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Fluxograma 1: Cadeia produtiva de carne bovina

1. Governança Global em Saúde: abordagens

1.2. Governança Global em Saúde

Nos últimos anos, algumas expressões, como “saúde global”, “bens públicos globais”, “governança global em saúde”, “diplomacia em saúde” passaram a fazer parte da agenda política de negociações entre Estados, bem como a integrar discursos técnicos nacionais e internacionais, e de se tornarem objetos de pesquisas científicas. A discussão sobre o conteúdo e consequências dessas expressões aparecem nos vários cursos, seminários e reuniões internacionais (ALMEIDA, 2010).

A expressão “saúde internacional” foi criada em 1913, nos Estados Unidos da América, pela Fundação Rockfeller e continuou sendo usada até 1990 para designar a saúde como um acontecimento internacional. Todavia, sem tratar a saúde no espaço pertinente às relações internacionais, construindo políticas públicas em saúde sem considerar a opinião dos Estados (GODUE, 1998).

Destacamos que, desde o século XIX, o combate às doenças era uma preocupação internacional, principalmente na Europa, onde ocorriam com frequência conferências e a criação de mecanismos entre países para fortalecer as ações de combate às enfermidades. Essas ações de cooperação alteraram algumas concepções de saúde internacional e levaram à criação da OMS e mais tarde do Regulamento Sanitário Internacional, que veio a ser conhecido como o precursor do que se denomina “Governança Global em Saúde” (FIDLER, 2001).

A OMS sempre teve como objetivo trabalhar as questões de saúde numa perspectiva internacional, principalmente de cooperação técnica. Não obstante, o “como” trabalhar modifica-se constantemente (BROWN, 2006). Por sua vez, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) desenvolveu formas práticas de agir, bem como aplicou recursos para capacitar profissionais. Na década de 1990, consolidou a expressão “saúde internacional” numa perspectiva que considerava aspectos sociais, geográficos e políticos nos estudos e na intervenção das enfermidades (PAHO, 1992).

Rovere (1992) e Panisset (2000) acreditam que, a partir das transformações sociais da globalização e internacionalização das relações sociais, econômicas, políticas e culturais, o poder desigual entre

os Estados nacionais acarretaria dois caminhos na negociação sobre política de saúde, esses intimamente relacionados: se, por um viés, a saúde internacional era resultado de negociações internacionais, por outro, as questões ligadas à saúde seriam influenciadas por estas negociações.

Por sua vez, Godue (1998) alega que a forma clássica da saúde internacional, centrada na cooperação técnica deve ser suplantada. Para o autor, é necessário conhecer o que ocorre nas relações internacionais, ou seja, não é suficiente o conhecimento das questões técnicas, mas também saber conciliar os interesses nacionais com a situação internacional, visto que a saúde também consiste em disputa de poder entre nações.

No contexto citado, os Estados perdem sua autonomia para determinar os problemas de saúde e torna-se evidente a dificuldade de resolver esses problemas de forma isolada, visto que não atingem um único país. Nessa situação, transforma-se a expressão de “saúde internacional” em “saúde global” (LEE et al, 2002).

Kickbusch (2000) chama atenção para a necessidade de formulação de “políticas públicas em saúde global”, com o fortalecimento das políticas estatais e não sua substituição. No caso, é preciso fortalecer as relações nacionais e internacionais num processo de responsabilização, que pode ser denominado de accountability global. Aqui, global significa um novo espaço de ação, além das fronteiras geográficas. As políticas de saúde passam não só a ser interdependentes, como devem ser intersetoriais (devem se relacionar com outras áreas políticas, tais como a educação, o comércio, a propriedade alimentar, entre outras dependendo de cada caso).

Essas transformações que ocorreram nos Estados e nas relações internacionais para lidar com o aparecimento de doenças e epidemias acarretaram mudanças nas ações da OMS e outras organizações. As políticas de saúde pública vão além das fronteiras e passam a ser dirigidas tanto à população em geral como a certos segmentos populacionais específicos como os idosos, os jovens e mulheres e também os excluídos da sociedade.

A Carta de Bangkok (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAUDE, 2005), dirigida aos governos, políticos, sociedade civil, setor privado e organizações internacionais, identifica as ações, os compromissos e promessas necessários para se abordar os determinantes em saúde em um mundo globalizado. Este documento afirma que as políticas públicas e quem as formula devem buscar empoderar as comunidades, melhorando a saúde de uma forma equitativa. O

documento indica que qualquer programa de desenvolvimento deve incluir e privilegiar práticas que resultem na saúde das populações. No caso específico deste trabalho, o controle da zoonose, mesmo sendo exigência internacional, traz benefícios para as comunidades onde se criam animais, porque a partir do momento em que são controladas as doenças nos rebanhos, de um modo direto, melhora a saúde das populações. Em relação a esta tese, o modo de produção de bovinos no Brasil, que pode ser considerado um “modo de fazer local”, deve ser considerado na produção de políticas publicas e também pelas organizações de saúde. Assim, esta perspectiva referida no documento pode ser entendida como um empoderamento local.

Conforme a Carta de Bangkok, a saúde é um direito fundamental, sendo um determinante da qualidade de vida, incluindo o bem estar mental e espiritual, para que as pessoas tenham o controle de suas vidas. Essa diretriz é central para a saúde pública e contribui para o controle de doenças transmissíveis (inclusive zoonoses) e não transmissíveis. Porém, estas concepções são vagas para fins operacionais, porque no controle das zoonoses estudadas nesta tese, o que se faz necessário são ações pragmáticas, isto é, os serviços públicos e privados envolvidos nos seus controles devem realizar atos diretos nas ocorrências destas doenças, muitas vezes contrariando as concepções individuais ou de determinados grupos.

Duas organizações internacionais que se denominam “intergovernamentais” são exemplo da forma de se resolver problemas de saúde, em especifico de zoonoses: o Codex Amentarius e a Organização Internacional de Saúde Animal, ambas centrais para esta tese. O Codex Alimentarius é uma organização que normatiza os alimentos e também responsável por normas referentes à matéria-prima. Foi criado em 1963 com função apenas consultiva. Porém, na atualidade, seus pareceres transformaram-se em exigências nas negociações internacionais. É composto por representantes dos diversos segmentos da comunidade internacional, inclusive representantes dos serviços públicos dos países participantes (THOMAZ, 2006).

Por sua vez, a Organização Internacional de Saúde Animal, hoje a organização mais importante na saúde animal, é um exemplo do que se pode citar como modelo de governança. Formada por profissionais de quase todos os países do mundo, possui um corpo técnico altamente especializado, um quadro político, e suas decisões são tomadas em uma assembleia geral formada por delegados dos países participantes. Suas determinações são acatadas pelo comércio internacional de produtos de origem animal e por animais vivos como se fossem leis. É uma

organização supraestatal, e todos os estados acatam suas medidas (THOMAZ, 2006).

Contudo, o fenômeno denominado de “globalização” não traz apenas problemas, também gera oportunidades de cooperação, com consequente redução de riscos e agravos de saúde transnacional em virtude de uma melhor comunicação e das tecnologias de informação, juntamente com uma governança global aliada à troca de experiências de todos os participantes. Para resolver os desafios trazidos pela globalização, as políticas públicas precisam ser coerentes na esfera dos governos, das Nações Unidas e de outras organizações, incluindo do próprio setor privado.

Nessa visão, tornam-se necessários acordos intergovernamentais que aumentem a garantia de uma saúde individual e coletiva. Por isso, os governos procuram diminuir as diferenças entre povos ricos e pobres, buscando enfrentar os problemas trazidos pelo comércio internacional, principalmente no tocante a doenças de pessoas e animais juntamente com outros produtos. A busca da saúde deve fazer parte da política nacional e das políticas internacionais. Todos os governos, em todos os níveis, devem procurar com rapidez sanar os problemas de saúde, porque a saúde determina o desenvolvimento social, econômico e político. A Carta de Bangkok chama atenção para que todos os países, por intermédio de seus governos, se unam em busca de uma saúde global.

Assim, segundo este documento, no caso especifico dos programas estudados nesta tese, seria importante que os países participantes do mercado internacional de carne bovina, através de políticas públicas elaboradas por seus governos, realizassem ações em conjunto para o controle destas enfermidades. Mas, essas ações não bastam, pois para o controle de zoonoses é central a compreensão dos ciclos biológicos dos agentes causadores e as relações entre seus hospedeiros. Estes estudos complementam-se a abordagens que considerem as relações sociais das quais fazem parte os consumidores e criadores. Portanto, além de áreas como a Biologia e a Zoologia, é preciso conhecimentos da Sociologia da Saúde, da Antropologia e da Política.

Essa tese pretende elucidar os desafios que surgem para implantar uma concepção complexa que envolva várias áreas de estudos e que considerem os modos de produção local, e que, por outro lado contemplem as exigências internacionais.