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Palavras finais ou o início da caminhada:

A literatura como destino: Chicas muertas, de Selva Almada

4. Palavras finais ou o início da caminhada:

Seguimos caminando, más apretadas la una contra la otra, los brazos pegajosos por el calor (ALMADA, 2018, p. 185).

No momento em que tentamos colocar um ponto final neste texto, muitos corpos de mulheres estão sendo mortos ou violados. Uma estatística que nos tira a esperança de um futuro seguro para os corpos que ainda são colocados na condição de colonizados. Mulheres, negros/as, indígenas, homossexuais, imigrantes, favelados/as, proletários/as e tantos outros sujeitos a quem um determinado grupo toma para si o direito de mutilar, explorar ou silenciar. Chicas muertas é um exemplo de narrativa que permite aos leitores e leitoras confrontar-se com esta realidade e reconhecer, ao final do emaranhado de tantos corpos, a origem estrutural de uma sociedade sul americana, cristã, que adentra o século XXI com os resquícios do processo de colonização e colonialidade de poder/saber/gênero (MIGNOLO, 2003; LUGONES, 2014) marcados em nossa história.

As hierarquias de gênero pontuadas por Almada são representativas do poder e da dominação do homem branco e hétero em relação aos corpos femininos disseminados em todos os âmbitos sociais e em diferentes épocas, sendo, pois, necessárias, lutas e resistências permanentes. As histórias de Andrea, Maria Luísa, Sarita são (re)construídas e retiradas de um arquivo até então manipulado por uma estrutura social desinteressa pelos corpos femininos, mas que está continuamente sendo enfrentado pelos movimentos de mulheres, pelos ativismos e por pessoas feministas no âmbito da política, da cultura e da educação.

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A noção de literatura como produção estético-escritural aqui defendida nos permite perceber a impossibilidade de pensarmos em experiências estéticas desinteressadas, despidas de seus loci geopolíticos e corpos-políticos. Chicas muertas nos interroga a todo instante: Qual a medida dessa rígida teia machista e sexista contra a qual, ainda, batalhamos arduamente para nos livrar? A resposta, nos parece, não está, necessária e isoladamente na busca por essa ou aquela fórmula, mas na persistência de enfrentamentos das estratégias de regulação de uma linguagem/ação plenamente disseminada na sociedade que considera natural ter o homem como dominador. Por isso mesmo, nossas ações, quando pensadas na articulação de gênero, raça, classe, sexualidade, lugar e autoria ganham corpo, voz e força frente a imensa agenda que ainda temos pela frente por mudanças de comportamentos.

É inegável que os movimentos feministas ao incluírem o gênero como categoria de análise histórica (SCOTT, 1995) trouxeram fórmulas de ampliar o olhar social, perceber a falta de igualdade e equidade e a necessidade de uma sociedade estruturada em outras bases. Nesse sentido, acreditamos que as produções culturais de autoria feminina apontam para as potências de identificação e subjetividade cujos arranjos buscam alternativas outras em detrimento desse modelo patriarcal, racista e capitalista que destrói vidas. A escritora-narradora opta por finalizar Chicas muertas com o relato da tia, que conseguiu escapar de um estupro. As duas caminham com os braços colados, protegendo-se mutuamente. A cena pode simbolizar, quem sabe, a esperança de um futuro que alcance romper com as hierarquias entre pessoas, e que assegure o direito das mulheres à plena cidadania e à vida.

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Ciência e feminismo: reflexões a partir do campo