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CAPÍTULO 3 – Dinâmicas de Género na Guiné-Bissau: Expressões e Impactos

3.4. Guiné-Bissau Padi só Fidju-Matchu

As masculinidades são construídas pela suposição de valores com base nas experiências culturais e sociais e provêm, desenvolvem-se e são mitificados pela tradição histórica, cultural e imaginária de cada país (Lizaga, 2011:5). Isto significa, por um lado, que ser homem em diferentes épocas históricas num mesmo país não teve sempre o mesmo significado, sendo que as concepções de homem, de masculino e de masculinidade não são estanques e refazem-se e reforçam-se constantemente. Por outro lado, entendemos que a cultura popular, enquanto instrumento de poder, tende a demarcar e a reforçar a visão da esfera hegemónica de uma sociedade, neste caso, das masculinidades hegemónicas, colocando à margem expressões de masculinidade e de feminilidade não dominantes.

Se as experiências culturais e sociais são o berço das concepções de masculinidade (e de feminilidade), importa enfatizar que estas experiências, que tanto podem ser históricas como circunstanciais, podem assumir várias formas e conteúdos e enformam várias entidades presentes numa sociedade. No caso guineense, tanto a colonização, como a luta de libertação nacional, mas também os rituais de iniciação presentes na maior partes dos grupos étnicos, ou a força de certas práticas religiosas e místicas, marcaram e definiram modos de ser, comportamentos, emoções e modos de pensar no masculino. A cultura popular é um destes veículos que reforçam e resgatam tradições e discursos, geralmente tendentes a manter a vigência de certas concepções de género. Da cultura popular guineense, poderíamos estudar o papel dos ditos (ditados populares), na transmissão de valores e indução de comportamentos, para analisarmos as relações de género presentes nas teias dos diferentes tipos de poder (político, simbólico, financeiro, etc.), geralmente perpetuadores da ordem social masculina. Apesar de não ser a isso que nos propomos nesta dissertação, há um ditado popular na Guiné- Bissau que encarna as demandas do presente trabalho de investigação e que iremos analisar à luz exatamente da relação existente entre a construção de masculinidades violentas e a instabilidade/violência política na Guiné-Bissau.

O ditado popular Guiné-Bissau Padi só Fidju-Matchu (a Guiné-Bissau pariu apenas filhos varões) é um lamento geralmente feito pelas mulheres para explicar as causas do sofrimento, da pobreza e das dificuldades da vida quotidiana, os conflitos permanentes a diferentes níveis e escalas, as guerras, e, claro está, a ausência de tranquilidade, de segurança e estabilidade no país. Este dito pode assim explicar um ambiente em constante convulsão social e política, onde se nota a ausência das mulheres como protagonistas das dinâmicas sociais, deixando-nos a pensar nas dimensões analíticas que uma sociedade composta por fidjus-matchus pode trazer para a análise da conflituosidade social na Guiné-Bissau. Podemos

dividir a análise com base neste ditado popular em três partes: 1) a concepção simbólica do fidju-matchu nas estruturas familiares; 2) a concepção de masculinidade presente neste dito; 3) as consequências sociais e políticas da dominação institucional masculina na Guiné-Bissau. No crioulo da Guiné-Bissau as palavras macho e fêmea são usadas como reforço dos conceitos homem e mulher e de filho e filha (ex.: mindjer-fêmea e fidju-matchu). Este reforço da condição de cada um com base no seu sexo de nascimento é mais um pleonasmo, próprio das línguas, mas podemos preenchê-la de significados culturais e simbólicos, na medida em que um indivíduo pode ser homem e não ser macho e vice-versa, ou ser fêmea e não ser mulher, dependendo das significações que dermos às palavras. Uma mulher que não consiga ter filhos, por exemplo, é considerada mindjer-fêmea, num contexto marcado pela associação da mulher à maternidade e fertilidade? Ou um homem homossexual é considerado um homem-matchu? Se atendermos que aos homens efeminados ou que sejam homossexuais é- lhes dado o nome de matchu-mindjer (macho-mulher) e o mesmo nome é dado também a mulheres que apresentem traços físicos ou comportamentais associados à masculinidade, compreendemos que a resposta será negativa. Estas questões servem para ilustrar a complexidade dos conceitos e das catalogações que escolhemos fazer enquanto grupo e enquanto sociedade para compreendermos – e controlarmos – a realidade.

Temos pois em conta que os conceitos são preenchidos de simbologias e de significados e que estes, mais do que a função dos conceitos per si, devem ser identificados para a compreensão efetiva dos fenómenos em causa. Na Guiné-Bissau, independentemente das pertenças étnicas do país, há todo um universo simbólico construído à volta dos fidju- mactchu, que são geralmente os preferidos tanto pelos homens como pelas mulheres no seio familiar. Esta preferência secundariza naturalmente as raparigas e as mulheres, facto facilmente perceptível quando as famílias pobres têm de escolher que filhos enviar para a escola, sendo os rapazes vistos como os que naturalmente terão mais chances de aceder aos lugares cimeiros na sociedade. Uma mulher que não consiga dar um varão ao seu companheiro sente por vezes a culpa e a frustração no seu relacionamento e não são raros os casos em que os homens vão à procura dessa realização arranjando outras parceiras. Os fidju- matchus funcionam também como uma espécie de extensão da figura paternal, que poderão substituir este último na sua ausência (física ou temporal), colocando neles o fardo de proteger, unir e de melhorar a vida das suas famílias. Como emanação da figura de chefe de família, os rapazes também sofrem a pressão da sua afirmação no exterior das duas casas, e aqui, a força física, que tem caracterizado a construção simbólica dos matchus, assim como as características associadas à virilidade em geral, serão as armas de combate na arena pública.

Esta é, geralmente, uma força que, em termos culturais, extravasa as barreiras biológicas e se afirma como força moral, força psicológica, força política e força económica e é aí que as coisas se complicam, porque o fidju-matchu precisará de competir com os seus pares (outros fidjus-matchus) na luta pelos recursos na sociedade e pelo poder que estes últimos conferem. As lógicas e estratégias de conquista do poder partem de uma competição geralmente bastante violenta, originando turbulências sociais de diferentes graus, que podem inclusive impedir o normal funcionamento das instituições do país. Contudo, estas turbulências são banhadas por uma certa legitimidade social e cultural, que parte da ideia de que na luta entre os fidju- matchus, “o melhor”, ou seja, o mais violento e o mais temido ou respeitado, vencerá, não importando as armas que usa para o combate. O matchu goza portanto de certa impunidade, no que respeita aos meios de conquista de poder, desde que saia vencedor da competição e consiga efetivamente a captura do poder e dos recursos.

A concepção de masculinidade presente no dito popular Guiné-Bissau Padi só Fidju- Matchu é a de uma masculinidade violenta, muito próxima da hipermasculinidade, na qual são enaltecidos valores como a coragem, a força, a determinação, o exercício da violência e da vingança como modos da afirmação da masculinidade dos indivíduos, assim como a capacidade de autodefesa na competição entre os matchus. Esta concepção bebe das legitimidades que os fidjus-matchus têm na esfera privada, nomeadamente dentro das famílias e nas estruturas étnicas – que através dos rituais de iniciação vão pondo à prova o grau de masculinidade dos indivíduos – fazendo com que a construção da identidade de género, de masculinidades e feminilidades na esfera privada seja a pré-demarcação de parâmetros sociais de comportamento e identidade na esfera pública.

Uma característica essencial das masculinidades violentas na Guiné-Bissau é a insubordinação como elemento de afirmação e de resistência face ao poder de outros matchus, o que perpetua o ambiente de tensão social e político. Os matchus expressam-se pela força, pela exacerbação da virilidade e pelo confronto permanente. Muitos matchus num só território, não poderia – nesta ordem de ideias – dar lugar a uma sociedade estável e pacífica. Por isso, falar das consequências da dominação institucional masculina implica ter-se em conta as dimensões simbólicas que norteiam a construção de masculinidades protagonizada pelos fidjus-matchus na esfera privada.

A dominação institucional masculina, já garantida pelas estruturas étnicas e religiosas, é reforçada na vida política, mantendo os homens como os principais protagonistas da cena nacional, atores da cidadania pública e da violência institucional. Nesta lógica de ideias, podemos entender que são as mesmas as violências que penetram as instituições e provocam a

convalescença das instituições e impedem o normal funcionamento do Estado, da política e da economia e aquelas que alimentam as tradições e costumes que garantem a submissão de certos indivíduos – essencialmente mulheres – dentro das pertenças étnicas, religiosas e da família. Desde modo, tanto a institucionalização da vida social, fruto das estruturas políticas e das instituições democráticas ainda incipientes, assim como a (in)formalidade da esfera privada, altamente marcada por simbolismos de dominação, partilham o mesmo pano da violência, seja ela simbólica, seja ela efetiva.

Outra visão do ditado popular Guiné-Bissau Padi só Fidju-Matchu seria a da exaltação dos valores da masculinidade, que podem fazer da hipermasculinidade objecto de admiração e de desejo, e na qual dois momentos históricos são basilares: o primeiro, a vitoriosa Luta de Libertação Nacional contra o colonialismo português que culminou com a declaração unilateral da independência da Guiné em 1973; e o segundo, na época pós- independência, o conflito político-militar de 1998 decorrido na sequência do golpe de Estado que afastou o presidente Nino Vieira do poder, depois de dezoito anos de governação. Em ambos, apesar de não comparáveis em termos de duração e de alcance ideológico e histórico, a integridade nacional foi conseguida graças à capacidade estratégica, à bravura, à resistência física e à capacidade bélica dos guineenses em geral, mas atribuída aos fidjus-matchus em particular. Conseguiu-se também, nos dois momentos, a restauração de uma nova ordem política no país, apesar dos impactos nocivos que qualquer guerra e conflito violento têm para a população. Os fidjus-matchus da Guiné tiveram assim oportunidades históricas de demostrar o seu valor (balur) e o ditado popular em análise poderá também ser testemunho da heroicidade dos matchus guineenses.

Se o provérbio Guiné-Bissau Padi só Fidju-Matchu pretende explicar o porquê de os guineenses estarem sempre em conflito, como antítese do mesmo podemos indicar o provérbio Padida di Dus Mama (Mãe de dois seios), referente às mulheres e à feminilidade, e que pretende indicar que as mulheres guineenses não são apenas mães dos seus próprios filhos mas também amamentam (cuidam) os filhos de outras mulheres e de outros homens. A ideia é a de uma figura feminina generosa, que gera vida e que cuida de todas as vidas (da sua sociedade) independentemente de pertencerem ou não à sua esfera familiar e às suas pertenças (políticas e ideológicas). Ela é a representação da Guiné-Bissau positiva, onde os valores da família, da partilha e da redistribuição permitem aos filhos viver em paz. O corpo da mulher representa aqui uma generosidade natural (dois seios), que apazigua o sofrimento e as dificuldades e que alimenta, nutre e fortalece os filhos (cidadãos). Este provérbio, apesar de reforçar estereótipos, como a imagem da mulher ligada à maternidade e aos sentimentos de

nutrição, de cuidar, de servir, ao mesmo tempo acaba por dar ênfase à mulher que se responsabiliza pela sua família e que a chefia, sendo a garante da sobrevivência dos seus membros. Uma sociedade de padidas (mulheres que acabaram de dar à luz) seria então bastante diferente de uma de fidjus-matchus?