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CAPÍTULO III – O letramento literário em Guanduba

3.1 Guanduba: das memórias aos contos e crônicas

Trabalhamos, neste projeto, em prol de uma educação libertadora, concepção freiriana que preocupa-se com a existência do homem no mundo. Este pensador propõe a libertação da educação bancária, a qual transforma o aluno “recipiente”, aquele que é designado apenas para ser preenchido de conhecimento pelo seu opressor, naquele aluno “problematizador” que é capaz de refletir sobre a sua própria condição humana, estimulando assim sua criticidade.

Questionamos, pois, a eficácia do ensino tradicional, que abdica de uma ação pedagógica voltada para a prática leitora e escrevente. Como já foi dito, assumimos, nesta pesquisa, uma proposta de trabalho com os projetos de letramento, caracterizado como um dispositivo didático que se concretiza a partir de uma SITUAÇÃO PROBLEMA (Ver quadro 5).

Para tanto, recorremos, em primeira instância, a variados encontros com a professora titular da turma, Vanusa Alves da Silva, que já acompanhava os meninos na escola. Ela, por estar mais tempo com os alunos durante a semana, constatou que o problema mais preocupante com os estudantes, não somente a turma do 5º ano, mas com todos aqueles que por esta escola tinham passado, era “a falta de acesso a leitura e o desestimulo para escrever”. Presumimos, portanto, que isso era um fator que estava sendo reproduzido incansavelmente, sem, ao menos, muitas vezes, ser percebido.

Os melhores resultados de leitura e de escrita eram atribuídos àqueles alunos que possuíam um melhor poder aquisitivo, como os filhos dos donos de comércios da região. Observa-se que eles possuíam um capital cultural diferente daqueles que antes de ir à escola tinham de dar conta das tarefas domésticas, como eles bem relataram em nossas rodas de conversa.

Com base nessas considerações, achamos pertinente aplicar um questionário6 com os pais, com perguntas abertas e fechadas, com o objetivo de obter um perfil deles. Tendo em vista a pouca quantidade de alunos na turma em questão, achamos necessário aplicar esse instrumento não somente com os pais da turma, mas com pais de alunos de toda a escola. Nossa abordagem acontecia em todo início de aula, quando os responsáveis vinham deixar os filhos na escola.

No que tange à ocupação das mães, elas são, em sua maioria, donas de casa, enquanto os pais trabalham em atividades braçais, são eles: agricultores, serventes de pedreiro, oleiros, vaqueiros e vigias. Tais constatações refletem uma formação familiar em que o homem é o chefe da família e, por isso, é responsável por suprir a necessidade familiar econômica. Às mulheres, por sua vez, cabe cuidar dos filhos e da casa, porém, ainda assim, existem aquelas que trabalham como merendeira, comerciante e diarista.

Quando questionamos sobre os textos que circulam em suas casas e sobre o que leem com mais frequência, percebemos que a bíblia e a bula de remédio são os mais encontrados e utilizados. Com isso, podemos observar que o aspecto religioso é algo muito presente no bairro e que a leitura, apesar de considerarem algo importante para a formação dos seus filhos. Conforme constatado em outra questão, é algo praticado apenas para suprir uma necessidade cotidiana de comunicação ou, então, como fonte de informação.

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Alguns questionários não apresentavam todas as respostas, ou não respondiam ao que se pedia, o que prejudicou a análise.

Quadro 6: Gêneros mais lidos pelas famílias

Fonte: Acervo da pesquisadora

Frente a esse panorama, concluímos que a problemática colocada pela professora, “a falta de acesso à leitura e o desestimulo para escrever”, estava sendo reproduzida pela falta de acesso a leituras literárias. Outra problemática colocada pela professora foi a “ausência dos familiares na escola e falta de participação destes no processo de ensino aprendizagem dos filhos”, porém, essa questão foi mais bem trabalhada em outro projeto de letramento que desenvolvemos na escola7.

Em razão disso, mobilizamos práticas de leitura e de escrita que tivessem relevância, não somente para os alunos, mas também para a sociedade e que pudessem colaborar para solucionar esse problema. Neste sentido, a criação do livro “Guanduba nas histórias de contos e crônicas”8

foi um instrumento fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, tendo em vista que ele norteou a ações de leitura e de escrita, assim como promoveu uma ação teoricamente “legitimada” pelas classes mais abastadas da sociedade e compartilhada com todos os familiares e a comunidade de SGA.

7 Esse projeto foi desenvolvido no ano de 2011 e no primeiro semestre de 2012, em um projeto de letramento

familiar que culminou com a “I Feira da Linguagem da EMJHG”. Esta atividade resultou em um impacto tão eficiente na comunidade que ficou como um legado.

8 O livro “Guanduba nas histórias de contos e crônicas”, como o título sugere, é uma coletânea de contos e

crônicas, mas nos restringimos aqui as produções dos contos, que equivalem a maioria dos textos. Bíblia Livro de receitas Quadrinhos Bula de remédio Jornal Revista Dicionário Outros

Essas práticas de letramento9 são, pois, fontes de fortalecimento e de potencialização da ação leitora; da reformulação do currículo escolar dos alunos do ensino fundamental I; da valorização do trabalho com projetos de letramentos que perpassam as salas de aula, mas que devem ter como fim o que está para além dos muros da escola; da transformação do pensamento, no sentido de enxergar os estudantes como seres que são capazes; da libertação das nossas opiniões e das nossas ações; e da democratização do acesso à literatura.

No âmbito desta pesquisa, objetivamos evidenciar a noção de que não existem alunos tabulas rasas10, mas seres de conhecimentos. Além disso, queremos corroborar os projetos de letramento frente à educação bancária, que, segundo Freire (2011), atribui ao educador a função de depositar o conhecimento na cabeça de seus alunos. Repensamos a função dos sujeitos no processo de ensino aprendizagem com a noção de agência (BAZERMAN, 2006; KLEIMAN, 2006).

A criação do livro Guanduba nas histórias de contos e crônicas foi pensada pelos próprios alunos, e nós colaboradores, bolsistas e professora da turma, acreditamos que este seria um recurso que poderia proporcionar aos alunos, às famílias e aos moradores da comunidade uma experiência de empoderamento por meio dos gêneros conto e crônica. Nessa perspectiva, evidenciamos a concepção de ENSINO COM GÊNEROS (ver quadro 5), em que consideramos a prática social o principio norteador da pesquisa.

O livro foi digitado no programa Microsoft Word 2010, e nele inserimos, ainda nas primeiras páginas, a apresentação dos organizadores, seguidos dos textos com suas respectivas ilustrações, além dos perfis e fotos dos autores, conforme podemos observar na capa do livro (Figura 8). Para a definição do nome do nosso livro, sugerimos à turma que cada aluno criasse um possível título, e, ao fazerem, realizamos uma votação, expomos todas as sugestões, e depois, cada qual escolheu o seu favorito.

9 As práticas de letramento que nos referimos são a publicação do livro e a divulgação dele, estas serão mais

detalhadamente discutidas mais adiante.

Figura 8: Capa do livro "Guanduba nas histórias de contos e crônicas"

Fonte: Dados do projeto “O habitus de estudar”

Para que alcançássemos uma prática pedagógica que contemplasse a realidade social de leitura e da escrita dos alunos era preciso que encarássemos o gênero, não como mais um componente curricular, mas como uma oportunidade para poder refletir sobre o nosso contexto de atuação. Por essa razão, os elementos estruturais dos gêneros, aqui, ficam em segundo plano, mas sem descartar sua importância.

Para a realização do projeto de letramento, as crônicas assumiram o papel de textos motivadores, os quais tinham a função de provocar no leitor a reflexão sobre aspectos sociais e, consequentemente, estimular seu senso crítico. Os contos, por sua vez, foi o gênero escolhido para a ação escritora, tendo em vista que possuíam maior apropriação dos aspectos textuais deste. Isto pode ser explicado pelo fato de os “contos de fadas” serem o gênero que eles mais leem em casa e fora dela, podemos observar pelos livros que a professora colaboradora levava para eles lerem.

Os gêneros conto e crônica não foram apresentados aos alunos, porque eles já os conheciam, mas foram trabalhados mais cautelosamente, com o enfoque para o letramento

literário. Já o gênero memória foi utilizado para a rememoração de situações que oferecessem aos alunos respaldo para suas posteriores criações literária. Cardoso e Oliveira (2015) afirmam que:

Narrar memórias é uma habilidade que se aprende. Depois de recolher memórias das pessoas mais velhas da comunidade, os/as educandos/as podem reconstruir/recriar essas memórias, sem precisar fazer uma transcrição exata da realidade, pois o ato de narrar é sempre uma criação (CARDOSO e OLIVEIRA, 2015. p. 7).

A função do gênero nas escolas é ser o recurso mediador do conhecimento com a realidade, meio pelo qual resolveremos o problema. Consideramos, portanto, que os gêneros devem ser utilizados em suas situações reais de uso, as práticas sociais, bem como compartilhados, fato que faz com que tal prática seja reconhecida. Exemplo disso é uma de nossas práticas de letramento: a produção do convite que foi construído pelos alunos e distribuído pela comunidade.

Figura 9: Convite do sarau.

Fonte: Acervo do projeto “O habitus de estudar”

Esse evento, que se realizou por motivação dos próprios alunos, revela a transformação do olhar dos alunos para o texto. Percebe-se que eles compreenderam a sua necessidade, funcionalidade para com o social. Tal atividade impulsionou não só a construção textual, mas a função prática do gênero, o ato de entregar aos familiares, amigos e vizinhos, evidenciando assim, o trabalhar com o gênero e não sobre ele.

Conforme Oliveira (2010) o CURRÍCULO escolar deve ser encarado como algo DINÂMICO (ver quadro 5), característica esta proveniente dos projetos de letramento, em que seus conteúdos podem ser modificados ao longo do desenvolvimento do trabalho, tendo em vista que o aprendizado está para além do que está prescrito no currículo escolar da grade curricular de cada disciplina. Nesse sentido, surgiu a necessidade de adaptar o cronograma às atividades que não estavam planejadas previamente.

Outra característica deste estudo é quanto ao seu caráter situacional, nos enveredamos por uma APRENDIZAGEM SITUADA na nossa pesquisa, e para melhor compreender a natureza cultural dos contos sobre Guanduba trouxemos um trecho da memória literária Sou parte deste lugar, da aluna finalista da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, da edição de 2014, que, neste ano, adotou o tema O lugar onde vivo. Nas próximas linhas, há um encontro com um passado, um resgate da história de Ouroana e da história dos sujeitos que lá vivem ou viveram. Isso mostra a relação existente entre a cultura e o ensino- aprendizagem.

Sou parte deste lugar

Aluna: Maria Eduarda Ferreira

Já foram contadas muitas histórias de crianças que faziam suas estripulias, mas nenhuma contada aqui, em Ouroana, um cenário tão especial. Separei todas em uma gaveta da minha memória e no coração. Tudo o que guardei contribuiu para manter viva a história de minha cidade.

Faz muito tempo, mas nada impede que coisas boas revirem em meu pensamento. Eu me emociono quando relembro e em questão de segundos os olhos me traem e as lágrimas rolam neste rosto com rugas que provam o quanto já vi e senti nesta minha vida completamente gratificante.

Sei que nem todos conhecem Ouroana, cidadezinha escondida no sudoeste goiano, o lugar é protegido por lindas montanhas e cachoeiras. E ela cresce devagarzinho, sem perder sua graça e simplicidade. Não sei dizer quando Ouroana entrou em minha vida e quando eu entrei na de Ouroana.

[...]

Professora: Nadyanne Bezerra Pinheiro

Escola: E. E. Itagiba Gonzaga Jayme – Rio Verde (GO)

A leitura realizada acima é importante para a nossa pesquisa pelo fato de permitir que observemos o quão significativo tem o papel da memória e da cultura para o desenvolvimento da formação leitora e escritora. Nesse sentido, as crianças do nosso projeto, ao recuperarem memórias realiza uma das ações típicas dos projetos de letramento, a ABORDAGEM COLABORATIVA (ver quadro 5), pois recorre às famílias, aos vizinhos e aos amigos para a construção destes, atuando assim como AGENTES DE LETRAMENTO.

Esta memória foi escrita com tanto carinho e admiração por Ouroana que, embora não conheçamos este lugar, ele nos parece um tanto familiar. A imagem que fazemos de Ouroana se assemelha a de Guanduba, tanto que as recordações se entrelaçam, parecendo que o tempo não passou por lá e que as evoluções tecnológicas ainda estão longe de aparecerem. Embora seja literariamente poético esse estilo de vida, é triste saber que crianças, em pleno século XXI, estejam sendo privadas dos benefícios que essas ferramentas nos oferecem.

Como já foi discutido no capítulo anterior, o conceito de cultura que adotamos neste estudo se baseia nas discussões de Oliveira (2010), e sua noção de comunidade social que é compreendida a partir de dois aspectos:

(1) como uma forma a partir da qual um grupo social se representa através das suas produções materiais (trabalhos de literatura, arte, artefatos da vida diária etc.) e os mecanismos para sua reprodução e preservação através da história; (2) como uma ‘base de significado’, referindo-se a “atitudes, crenças, formas de pensar, de agir e lembranças (narrativas) compartilhadas por membros de uma comunidade”, consideradas como ‘certas’ ou ‘corretas’, consciente ou inconscientemente, pelas pessoas que se identificam como membros dessa comunidade (p. 126).

A cultura vista dessa maneira evidencia o caráter interpretativista, em que nossas ações são realizadas de acordo com características típicas de um determinado grupo social. É por essa razão que estamos interpretando os modos de agir de crianças pertencentes a uma comunidade do meio rural, pois acreditamos que a natureza cultural desse espaço constitui e é constituída pelas práticas de letramento, exercendo um papel de pertencimento e de identidade compartilhada (OLIVEIRA, 2010).

Como já foi discutido em nosso aporte teórico, encaramos os sujeitos da pesquisa como agentes (BAZERMAN, 2006; KLEIMAN, 2006), seres que constroem o próprio saber, em interação com o mundo, transformando-o e contribuindo em favor da sua mudança.

No desenvolvimento do nosso projeto de letramento, os autores contistas- os alunos- aprendem o poder das palavras, compreendem que a aprendizagem está para além dos conteúdos, isto é, se encontra no poder que possuímos para sermos capazes de transformar o mundo. Como afirma Freire e Macedo (2011), a leitura e a escrita nascem em razão da ocultação da democracia, da marginalização dos sujeitos que são silenciados. No nosso projeto, buscamos, pois, interagir com a realidade, incentivando os alunos a questionarem a sociedade em que vivem, e assim, transformá-la. Nesse sentido, trabalhamos em prol da construção de uma COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM (ver quadro 9).

Também compõe os projetos de letramento a organização das ações. É preciso que se construa uma planificação de atividades, quadro este exposto no tópico a seguir.