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CAPÍTULO 2 – O Projeto de Tese

2.3. Metodologia, Recolha de dados e Significações

Na sua análise sobre o essencialismo, presente nas categorias que são usadas nos estudos sobre o Oriente (em contraponto com o Ocidente hegemónico), Spivak (1994:90-95) diz que este não é necessariamente negativo, quando se trata de um “essencialismo estratégico”, e considera que foi importante fazer reivindicações essencialistas, mesmo que as afirmações tenham sido grandes generalizações. Dá o exemplo da feminização da pobreza, as

formas pelas quais as práticas de emprego e os salários, as leis do divórcio e as políticas sociais garantem, que em muitas sociedades, as mulheres componham a maioria dos adultos pobres, e que, segundo a autora, apesar de muitas mulheres não serem pobres e a pobreza ter outras causas que não o sexo dos indivíduos, esta afirmação revelou-se eficaz para a batalha contra a pobreza de algumas mulheres, tornando-se o essencialismo estratégico vital para destacar a natureza de género da desigualdade económica.

O essencialismo estratégico poderá estar presente nesta dissertação enformando as afirmações de que a cultura di matchundadi é uma cultura anti-feminina ou a dominação masculina é responsável pelo ciclo de violência na Guiné-Bissau. O facto é que nem todos os homens funcionam segundo a lógica da cultura di matchundadi e as causas da violência no país são várias. Contudo, o essencialismo estratégico poderá funcionar como um escudo analítico para o estudo da complexidade das masculinidades na Guiné-Bissau associadas às questões institucionais e políticas do país. Deste modo, e nas palavras de Spivak, será importante “destacar a natureza do género” da instabilidade política e da violência cíclica que têm marcado a construção do Estado.

Esta dissertação é um trabalho de interpretação histórica com instrumentos interpretativos da História, da Sociologia e da Antropologia, sendo que o trabalho de campo serviu essencialmente para ajudar na contextualização da problemática e a compreender as lógicas de funcionamento da Cultura di Matchundadi.

Tendo em conta que a maior parte da produção científica sobre a Guiné-Bissau é produzida no exterior, a pesquisa bibliográfica foi essencial para salvaguardar a adequação narrativa ou reconhecer a falta dela nestas obras, no que toca à explicação dos fenómenos sociopolíticos do país. Pautámos pela multiplicidade de abordagens, recorrendo à interdisciplinaridade, quer de enfoques, quer de metodologias. Parte desta pesquisa será feita através da análise dos discursos, tanto de atores políticos e militares importantes, como através da recolha dos discursos das massas sobre as causas dos conflitos na Guiné-Bissau, da revisão e análise bibliográfica, e do recurso aos meios audiovisuais (discursos políticos) e a internet (blogs, entrevistas e documentários online). Assim, a recolha de dados baseou-se na consulta de fontes impressas, fontes orais e fontes audiovisuais.

Interessará para a análise académica, enquanto potenciais fontes de informação e de conhecimento, os conteúdos das redes sociais, dos milhares de blogs, artigos de opinião, movimentos associativos e outros grupos que se encontram por vezes distantes das universidades? Nesta dissertação, e tendo em conta a complexidade das temáticas abordadas, o conhecimento não-científico mostrou-se também ele importante para o entendimento de

questões, por vezes basilares, para a compreensão, por exemplo, de aspectos como o mimetismo político, a aparente inércia popular face à situação política do país, e também, claro está, para a compreensão da base e do sustento das construções sociais e simbólicas da masculinidade e da feminilidade como estratégias de poder na sociedade guineense. Uma parte importante do trabalho de recolha e análise de informação foi possível recorrendo a uma série de fontes: notícias (da televisão, internet e rádio); entrevistas disponíveis na internet realizadas por outras pessoas a indivíduos (alguns já falecidos) que foram parte importante do panorama sociopolítico da Guiné-Bissau; documentários produzidos sobre acontecimentos históricos importantes, tais como a Luta de Libertação Nacional e o conflito político-militar de 1998 (conhecido como a “Guerra de 7 de Junho”), este último, muito pouco documentado até hoje; Blogs, entre os quais destaco a “Ditadura do Consenso”, o “Guiné-Bissau Contributo” e o “Doka Internacional”, assim como outros mais recentes como os “Intelectuais Balantas na Diáspora”, o “Progresso Nacional” e o “Conosaba”; e por fim, as redes sociais, sobretudo o Facebook, onde tem havido uma séria discussão política, nas quais participam o cidadão comum, mas também antigos políticos, candidatos e políticos em função, tanto em páginas pessoais como em fóruns de discussão fechados.

Privilegiou-se a investigação qualitativa, que procura compreender o comportamento e as instituições através do conhecimento dos actores envolvidos e dos seus respectivos valores, rituais, símbolos e crenças, e a entrevista semi-estruturada, que serve a este fim. O trabalho de campo, realizado em três países, Portugal (Lisboa), Guiné-Bissau (várias cidades) e Senegal (Dakar), teve na cidade de Bissau o maior número de entrevistados. As entrevistas realizadas tiveram em conta a inclusão das várias ópticas existentes na sociedade guineense, por isso deu-se relevância à dimensão de género, a heterogeneidade étnica, etária, social e política dos entrevistados, procurando também incluir a visão de elementos da considerada diáspora guineense, ou seja de guineenses emigrados. Como prova da variedade dos entrevistados, temos entrevistas de políticos, trabalhadores do sexo, mecânicos, taxistas, intelectuais guineenses, estudantes, elementos da sociedade civil, funcionários do Estado, etc. Foram realizadas um total de 47 entrevistas gravadas (41 realizadas em Bissau e Senegal e 6 em Lisboa) e 6 não gravadas realizadas em Bissau. Para a realização destas entrevistas fizemos um questionário-base, que foi sendo adaptado consoante o interlocutor, sendo que optámos por dar uma imensa liberdade aos entrevistados, nomeadamente em termos de tempo, o que fez com que tanto tenhamos entrevistas de 20 minutos como de duas horas. Os locais da realização das entrevistas foram vários, tanto na capital como fora da capital guineense, tanto nas ruas como em casas particulares e universidades, incluindo os mais insólitos, como em

andamento dentro de um táxi ou no meio de um comício político. Esta diversidade de pessoas e de espaços permitiu-nos a construção de uma visão global e de cenários de análise que se foram ajustando e reajustando com base em novos enfoques e novas premissas fruto das informações recolhidas (ou da falta delas) nas entrevistas. Contabilizámos as conversas informais de que faremos referência na dissertação num total de vinte (17 realizadas em Bissau, 1 em Dakar e 2 em Lisboa), ou seja, diálogos sem recorrência a questionários e sem qualquer tipo de sequência planeada e que consistiram maioritariamente em diálogos curtos, de menos de 30 minutos, sobretudo com jovens e taxistas em Bissau, mas também conversas com pessoas mais velhas (60 ou mais anos) essas já com mais de meia hora de diálogo.

De ressaltar que alguns dos entrevistados pediram para não serem identificados em qualquer circunstância, mesmo que as entrevistas fossem gravadas, e outros houve que não aceitaram nem a gravação nem a identificação, ao passo que alguns rapidamente acederam que o seu nome fosse incluído em cada citação da entrevista. Assim, quando me referir à “pessoa entrevistada”, procurarei respeitar o pedido de anonimato, não identificando também o género do indivíduo. As entrevistas foram feitas em crioulo e em português, consoante a preferência do entrevistado e são pouco trabalhadas, deixando o discurso espontâneo, com as repetições e as paragens próprias da linguagem oral, procurando ser o mais fiel possível à forma de expressão de cada um.

Tendo assistido ao evento de três dias intitulado “Concertação Nacional para o Ensino Superior”, onde pudemos constatar que dos 80-90 professores presentes, apenas quatro eram mulheres, decidimos fazer um mini-inquérito com perguntas de escolha múltipla por forma a conseguirmos uma visão global sobre as noções de cultura di matchundadi, que foi distribuído entre os presentes, e dos quais recebemos de volta 39 preenchidos.

A viagem para a Guiné-Bissau foi agendada tendo em conta a marcação da data das eleições presidenciais e legislativas, pois o país encontrava-se a viver mais um período de transição política decorrente do golpe de estado de 12 de Abril de 2012. Adiada duas vezes, a data das eleições foi finalmente apontada para Abril de 2014 e a sua marcação visava o estabelecimento da ordem e a estabilização do país. Fazer o trabalho de campo neste contexto era importante tendo em conta que a expressão cultura di matchundadi foi mencionada pela primeira vez por Fafali Koudawo no âmbito das eleições presidenciais de 1999, onde se defrontaram os candidatos Kumba Yalá e Malam Bacai Sanhá (ambos já falecidos), e no qual o primeiro ridicularizou e insultou o segundo durante toda a campanha, e acabou por vencer as eleições com maioria absoluta. A esta forma de fazer política, Koudawo associou-a à afirmação de uma masculinidade violenta, que diminuindo a masculinidade do seu adversário,

se afirma e é reconhecido (e até mesmo valorizado). Para o analista político, este facto era uma característica muito guineense de se fazer política, em que mais do que debater ideias e confrontar lógicas de pensamento e de ação, os concorrentes esmagam em termos simbólicos e culturais o seu adversário, através das questões do foro do género. Assim, a recolha de informação neste contexto e a observação participante no processo tiveram como objectivo analisar e estudar as dinâmicas sociais em período de tensão, competição e turbulência, como costumam ser os períodos das campanhas eleitorais. Aliás, vários autores chamam a atenção para o facto de que o consenso de que as eleições resolvem os principais problemas dos países africanos, bastando para isso que sejam transparentes e expressem a vontade popular, é uma falácia, na medida em que são geralmente períodos de grande tensão política, social e militar, portanto, mais propensos a conflitos (Koudawo in Voz di Paz, 2010; Diamond, 2006; Chabal e Daloz, 1999). Não sendo o objectivo desta tese a análise das eleições da Guiné-Bissau, este período foi importante para a compreensão e confirmação das dinâmicas que se criam no cenário da competição política e também por ser mais propenso a entrevistas que abordem o tema político e das eleições. Para o estudo da cultura di matchundadi na Guiné-Bissau, um ambiente de tensão e de gestão de interesses individuais e de grupo como o período das eleições, é o espaço de análise ideal. O trabalho de campo foi realizado em período da pré- campanha eleitoral até ao fim das eleições e divulgação dos resultados.

O período eleitoral tende a ser o único período de auscultação popular nacional, em forma de eleições livres, e a altura em que a população pode pedir contas aos dirigentes do país.27 As eleições de 2014 foram marcadas por grandes expectativas de mudança, tendo em conta a (re)entrada em cena de actores com formação académica e experiência profissional relevante, entendidos como capazes de retirar o país do ciclo das instabilidades e do subdesenvolvimento crónico. A possibilidade de presenciar e participar desse sentimento popular foi largamente aumentada pela oportunidade que tive de poder participar numa campanha política, a do candidato presidencial Domingos Quadé, integrando a comitiva como observadora, que me permitiu viajar pelo interior do país, em áreas que para mim seriam de difícil acesso como Catió, Buba, Cantchungo, Bafatá, Mansoa, Buba, Mores, Djagaradji e Bissorã. Pude estar também com elementos da campanha do candidato presidencial Paulo Gomes e do candidato do PAIGC José Mário Vaz e do já entendido como vencedor das

27 Por exemplo, segundo uma pessoa entrevistada, nas eleições de 1994, na abertura democrática do país, as

campanhas políticas do PAIGC no sul do país tiveram de ser bem geridas, porque a população de etnia balanta, depois de receberem as oferendas deste partido “a cana, o tarçado e o pano” (por ordem, aguardamente de cana, a catana e os panos tradicionais), perguntaram aos dirigentes do PAIGC pelo paradeiro dos seus filhos, que sabia-se que tinham sido mortos em Bissau. O PAIGC de Nino Vieira rapidamente virou a sua batalha eleitoral para o leste do país, predominantemente das etnias fula e mandinga.

legislativas dessas eleições, Domingos Simões Pereira. Ora, estando agora a finalizar esta dissertação (2017), o cenário do trabalho de campo, marcado pela esperança popular e pela dinâmica da mudança, foi substituída pela situação calamitosa em que se encontra novamente a política guineense neste momento, conforme a cronologia abaixo:

 Eleições presidenciais de 2014, 13 de abril;

 Governo liderado por Rui Duarte de Barros (um governo de transição, na sequência do golpe militar de 12 de abril de 2012), de 16 de Maio de 2012 a 3 de Julho de 2014;

 Governo liderado por Domingos Simões Pereira, de 3 de Julho de 2014 a 20 de Agosto de 2015;

 Governo liderado por Baciro Djá, de 20 de Agosto a 17 de Setembro de 2015;

 Governo liderado por Carlos Correia, de 17 de Setembro de 2015 a 12 de Maio de 2016;  Governo liderado por Baciro Djá, de 27 de Maio de 2016 a 18 de Novembro de 2016;  Governo liderado por Umaro Sissoco Embaló, de 18 de Novembro de 2016 à actualidade.

O governo de Domingos Simões Pereira não conseguiria chegar a um ano de mandato, tendo sido exonerado através de decreto presidencial. A 8 de Setembro de 2015 um governo de iniciatva presidencial seria rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça. A este deu lugar o governo de Carlos Correia, que integrou a maioria dos elementos do governo de Domingos Simões Pereira, mas que seria também exonerado. De 18 de Novembro de 2016 à actualidade vigora o governo de Umaro Sissoco. O Presidente da República José Mário Vaz tem tido muita contestação na Guiné-Bissau e nas comunidades guineenses fora do país, com inúmeras manifestações que o acusam da instabilidade política e de perseguição política aos antigos membros do governo. Neste cenário que não é novo na Guiné-Bissau, voltamos a questionar- nos sobre a causa da instabilidade política e governativa no país, e sobre o que tem originado as violências a que todos assistimos contínua e repetidamente.

CAPÍTULO 3 – Dinâmicas de Género na Guiné-Bissau: Expressões e