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Os relatos do campo de pesquisa

Ciência e feminismo: reflexões a partir do campo de pesquisa

3. Os relatos do campo de pesquisa

No decorrer da escrita da tese, fui, ao mesmo tempo, desenvolvendo os capítulos e refletindo sobre a minha condição nesse processo. Eu me propus a estudar, inicialmente, processos discursivos entre representantes do governo e da sociedade civil nas negociações sobre políticas para as mulheres no contexto de conferências de políticas públicas. Como mulher branca, de classe média, ao longo da minha vida, tive o privilégio de não vivenciar contextos de privação ou de negligência extrema do Estado, como pude ver o contexto de tantas mulheres vindas da periferia, negras e que sofrem com uma polícia opressora e com falta da garantia de direitos humanos mais básicos. Cito dois exemplos num universo de dezenas de outros que fazem que me veja como uma mulher de privilégios e, ao mesmo tempo, como alguém que pode fazer algo acadêmica e politicamente para transformar os contextos de desigualdade. Um deles é da primeira reunião que fui do Fórum de Mulheres de Pernambuco, no dia 09 de julho de 2015. Cheguei à sede da Organização Não-Governamental SOS Corpo, onde acontecia a reunião, já um pouco atrasada, pois antes estava na reunião ordinária do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e me causou um certo choque a diferença entre os espaços. Enquanto no CEDIM-PE, havia muitas mulheres brancas, diversas que trabalham para os órgãos estaduais e as que aparentam gozar de privilégios de classe, as que integram o FMPE e que estavam ali eram majoritariamente negras, de periferia (pelas falas delas, notei isso) e de gerações distintas. Isso está relacionado ao que Carmen Silva, em sua tese de doutorado em Sociologia, em que estudou o feminismo na Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), coloca como perfil

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das integrantes da reunião do Comitê Político Nacional do referido movimento que, à época da pesquisa, em 2014, contou com a presença de 61 mulheres de agrupamentos locais de 17 estados.

Embora tenha sido apenas uma amostra, a vivência no movimento me faz ver que não são dados desconectados da realidade de boa parte das integrantes. A estudiosa aponta que a maior parte delas, 67,2%, declaram-se pretas, pardas ou negras; 34,30% pertencem à classe baixa-pobre-periférica-popular- trabalhadora; 65% tinham entre 30 e 60 anos, o que mostra uma grande quantidade na fase adulta (SILVA, 2016). Ela acrescenta que: ―[...] Para estas mulheres, majoritariamente negras e populares, está dado que o movimento feminista é uma forma de fazer política, o que faz com que demarquem claramente suas identidades políticas individuais a partir desse pressuposto‖ (SILVA, 2016, p. 231).

Quando adentrei a sala, o que estava sendo falado já me causou um impacto. Era de uma mulher que relatava sofrer porque é pobre, negra e mora em comunidade. Segundo ela, a polícia, quando chega lá, trata as mulheres por ―raparigas‖, ―putas‖ e que ela sabia bem como elas são tratadas no bairro e que o ―bicho pega‖. Ela reitera que seu relato não é nem de revolta ou indignação, mas de medo. Logo em seguida, a responsável por coordenar a reunião explicou que a pauta era a preparação para as conferências (desde as municipais até a nacional) e que, naquele momento, estava sendo feita uma análise da conjuntura política de Pernambuco e do Brasil. Ela perguntou se nós, que chegamos atrasadas, queríamos nos apresentar naquele momento ou depois. Então, fomos nos apresentando ali e eu, muito sem graça, ―Meu nome é Gabriela, faço

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doutorado em Sociologia na UFPE e estou estudando as conferências‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 09/07/2015).

Como, depois da fala daquela mulher, que tanto me impactou, eu falaria da minha condição de doutoranda sem refletir sobre tudo o que ela significa em termos de privilégios? Aquela situação já era um indicativo de que essa pesquisa não passaria pela minha vida sem me transformar em uma socióloga feminista, levando em consideração que o impacto que tive foi, sobretudo, em decorrência do que tenho desfrutado como mulher branca e de classe média. Estudar um tema ligado a duas áreas nas quais eu acredito que estejam relacionadas às transformações sociais, democracia e feminismo, faz parte de uma escolha de estar inserida em espaços que me coloquem em contextos diferentes dos que vivenciei durante boa parte da vida e a decisão de ir a espaços onde acontecem as discussões políticas com sujeitos distintos, sejam os que estão no governo ou fora dele, esteve relacionada a esse desejo por conhecer outras realidades.

A segunda situação aconteceu na Conferência Livre realizada pela Secretaria da Mulher do Recife na Colônia Penal Feminina Bom Pastor no dia 08 de setembro de 2015. Foi uma situação extremamente chocante para mim. Nunca havia estado dentro de um presídio e esse fato, por si só, já poderia me marcar. A Secretaria da Mulher realizou o evento para, nas palavras de suas representantes, debaterem o que se considerava importante em relação às políticas públicas tanto para as mulheres privadas de liberdade quanto para as que estavam fora daquele espaço. Noventa

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mulheres foram divididas entre quatro eixos propostos pela Secretaria de Políticas para as Mulheres:

I) Contribuição dos conselhos de direitos da mulher e dos movimentos feministas e de mulheres para efetivação da igualdade de direitos e oportunidades; II) Estruturas institucionais e políticas desenvolvidas para mulher no âmbito municipal, estadual e federal: avanços e desafios; III) Sistema político com participação das mulheres e igualdade; IV) Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2015, p. 5).

Fui para um dos quatro grupos, onde havia uma representante da Secretaria da Mulher responsável por mediar a discussão. Ela perguntou se as mulheres ali presentes – cerca de 20 – tinham entendido o que elas disseram quando estavam na sala maior – o refeitório - e a resposta foi ―não‖. Ela falou sobre as ações do órgão e explicou que há pesquisas que mostram que, em relação aos presídios masculinos, as mulheres, quando presas, são, muitas vezes, abandonadas pelas famílias e pelos companheiros. Aquela colocação foi o ―pontapé‖ para que começassem os desabafos sobre negligências de diversas ordens: alimentação, lazer, saúde, trabalho, dentre outras queixas. Copio aqui algumas frases que me marcaram:

―Sabe o que mais revolta a gente? Eu falo pelo coletivo. No presídio masculino, eles têm direito a tudo e a gente não‖; ―Teve epidemia de diarreia aqui porque a galinha estava crua‖; ―Nesse feriado [7 de setembro], podia ter sido aberto aqui. Mas, não. Ficamos, como sempre, presas‖; ―A água que a gente dá descarga e toma banho é a mesma que a gente bebe‖; ―Quem tem dinheiro compra água mineral, quem não tem, toma da torneira‖; ―Toda semana, a gente tem diarreia aqui. A minha filha deixou os remédios aqui e, quando eu peguei, estavam faltando. De uma cartela de 30 comprimidos, só tinham 20‖; ―Se continuar do jeito que está, não só eu como outras vão sair piores!‖; ―A gente é privado de tudo. Jogaram a gente aqui e nos esqueceram‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08/09/2015).

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No meio desse debate, a representante explicou que a Secretaria conta com baixos recursos e começou a fazer uma explanação sobre as ações governamentais para as mulheres. Uma das participantes logo a interrompeu e perguntou: ―Sim, isso é para quando nós sairmos. E o que tem para nós, presas?‖. Ela respondeu que, realmente, no texto de 12 páginas que ela tinha em mãos, não havia nenhuma proposta para elas, mas que poderiam ser construídas ali. Fiquei me questionando como falar em direitos das mulheres ou de Lei Maria da Penha se aquelas mulheres ali tinham seus direitos humanos mais básicos negados. Há diversas outras situações que registrei no diário de campo e que não coloco aqui por não ser o foco. Mas, a frase que sintetiza o que eu ouvi naquela tarde é: ―A senhora acha que, com esse massacre29, a gente vai sair melhor

daqui? Vai não!‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08/09/2015). E o massacre, além de estar presente em suas falas, podia ser constatado explicitamente através da seguinte situação: antes de sair, reparei no aviso colado na porta da sala, em que se lia ―Por favor, não insista. A água da sala de aula é somente para as alunas‖. Era referente ao garrafão de água mineral que havia ali dentro para quem estava na escola e que não havia nos demais espaços em que as encarceradas ficam. Ou seja, só confirmava a denúncia delas de que sequer direito à água potável elas tinham respeitado, ferindo, portanto, o direito à dignidade, contido na Constituição Federal (BRASIL, 1988). Faço esse relato para dizer o quanto foi uma situação difícil e angustiante e que me fez questionar o que eu, como sujeito político, poderia fazer. Ao longo da pesquisa de campo, percebi o quanto não havia distinção entre a pesquisadora e a cidadã que permite se afetar pelos

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mais diversos problemas sociais e, nesse caso, gritantes contextos de desigualdade de gênero. Isso, conforme argumentarei posteriormente, não significa um risco para a objetividade forte, tão importante para um trabalho científico.

O choque relatado nesses dois exemplos e em tantos outros contidos no diário de campo fez que eu refletisse sobre a minha trajetória de vida de benefícios de diversas ordens, mas ao mesmo tempo, colocou-me num constante questionamento como sujeito coletivo na condição de mulher numa sociedade que carrega uma série de marcas de opressões de gênero, raça e classe.