devem-se ao envolvimento de uma luta ética, que tende sempre a ser dinamizada, pois, na medida em que se interroga as condições de existência do poder, ela surge constituindo a resistência, como sua força interna. Deleuze (2005, p.101) lembra que a maior intensidade da existência está, exatamente, em seus choques com o poder, quando a vida resiste a ele e é obrigada a escapar, a criar rotas de fuga, a reinventar-se. Desse modo, a resistência foucaultiana equivale às rotas de fuga, na desterritorização deleuziana (DELEUZE, 1976; DELEUZE;GUATTARI, 1997).

A força é operada no social por subjetividades (FOUCAULT, 2003). Se a força encontra-se fora do indivíduo e a subjetividade é uma dobra da força, não seria essa “o dentro do fora” deleuziano? ou seja, um lado de dentro que prescinde do pensamento mas localiza-se externo ao “sujeito autônomo”? Se assim for, podemos dizer que a dobra de forças depende da instância pensamento, mas esse pensamento é uma construção da força de subjetividade cuja intensidade promove o dinamismo social, pois, se essas são linhas de fuga, elas são sempre traçadas na imanência de um desejo coletivo (DELEUZE, 1976).

Diante do exposto, podemos deduzir que saberes e poderes antecedem os papéis de sujeitos particulares, pois são esses, exatamente, que lhes permitem a existência. A prática desses sujeitos nesse meio é, assim, considerada em sua materialidade tendo a verdade por princípio e modelagem, e um cuidado de si como exercício ético de liberdade.

Considerando as questões aqui tratadas, podemos entender que, enquanto Foucault avançou no enunciável e nos forneceu até aqui um poderoso instrumental para explorar a complexa relação saber-poder e poder-resistência que atravessa a construção de um espaço social, Deleuze avançou na exploração do visível ao concebê-lo como um processo maquínico. O autor indica que uma relação possível entre os processos de resistência foucaultianos e as agências do desejo. A possibilidade nos aproxima da prática constitutiva da condição dos potterheads e trata da dinamicidade desse espaço.

Por fim, precisamos ainda ponderar que nossa análise não pode abdicar em considerar os modos severos de controle e vigilância com que se dá o biopoder em nossas sociedades. Por meio da construção do conceito de governamentalidade, Foucault nos forneceu o diagnóstico da passagem da sociedade disciplinar para de controle e um ferramental para investigação, mas Deleuze (2008b) o atualizou, ao desenvolver o estudo como uma mutação do capitalismo, agora não mais dirigido à produção, mas ao serviço, voltado para o produto, para a venda ou mercado, uma forma social de controle contínuo e comunicação instantânea; ele indicou as máquinas cibernéticas como parte de agenciamentos coletivos e denunciou a comunicação penetrada pelo capital como uma condição de natureza e não do acaso.