• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Pressupostos teóricos

2.4 O direito à literatura

Para melhor compreender as crônicas e os contos, faz-se necessário discutir sobre o papel deles no fazer pedagógico e a importância destes para o desenvolvimento do projeto de letramento literário, partindo da premissa de que a literatura é um instrumento garantidor da humanização (TODOROV, 2009; CANDIDO, 1989).

Para Antonio Candido (1989), a literatura tem que ser um direito básico de todo o ser humano, uma vez que a ficção trabalha na formação do caráter de todos os sujeitos. Tais indagações são consideradas pertinentes para esta pesquisa, pois nos inserimos em um contexto em que a literatura ainda é vista como uma leitura desnecessária ou pouco importante. Isso é notório dado a ausência de biblioteca nas três escolas da comunidade de Guanduba. Sob estas condições é preciso ressaltar que o acesso à literatura é, para o ser humano, um instrumento transformador e, por isso, imprescindível.

Ainda de acordo com o literato, com a evolução atingimos um alto patamar racional, como o de conseguir resolver a maioria dos nossos problemas. Mas, concomitante a racionalidade, nós temos também a irracionalidade que nos faz destruir a própria vida por meio da guerra. Como exemplo, é citada a real situação brasileira, em que quanto mais riqueza tem, mais se intensifica a má distribuição de renda.

Desse modo, pensar os direitos humanos ressalta o egoísmo do ser humano, pois tendemos a achar que nossos problemas são mais urgentes que o do outro, sofremos, dessa forma, de uma curiosa obnubilação, porque sabemos que casa, comida, estudo e saúde são bens fundamentais para todo e qualquer indivíduo, mas não achamos normal um pobre ter acesso à cultura, como ler Dostoievski. São os chamados bens compressíveis, coisas supérfluas, e bens incompressíveis, coisas necessárias para a sobrevivência, mas o limite de cada coisa é relativo às necessidades de cada povo. Para Candido (1989) estão incluídos também nos bens incompressíveis o lazer, a crença, a opinião, a arte e a literatura. Mas, para que isso se estabeleça, é preciso que a sociedade se reorganize e configure a arte e a literatura como uma necessidade do ser humano.

Adotamos, neste estudo, a concepção de literatura dada por Antonio Candido (1989)

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações (p. 174).

Dessa forma, a literatura é considerada como um direito em qualquer lugar do mundo e em qualquer situação. O sonho, por exemplo, é um momento de entrega ao universo da fabulação, e nós, analfabetos ou eruditos, não possuímos o controle desse acontecimento, pois a literatura atua no subconsciente e inconsciente, regulando nosso psíquico durante o sono, logo ela é responsável pelo equilíbrio social.

Nessa construção social, a literatura está ligada diretamente à educação, pois ela é construtora de valores, expressa pensamentos e opiniões, assim como influencia, impulsiona seus leitores, muitas vezes, a corromper as normas sociais estabelecidas pelos padrões. A literatura leva aos seus leitores conhecimentos, a fim de torná-los reflexivos.

Para que possamos entender a função humanizadora3 da literatura, Antonio Candido (1989) coloca três faces da literatura que atuam sobre nós

(1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente (p. 176).

A primeira delas configura um elemento essencial, pois constrói e organiza as palavras e seus sentidos em nossa mente, para que, em seguida, possamos organizar o mundo. A segunda, por sua vez, trata-se do impacto da literatura, pois não nos relacionamos com simples palavras, ou decodificação de um código, mas com o efeito que esse código gera nos indivíduos, transformando emoções em sentimentos permanentes. A terceira face considera o conteúdo como objeto de conhecimento, que pode ser tido como uma aquisição consciente, mas, na maioria das vezes, ele se processa no subconsciente e inconsciente, enriquecendo nossa visão de mundo.

É nessa perspectiva que enxergamos a literatura como um instrumento que nos favorece, que nos propicia um caráter de humanidade, na medida em que provoca em nós um olhar mais sensível para o outro, para a natureza, para a sociedade. “Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (...) por isso, ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos” (CANDIDO, 1989, p. 186). Não podemos deixar que a literatura erudita se restrinja às camadas altas da sociedade, mas que seja distribuída igualitariamente, o que se torna difícil numa sociedade estratificada como a brasileira, já que parte de sua população ainda é analfabeta e menosprezada, tornando aquilo que é falta de oportunidade em incapacidade, o que chamamos de segregação cultural.

3 Para Candido (1989) humanização significa “O processo que confirma no homem aqueles traços que

reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para como próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”. (P. 180)

Assim, podemos considerar que existe na literatura níveis de conhecimento intencional emitida pelo autor e recebida pelo leitor, em que neles existem ideologias e crenças. A literatura social, por sua vez, transmite uma realidade política e humanitária, na busca por satisfazer a necessidade de conhecer os sentimentos da sociedade.

Vivemos em uma sociedade cuja composição segue em uma luta de classes, cada qual buscando seus interesses dominadores, o que rege contrariamente a educação para a liberdade. Não estamos nos referindo a uma pedagogia para o oprimido, mas dele (FREIRE, 2011). O que pretende-se não é que o sujeito reconheça, mas que ele decida.

Nesse contexto, o processo de libertação não pode ser passiva, pelo contrário, tem que reagir perante a violência do opressor, para assim poder transformar a sua realidade. Buscamos, pois, uma educação libertária, que resulte no desaparecimento da rigidez na relação professor-aluno, na afirmação de sujeitos decididos, no trabalho livre, no homem como pessoa.

Numa profunda reflexão para se fazer práxis, é que os sujeitos se descobrem oprimidos, é quando opressor e oprimido pode se organizar na luta pela liberdade, sem que se deposite a consciência crítica, mas dialogarndo para conscientizar. Nesse sentido o fazer pedagógico é reconhecido como ferramenta crucial para que os sujeitos aprendam a se libertar pelo fazer, pela criação, sendo um ser ativo, fruto de uma pedagogia humanizadora, cuja condição é permanentemente dialógica.

Para compreender o diálogo em Paulo Freire nos deparamos com as duas dimensões que compõe a palavra, a ação e a reflexão, ela é práxis e por isso é verdadeira, meio pelo qual todo ser humano tem o direito e a capacidade de transformar o mundo. Isso significa dizer que “Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (FREIRE, 2001. p. 108). É nessa ação-reflexão, que “o diálogo é uma exigência existencial” (FREIRE, 2011. p. 109), pois ele se realiza em uma troca que não pode ser considerada pelo simples ato de pronunciar, mas como um ato de criar.

Nesse sentido, trata-se, portanto, de um processo de humanização dos sujeitos, educador e educando, engajados na luta pela libertação da “educação bancária”. Porém, não há possibilidade de se ter uma educação problematizadora, quando não se rompe com a contradição existente entre educador e educando. O diálogo, condição esta para que se efetive a práxis, só existe na medida em que ambas as partes se convencem que se educam entre si,

quando não há mais autoridade no processo de aprendizagem, mas uma troca de saberes que se concretizam ao serem mediatizados pelo mundo.

Tendo em vista tais considerações, podemos perceber que o acesso à literatura deve ser direito de todo e qualquer cidadão, seja ele rico ou pobre, pois ela nos humaniza, ela constitui um direito universal, tal como o direito à educação, à saúde, ao esporte e ao lazer. É nessa perspectiva que enxergamos a necessidade da difusão da literatura, e para tanto, recorremos aos gêneros crônica e conto como elementos que promovem a reflexão e desenvolvem a criticidade do leitor. Ponderações sobre estes gêneros serão detalhados no próximo tópico.