• Nenhum resultado encontrado

Gritos e silêncios: corpos violados (?)

A literatura como destino: Chicas muertas, de Selva Almada

4. Gritos e silêncios: corpos violados (?)

Peguei o metrô na sé semana passada Mana, lhe disse que não foi do nada Que o otário me alisou Me dê licença Minha carne não está à venda E meu corpo não é sua merenda [...]) Não vou calar, eu vou gritar Se insistir, eu vou berrar mais alto Esculachar tua cara, arrochar tua tara Seu dissimulado! (Aíla, #Nãovoucalar)21

A música #Nãovoucalar compõe o albúm Em cada verso um contrataque, lançado em 2016 pela cantora paraense Aíla. Nela há

21 Nesta última parte da análise, os versos musicais de Aíla é a maneira que

encontramos para situar nosso locus enunciativo. Analisamos a obra de Selva Almada como investigadoras brasileiras, mas confirmamos, em nossa realidade, a mesma urgência em enfrentar a violência de gênero perpetrada em espaços públicos e privados, um problema, infelizmente, comum a todos continentes e culturas.

96

um dilacerante grito de denúncia contra assédios e abusos sofridos por mulheres em espaços públicos, a exemplo do transporte de metrô nos grandes centros, como anuncia a letra da canção. Também em tom de grito, de contraataque, Selva Almada expõe a violência cotidianamente emplacada contra as mulheres, contudo, o enfoque é o espaço mais privativo, reduzido: a casa, as margens de um rio e um terreno baldio de uma pequena cidade do interior argentino: ―Esa misma madrugada en San José, un Pueblo a 20 kilómetros, habían asesinado a una adolescente, en su cama, mientras dormia‖; ―[...] el marido de Sarita empezó a exigirle que trajera plata a la casa. Sarita se inició a la prostituición‖; ―por el crimen fue detenido tu cuñado‖ (ALMADA, 2018, p. 15, p. 57, p. 87)

De alguma forma, essas vozes gritantes se conectam, se identificam e produzem constructos artísticos que articulam representação e representatividade de corpos femininos cerceados pela violência advinda da cultura patriarcal perpetuada e constantemente atualizada em nossa sociedade. Certamente, quando uma música ou um livro se configura como uma busca por descobrir diversas e diferentes realidades por meio do encontro com o outro no lugar de uma narrativa sobre o outro, é onde encontramos maiores chances de construção e fortalecimento das subjetividades e, por extensão de demandas específicas de gênero, classe, raça/etnia, sexualidade, localização que configuram os sujeitos. Esse encontro entre Aíla, Almada e tantas outras mulheres, empreendido por intermédio de textos da cultura, articulam conexões entre mulheres e seus sistemas inter-relacionados de representação na luta por uma sociedade com equidade e igualdade entre as pessoas.

97

No caso particular de ataques contra a integralidade de nós mulheres (física, social, moral e/ou psicológica), não bastaria representá-los em enredos, mas seriam necessários projetos artísticos e críticos cujos arranjos desmontassem os dispositivos e as tecnologias normalizadoras do corpo feminino que o reduzem à categoria de ―segundo sexo‖ (BEAUVOIR, 1980) e à objetificação. As narrativas de Aíla e Selva demonstram a corporalidade feminina enquanto produto social, cultural e político marcado institucionalmente pela hierarquização de gênero responsável por naturalizar uma lógica de modelo social indicativa de uma série de discursos negativos acerca das mulheres. A potência de tais discursos, frutos do machismo e do sexismo estruturais, são capazes, por exemplo, de culpabilizar as mulheres mesmo em casos em que são vítimas. Em Chicas muertas, há um relato muito significativo deste corpo feminino transformado em território livre para o abate. Em um baile, um jovem se sente rejeitado por uma menina de quem ele gostava. Na companhia de outro amigo, decidem dar uma lição à garota:

Ella fue del baile con una amiga. Vivían a una cuadra de distancia una de la otra. La amiga se quedó primera, ella siguió, tranquila, el mismo camino que todas las noches de baile, en un pueblo donde nunca pasaba nada. La interceptaron en la oscuridad, la golpearon, le entraron los dos, cada uno a su turno, varias veces. Y cuando hasta las vergas se asquearon, la siguieron violando con una botella (ALMADA, 2018, p. 20).

Essa cena brutal de estupro em Chicas muertas e, lamentavelmente, comum em nossa sociedade, é representativa do quanto o corpo feminino é objetificado e descartável na cultura masculinicista cujos preceitos não concedem à mulher a liberdade de escolha e desejo. Aquelas que ousam quebrar esse círculo vicioso

98

devem, portanto, ser castigadas, culpabilizadas sob a ideia de uma certa ―defesa da honra‖ masculina a ser defendida. A violência com a garrafa, após o revezamento de diversas penetrações por ambos os rapazes comprova que o crime do estupro está intimamente relacionado com a punição, o ódio e a máxima desumanização do corpo feminino. É recorrente, por exemplo, a utilização de estereótipos derivados da tradição de cunho judaico-cristãs cujos discursos inferiorizam e classificam as mulheres como histéricas, loucas, infiéis, mães desnaturadas, prostitutas, autoritárias, possessivas e essencialmente, pecadoras e responsáveis pela queda da humanidade do paraíso, para torná-las (co)responsáveis, juntamente com seus agressores, pelos próprios sofrimentos e violências.

Rotineiramente, ouvimos enunciados como: ―ela não abandona o homem porque está apaixonada‖, "não sai da relação porque não quer trabalhar"; "foi estuprada porque ficou se exibindo", "sua boca diz uma coisa, seu corpo outra"; ou então sentenças que desqualificam a lucidez do homem em suas ações violentas: "assediou no metrô porque é sociopata", "bateu nela porque estava sob efeito de drogas". Muito raramente ouvimos que o agressor é um homem comum que incorporou o padrão de violência por escolha própria ou por ter assimilado o discurso de masculinidade hegemônica apreendido ao longo da vida. No lugar de se questionar o porquê dos discursos e das categorias sociais estarem tão assimiladas ao masculino, parece mais fácil culpabilizar, mais uma vez, a vítima.

99

Outro exemplo desse cenário de inferiorização e desumanização das mulheres no romance é o jogo do ―hacer un becerro‖, revelado pelo testemunho do escultor Tacho Zucco:

[...]. Marcaban a una chica, siempre de clase baja. Uno del grupo le hacía el novio. La seguía en a calle, le decía cosas, la seducía. Esto se hacía entre semana, no podía llevar muchos días porque el becerro se hacía el fin de semana, la conquista tenía que ser rápida. Una vez que la muchacha cedia, venía la invitación al baile del sábado. Primero a tomar algo en la confitería, después un paseíto e el auto. Nunca llegaban al baile. El auto se desviaba para el balneario o para algún lugar solitario. Allí esperaba el resto de la barra y la chica tenía que pasar con todos (ALMADA, 2018, p. 66).

A representação desse ―jogo‖, pactuado por alguns meninos, anuncia o quanto é emblemático e urgente refletir sobre a violência de gênero e contra as mulheres a partir das especificidades de cada uma de nós. Aqui, gênero e classe se interseccionam e evidenciam as várias camadas de subordinações pelas quais as mulheres são submetidas. O corpo da mulher pobre é duplamente tomado como um objeto a ser possuído. Ao final ―do jogo‖, os meninos recompensavam o ―becerro‖ com um pouco de dinheiro. Vê-se, portanto, que refletir sobre as mulheres não é um exercício crítico fixo, antes, uma leitura que deve ser diferenciada e redimensionada em vários eixos a depender de cada contexto, tempo e demanda de categorias como gênero, raça/etnia, classe, localização, sexualidade, como bem pontua a crítica feminista.

É especificamente sob esse olhar feminista que podemos apreender Chicas muertas como artefato artístico que nos levam a pensar sobre a fragilidade do nosso modelo de organização social porque coloca em evidência questões de vulnerabilidade,

100

culpabilização, estigmatização e violência física e simbólica de corpos considerados dissidentes, como é o caso das personagens femininas e pobres vitimadas pelo jogo de ―hacer un becerro‖. Essa cena aponta claramente para a existência de uma escala hierárquica de pessoas dentro da sociedade patriarcal, racista e heteronormativa. Essa visada interseccional sobre os papeis sociais, permite, dentre outras questões, compreender como as desigualdades se potencializam na medida em que essas escalas opressivas se sobrepõem. Como sugerem Avtar Brah e Ann Phoenix, essas categorias são tecidas conjuntamente porque ―as diferentes dimensões da vida social não podem ser separadas em vertentes discretas e puras‖ (2017, p. 663).

Em um outro momento de Chicas muertas encontramos a descrição de como o machismo estrutural se faz presente no convívio familiar. Para a sociedade em que as personagens estão alocadas, cujo reflexo imediato é o da nossa, o corpo das mulheres está cerceado por diversos dispositivos de controle que atuam nas cenas aparentemente mais simples da vida doméstica como a proibição de se maquiar, de conviver com familiares e até mesmo de gerenciar o próprio salário:

[…] la mamá de una amiga que no se maquillaba porque su papá no la dejaba. La compañera de trabajo de mi madre que todos los meses le entregaba su sueldo completo al esposo para que se lo administrara. La que no podia ser a su família porque al marido le parecian poca cosa. La que tenía prohibido usar sapatos de taco porque eso era de puta (ALMADA, 2018, p. 55,56).

Como defendem Michel Foucault (2001; 2018) e Teresa de Lauretis (1994), há diversas tecnologias sociais e de poder/saber/gênero que são aplicadas na configuração,

101

normalização e controle da maneira como concebemos os comportamentos e os papéis sociais de gênero e, por extensão, na autorização dos sujeitos que têm direito à voz, a narrar a história, ao desejo, a tomar decisões políticas, a viver. Se pensarmos que a ficção literária não escapa de tais efeitos discursivos, se faz necessário dimensionar as posições éticas, estéticas e políticas da literatura em termos de representação e representatividade de gênero como forma de ocupar o espaço simbólico da disputa do discurso. Desse modo, na literatura de autoria feminina, experiência e linguagem deixam de pertencer a campos acentuadamente distantes para se imbricarem: corpo e/na linguagem, corpo e/na experiência. A escritora/heroína frequentemente guiada por outra mulher, viaja para o ―país natal‖ do desejo liberado e da autenticidade feminina [...]‖ (SHOWALTER, 1994, p. 49). Recuperamos aqui o posicionamento de Elaine Showalter cujo pensamento enfatiza a necessidade de exploramos textos escritos por mulheres sem as amarras canônicas dos modelos de análise masculino. Considerar criticamente a autoria feminina, neste caso, nos assegura analisar o lugar político da estética de Garotas mortas como um modo de encontrar ―respostas para as perguntas que resultam da nossa experiência‖ (SHOWALTER, 1994, p. 44), sobretudo a experiência da morte, seja ela inscrita no âmbito social, cultural, político ou no próprio corpo.

Nosso argumento é que devemos ler os textos escritos pelas mulheres, interpretando suas indagações, seus espaços, suas particularidades, suas escrevivências e, algumas vezes, seus silêncios. De algum modo, a autoria feminina possibilita a nós mulheres estarmos, efetivamente, no mundo, porque reverbera outros modos de ser e sentir fazendo ecoar aquilo que nos é próprio:

102

nossas vivências, nossos pertencimentos, nossos sonhos, nossas histórias, nossas memórias e, por extensão, fazer ecoar nossos gritos de resistência e resiliência pelo direito de existir e de circular livremente.

Como afirma Adrienne Rich, a literatura é um indício de como vivemos, como temos vivido, como nós mulheres temos sido levadas a nos imaginar e, sobretudo, como nossa linguagem tem nos aprisionado ou libertado (2017, p. 67). Certamente, ao recontar a história de três jovens, vítimas de feminicídio, o livro de Selva Almada atribui, via memória e testemunho, novos sentidos às experiências e peculiaridades de cada localização (pública e privada), tomando a literatura como destino de uma escrita situada, de dentro, que considera vivências, experiências, representações e representatividade de histórias de vidas que se conectam e se identificam por intermédio de diferentes gritos: da morte, do abuso, da indignação, da consciência, da luta e do enfrentamento.

Como lugar de resistência e resiliência, Chicas muertas compõe os rastros de mulheres oprimidas no espaço privado como uma leitura crítica de um problema social que deve ser público e é de todos/as nós, a exemplo das violências perpetradas pelo marido da personagem Bety, a dona da marcenaria que se enforcou após ser constantemente agredida. Após sua morte surgiram notícias de que o esposo ―él la había matado y había tapado todo pasándolo por un suicídio‖ (ALMADA, 2018, p. 54). Independentemente da causa, posta em suspenso na narrativa, o fato é que Bety sofreu agressões e dores que a levaram a morte.

Ao longo do livro muitos outros casos de agressões e estupros são narrados. A esposa do açougueiro Lopez, por exemplo, não se

103

sentia segura dentro da sua própria casa: ―Ella lo denunció por violación. Hacía tiempo que, además de golpearla, la abusava sexualmente‖ (ALMADA, 2018, p. 54). Em uma cidade vizinha, La Clarita, uma menina foi sequestrada e violentada por quatro homens: ―Estuvo secuestrada varios días, desnuda, atada y amortazada en un lugar que parecia abandonado. Apenas le daban de comer y de beber para mantenerla viva. La violaban cada vez que tenían ganas‖ (ALMADA, 2018, p. 19). Há, ainda, um outro caso, o de Alejandra Martinez: ―Estaba semidesnuda y en avanzado estado de descomposición, le habían cortado los pezones y extirpado la vagina y el útero, y la yema de la mayoría de los dedos‖ (ALMADA, 2018, p. 67).

A memória, de diferentes maneiras, opera na escrita de Almada como um ato de insubordinação ao mesmo tempo em que evidencia hospedagem, deslocamento e abertura ao outro. A autora desarquiva histórias muitas vezes não contadas, colocando em cena suas próprias vivências e se comprometendo, numa inscrição de seu corpo político, a (re)construir o mundo observado em que os fatos rememorados desvelam silenciamentos e invisibilidades acerca das diversas e diárias opressões perpetradas às diferentes mulheres, a exemplo da cigana agredida pelo companheiro nas ruas da cidade:

Venía a hacer unos mandados, tendría diez años, y de lejos vi a una pareja de gitanos [...] Parecía que habían salido de un negocio y estaban discutiendo en la vereda. Él gesticulaba y a medida que me fui acercando escuché sus gritos. Me quedé a una distancia prudente [...]. Ella lo escuchaba cabizbaja. En un momento él le dio um empujón en el hombro (ALMADA, 2018, p. 48).

A literatura de Almada questiona nossos próprios papéis sociais, nossas localizações, nossas histórias e nossas identidades

104

não-fixas. Em face disso, Chicas muertas indica a potencialidade e a consciência da autoria feminina cuja escritura faz hospedar a materialidade do lugar de enunciação das mulheres. Diferentemente de ficções em que o/a/ autor/a reflete exaustivamente os caminhos a ser trilhados por suas personagens, em Chicas muertas, a própria morte pede um enredo. As investigações da autora não esclarecem os possíveis autores para os feminicídios, mas faz ecoar o modo como as relações de poder organizam nossa vida em sociedade e o quanto ainda temos que avançar em políticas públicas e educação:

No sabia que a una mujer podían matarla por el solo hecho de ser mujer, pero había escuchado historias que, con el tiempo, fui hilvanando. Anécdotas que no habían terminado en la muerte de la mujer, pero que sí habían hecho de ella objeto de la misoginia, del abuso, del desprecio (ALMADA, 2018, p. 13).

Se a escrita ―[...] é a própria possibilidade de mudança, o espaço de onde pode se lançar um pensamento subversivo, o movimento precursor de uma transformação das estruturas sociais e culturais‖, como bem argumenta Cixous (2017, p.134), a escritura de Chicas muertas certamente é representativa de tais reflexões. Selva Almada lança luz sobre casos insolúveis, esquecidos e obliterados no tempo com vistas a ecoar a urgência de mudanças de comportamentos históricos e ainda, lamentavelmente, presentes. Há, certamente, uma (re)presentificação de vidas brutalmente violentadas que incorporam, significadamente, a resiliência e a potência da literatura como destino.

105