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CAPÍTULO II – Pressupostos teóricos

2.1 Letramento (s): conceituação

Em meados da década de 80, no Brasil, o termo letramento foi usado pela primeira vez no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”, de 1986, pela autora Mary Kato. Anos depois, essa palavra volta a ser empregada na capa do livro “Alfabetização e letramento” e, em 1988, no livro “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”, por Leda Verdiani Tfouni. Na década de 90, nos estudos de Angela Kleiman, com sua publicação “Os significados do letramento” (1995) e Magda Soares “Letramento: um tema em três gêneros” (1998). Recentemente, o termo foi dicionarizado no Houaiss, em 2001.

Etimologicamente, a palavra letramento é uma tentativa de tradução da palavra literacy, termo em língua inglesa, cujo significado é o estado, condição ou qualidade de quem é literate, aquele que sabe ler e escrever. Esta, por sua vez, vem do latim littera, que pode ser traduzida por letra.

Antes de discutirmos a definição de letramento é preciso nos conscientizarmos de que é equivocado acreditar que todo conceito sobre o ensino da língua é uma novidade metodológica. Estamos treinados para a reprodução, para achar que todo conceito é um método a ser copiado e estabelecido. Atualmente, isso acontece quando refere ao termo letramento, cujos estudos foram iniciados por sociólogos, historiadores e antropólogos, sem relação com a educação e, ao chegar à escola, o termo passa pelo processo de reinterpretação para atingir às necessidades do trabalho escolar, e é durante esse processo que ocorrem as associações indevidas, como por exemplo, ao compará-lo com a alfabetização. Mas, deve estar claro, de que não existe método e nem métodos de letramento (KLEIMAN, 2005).

Outro equívoco recorrente é definir alfabetização como este sendo sinônimo de letramento, porém observamos que uma está contida na outra, sem se restringir a ela, são

associadas, como bem coloca Kleiman (2005). O letramento já surgiu imerso em uma significação que implica na valorização da oralidade e das linguagens não-verbais, diferentemente da alfabetização, que se limita à prática do ler e do escrever. Logo, se entendermos que a língua escrita é utilizada em diferentes contextos sociais e em práticas letradas distintas, podemos considerar que a alfabetização é uma das práticas de letramento existentes na escola. Consideramos como prática de letramento um

Conjunto de atividades envolvendo a língua escrita para alcançar um determinado objetivo numa determinada situação, associadas aos saberes, às tecnologias e às competências necessárias, para sua realização. Exemplos de práticas de letramento: assistir às aulas, enviar cartas, escrever diários (KLEIMAN, 2005, p. 12).

Tendo isso em mente, percebemos que as práticas de letramento estão inseridos nas mais diversas esferas sociais que exista a circulação de textos, como nas escolas, nas repartições públicas, nos hospitais, no trânsito, na igreja, dentre outros. De acordo com as situações de produção, não podemos considerar as práticas de letramento como um processo estático, tendo em vista que novas podem surgir, bem como desaparecer, graças a constante mudança nas relações sociais.

Dentro desta prática se observa eventos de letramento que ocorrem nas salas de aula lideradas pelo professor, ator social que ensina sobre o funcionamento da língua. Como evento de letramento podemos entender o ato que

Corresponde a uma situação qualquer em que uma pessoa ou várias estejam agindo por meio da leitura e da escrita. No exemplo dado, a leitura e a escrita iniciam o contato da mãe e do filho com os profissionais da saúde; a leitura e a escrita permeiam todo o evento entre os diferentes participantes; a leitura atenta da mãe orienta a ingestão do remédio pela criança; por fim, é depois de ler o termômetro que a mãe consegue dormir tranquila ao lado do filho já sem febre (OLIVEIRA; TINOCO; SANTOS, 2014, p. 21).

O ato de ensinar a ler e a escrever é uma das práticas de letramento que as crianças vivenciam, considerando que codificar e decodificar palavras poderiam ser um dos processos para agir na sociedade, se envolvendo em discussões políticas, econômicas, sociais, educacionais, dentre outras ações cívicas. Neste trabalho, assumimos a concepção de letramento como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (KLEIMAN, 1995).

Ribeiro e Maimoni (2006) destacam como a leitura e a escrita foi peça chave para as grandes revoluções e como ela intensificou, hierarquicamente, a detenção do poder por aqueles que a dominavam. O mesmo acontece na sociedade atual, em que a palavra é o elemento de poder; quem faz uso da leitura e da escrita para dar voz aos seus pontos de vista, sobressai aos demais.

Experimentar esse fato motiva os pais e os professores a acreditarem mais no potencial dos seus filhos e alunos, uma vez que na proposta do letramento os educandos deixam de ser silenciados e passam a ter voz na sociedade, o que antes se restringia às camadas altas.

Portanto, todo e qualquer indivíduo, mesmo antes de serem alfabetizados, já são indivíduos letrados, pois estão inseridos em uma sociedade e interagem nesse ambiente, influenciando e sendo influenciado pela cultura, que é definidora da personalidade. É preciso perceber que não nos basta aprender a ler por ler, ou a escrever por escrever, mas ler e escrever para participar socialmente. Muitas escolas ainda não reconhecem a importância da ressignificação do ensino, e principalmente das práticas de leitura e escrita. Isso mostra a dificuldade em desenraizar esse aspecto tradicional ainda tão cultural.

Além de tais aspectos, devemos considerar ainda algumas construções teóricas acerca dos estudos do letramento. Fatores que envolvem e definem o letramento se expressam, como múltiplos, dêiticos, ideológicos, culturais e críticos, nessa perspectiva, trabalhar com esta corrente teórica significa considerar aspectos à luz de estudiosos como Rojo (2009), Street (1984), Mc Laren (1988), Hamilton (2000) e Oliveira (2010).

Pesquisadores como David Barton e Brian V. Street sentiram a necessidade de cunhar uma nova nomenclatura para o termo letramento, pois “literacy” (Letramento) restringia muito o significado da palavra, hoje é utilizado “literacies” (letramentos), forma no plural (KLEIMAN, 2005), em contraponto a uma visão de leitura e escrita como uma habilidade homogeneizadora e escolarizada.

De acordo com Oliveira (2010) devemos reconhecer a pluralidade do(s) letramento(s) dada a multiplicidade do gênero, pois vivemos em uma sociedade em constante mudança. Assim como a ressignificação das práticas de leitura e da escrita, Rojo (2009) nos faz refletir sobre essa importante observação

Podemos dizer que, por efeito da globalização, o mundo mudou muito nas duas últimas décadas. Em termos de exigências de novos letramentos, é especialmente importante destacar as mudanças relativas aos meios de comunicação e à circulação da informação (ROJO, 2009, p. 105).

Nesta colocação, a autora nos chama atenção para a evolução tecnológica, coloca como exemplo dessa pluralidade o surgimento da internet, em que os serviços de comunicação e informação (as TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação) estão cada vez mais exigindo da sociedade um maior e mais rápido domínio dos novos gêneros e dos novos instrumentos para resolução de seus problemas cotidianos.

Desse modo, é necessário enxergamos os contextos sociais e culturais como ambientes que estão em constante mudança. Tendo isso em vista, é entendimento de todos que as práticas sociais cotidianas também são, naturalmente, modificadas, pois pensar em letramentos é considerar a infinidade de práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita. Elas podem ser escolares e não escolares.

Para Rojo (2009, p. 107), trabalhar com os letramentos múltiplos significa deixar de “ignorar ou apagar os letramentos das culturas locais de seus agentes (professores, alunos, comunidade escolar)”, pois o que lê e o como se lê são determinados pelo local onde estamos. Em todos os lugares existe texto, em casa, no bar, no supermercado, na farmácia, no banco, na igreja, no hospital, dentre tantos outros, mas para cada ambiente, temos situações comunicativas e propósitos distintos, e dominar a competência leitora e escritora para cada ambiente depende dos papéis que exercemos em cada um deles. O professor, por exemplo, tem como função preencher a caderneta, elaborar planejamentos, construir exercícios e provas e pesquisar sobre os conteúdos que serão ministrados em sala de aula (OLIVEIRA, 2010).

Trabalhar com o(s) letramento(s) significa considerar também o caráter dêitico das práticas de letramento. De acordo com Oliveira (2010) este se refere ao aspecto situacional, em que as ações de leitura e de escrita podem variar suas formas e funções de acordo com as condições sócio-históricas. A dinamicidade da leitura, por exemplo, ocorre à medida que uma leitura pode contemplar variadas interpretações, tendo em vista a época em que está sendo lida, as forças e poderes que atuam sobre aquele meio; dessa maneira, determinadas classes sociais legitimam suas leituras como sendo canônicas ou não. Além disso, determinados modos de ler variam de domínio para domínio, como também as restrições que existem para quem vai ler.

Considerando a amplitude com que os letramentos se organizam socialmente, tomemos como exemplo as TIC’s, estas ferramentas afetam fortemente os estudos do letramento nos dias de hoje, tendo em conta que, para se adaptar, as novas e variadas condições de uso da escrita, estas exigem dos indivíduos novas habilidades. Como destaca

Oliveira (2010), “A natureza dêitica dos letramentos suscita, assim, uma nova concepção ou (re)definição do que significa tornar-se letrado” (p. 333)

Kleiman (2008) acrescenta que é importante, para todo e qualquer ser humano, saber agir de acordo com a situação, saber o que fazer, como fazer e quando fazer. Contudo, é necessário mobilizar conhecimentos que estejam mais próximos do saber local, práticas de leitura e escrita usualmente utilizadas pela comunidade “indicando de onde eles (indivíduos) vêm, como eles e suas famílias falam, o que a escola significa para eles, enfim, um conjunto de conhecimentos sobre a escola, a turma e as condições de trabalho típicas da localidade” (KLEIMAN, 2008. p. 31). “Marginalizados”, “iletrados” ou “analfabetos”, como são consideradas pelas classes dominantes, possuem variadas práticas de letramento, e a produção destas podem ser estimuladas para a resolução de problemas.

Nesse sentido, percebe-se que a natureza situacional não é caracterizada somente pelo contexto, mas pelo conhecimento que ainda pode ser adquirido. Sendo este conhecimento situado, toda leitura e escrita ocorre em complexas situações, condições específicas, cujas dimensões se entrecruzam com o político, o social, o cultural, o ideológico e o histórico. Portanto, a realidade dos educandos, suas construções pessoais determinam sua ação escritora. Essa abordagem traz elementos importantes para a nossa análise, uma vez que não se sabe se na nossa comunidade de aprendizagem, a cultura escrita e leitora é aproveitada, ou se seu acesso é efetivado, pois se sabe que a leitura e a escrita são construídas a partir de uma intensa avaliação do contexto de produção, já que este é dinâmico e está em constante construção pelos seus participantes.

Oliveira (2010) apresenta sua concepção de ideologia conforme a teoria social crítica, que a enxerga como a capacidade de produzir, reproduzir e transformar a sociedade que está organizada de modo a favorecer determinados povos. Tendo em vista que a escrita está carregada de ideologia, é preciso olharmos para o aspecto ideológico na escrita, não como apenas um componente, mas como um recurso que é capaz de modificar o outro.

A natureza ideológica dos letramentos suscita a relação estabelecida por Street (1993) entre o modelo autônomo e ideológico, que diz respeito a uma maneira única e universal de desdobramento do letramento, aquele que afirma que as práticas do letramento são estabelecidas pelo cultural e social, pelas relações de poder, pelas descrições dominantes, dentre outros fatores. Não há, portanto, letramento sem ideologia.

Para Street (2014) o modelo ideológico de letramento considera que o uso de supostas generalizações é imprópria, pois trata-se de um modelo, cuja natureza ideológica adere à

práticas leitoras e escritoras locais, letramento este culturalmente estabelecido e reconhecido significativamente pela comunidade. Nesse processo, há a vivência de práticas desenvolvidas nas instâncias sociais que compõe uma comunidade, não somente na escolar, mas na saúde, no profissional, no familiar etc. Dessa maneira, podemos afirmar que a maneira como o letramento é encarado afeta diretamente a sociedade.

Em nossa pesquisa, quando tratamos de letramento literário, especificamente, estamos nos reportando às formas de acesso da classe baixa à literatura, e defendemos esta aproximação leitor/obra como um direito de todos os cidadãos, algo que vai além de uma aquisição ou aprimoramento das habilidades de leitura e de escrita, mas como um projeto que se preocupa com o reconhecimento destes. Percebemos, então, que tratamos aqui com uma comunidade, cuja ausência da literatura acontece naturalmente, uma vez que os cidadãos não reconhecem a importância destas para a formação humana. Trabalhamos com o letramento rumo a uma mudança de pensamento não somente de alunos e professores de uma escola, mas de toda uma comunidade, uma cultura marginalizada. Neste trabalho a ação pedagógica desenvolvida não se baseia nos conteúdos programáticos dados pelo currículo escolar, mas nas práticas sociais necessárias a formação humana.

Atentamos ainda para a perspectiva de que os letramentos são críticos advindo da teoria crítica que se preocupa em compreender as relações entre poder e conhecimento, tentando entender como na linguagem pode se reproduzir ou proporcionar o poder nas comunidades de aprendizagem. Dessa maneira, não se pode desmerecer a linguagem como um mero recurso comunicativo, mas uma maneira pela qual os indivíduos podem agir socialmente de acordo com seu contexto sociocultural. Segundo Oliveira (2010), é nesse sentido que devemos entender a linguagem, não apenas como decodificação de um código linguístico, mas como um código que é carregado de aspectos ideológicos.

Para cada comunidade de aprendizagem existe um objetivo ideológico, em que suas atribuições leitoras e escritoras são carregadas de intenções, por esse motivo é preciso que todos os agentes se sintam inseridos nos projetos de letramento. Para tanto, se faz necessário que haja valorização dos gêneros que permeiam seu contexto, assim como discussões, problemas que façam parte do seu cotidiano.

Ser crítico, portanto, é ser um aprendiz capaz de opinar e de se expressar diante das injustiças opressoras sociais, é não se aquietar diante da ausência dos nossos direitos. Percebemos, neste aspecto, a necessidade de não somente dar voz aos nossos alunos, mas

fazer com que essa voz seja ouvida e seja capaz de transformar a realidade social ainda tão desigual.

Consideramos ainda que os letramentos são culturais, nesta condição, as práticas de letramento estão imersas em determinados contextos culturais, evidenciando, fortemente, o caráter situado desses estudos. Discute-se, ainda, nessa conjectura, a relação dos letramentos ‘invisíveis’ (práticas), caracterizados por participantes ocultos, as pessoas que interagem nas relações sociais; domínios, as práticas que ocorrem dentro do evento; recursos, os aspectos ideológicos que se realizam nas práticas e rotinas, as regras que regem as práticas; e os ‘visíveis/dominantes’ (eventos), caracterizados por participantes, que são aqueles que utilizam os materiais escritos; ambientes, as situações de interação; artefatos, os materiais utilizados e atividades, as ações desenvolvidas. (HAMILTON, 2000).

McLaren (1988) considera que ter uma orientação cultural é necessário para que se desenvolva uma habilidade. Sendo assim, práticas que subvertam o que é “correto”, necessitam ser corrigidas pela cultura dominante. Esta visão acaba por reproduzir desigualdades sociais, perpetuando conceitos de exclusão marginal e determinando-as como definidoras da aquisição do letramento.

É nesse segmento que se reflete a não valorização dos letramentos locais que são legitimados como limitados/restritos, denominados de iletrados. Não obstante, são nos ambientes marginais que encontramos as mais variadas práticas de letramento, sejam eles recorrentes em ambientes rurais ou urbanos (OLIVEIRA, 2010). Por essa razão, é necessário tornar ‘visível’ tais práticas para que possa tornar possível o acesso aos letramentos considerados hegemônicos.

Assumindo essa perspectiva, não se pode excluir o local do global, uma vez que existe uma relação de complementariedade. Tomemos como exemplo a linguagem do internetês, tão condenada pelos professores na atualidade, mas é preciso enxergar essa linguagem virtual como uma oportunidade de aproximação com a cultura digital, com a cultura dos alunos, pois é imprescindível que a escola reconheça esse caráter situado dos letramentos. É importante vivenciar práticas de leitura e de escrita comumente encontradas no espaço que experienciam. Envolver estas práticas e eventos de letramento no ambiente escolar se concretiza por meio dos projetos de letramentos, como veremos no tópico a seguir.