• Nenhum resultado encontrado

2. TEORIA DO RESTAURO E MÉTODOS DE INTERVENÇÃO NO

2.2 A restauração enquanto disciplina

2.2.2 Contribuições teóricas do século XX

2.2.2.1 Gustavo Giovannoni

Gustavo Giovannoni teve uma atuação de grande importância em vários campos, com destaque para as suas contribuições ao urbanismo. Ajudou a consolidar o “restauro urbano” como disciplina ao formular teorias urbanísticas, com atenção especial para as relações entre urbanismo, arquitetura e preservação do patrimônio.

Giovannoni publicou uma centena de textos, contudo, para nossa abordagem sobre as formulações do autor, nos restringiremos aos escritos A Restauração dos Monumentos na Itália e o Verbete: Restauro dos Monumentos12, traduzidos para o português na coleção Artes e

Ofícios, no ano de 2013. Estes textos referem-se à fundamentação teórica e ao método para o restauro de obras arquitetônicas.

Em suas formulações, Giovannoni reafirma as proposições de Camillo Boito, consolidando uma linha de pensamento conhecida como “restauro científico” ou “restauro filológico”. Conforme veremos, esta corrente destaca os aspectos documentais das obras e as marcas de sua passagem ao longo do tempo.

O texto A Restauração dos Monumentos na Itália foi publicado originalmente no volume das atas do Congresso que deu origem à Carta de Atenas de restauração, de 1931. Tratando sobre a questão do interesse na preservação e restauração dos monumentos, o autor

12No original: “La Restauration des Monuments em Italie” em La Conservation dês Monuments d`Art et d´Histoire, Institut de La Coopération Intellectuelle, Office International dês Musées, 1933, pp.60-66; e o Verbete: Restauro dos Monumentos foi publicado originalmente em:“Restauro dei Monumenti”, em Enciclopedia Italiana, Milano, Instituto de la Enciclopedia Italiana (Trecanni), 1936, vol.29, pp.127-130.

retoma a questão da transformação, ampliação e complexificação do campo no decorrer dos anos, estabelecendo a existência de um princípio fundamental:

Não se trata mais, [...], de atribuir, ou não, um valor de monumento a um edifício e de aplicar as medidas de estudo de conservação apenas às obras mais importantes e mais belas; também as obras secundárias se devem beneficiar desses privilégios quando apresentam interesse, tanto em razão de seu caráter coletivo ou de suas relações com edifícios mais grandiosos, quanto pelos testemunhos que elas nos trazem da arquitetura corrente de diversas épocas (GIOVANNONI, 2013, p.181).

Para ele, o objetivo principal da restauração é a conservação dos monumentos, logo, “os trabalhos de consolidação e manutenção regular são, portanto, os que se destacam neste programa” (GIOVANNONI, 2013, p.181). Entretanto, para os monumentos mais recentes (não aplicável aos monumentos da Antiguidade), ele não exclui os trabalhos de recomposição, reintegração e liberação13, desde que não alterem vestígios importantes do passado, nem sejam

introduzidos falsos.

Giovannoni aponta que, independente da forma de intervenção, todo esse conjunto deve ser controlado pelos seguintes princípios:

[...] respeito por todas as fases da construção que tenham um caráter artístico ou histórico; mínimo possível de obras e de acréscimos; utilização, para tratar as lacunas e completar as linhas, de materiais novos, mas desprovidos o quanto possível de ornamentos e conformes às características de conjunto da construção; continuação das formas num estilo similar, apenas em casos em que se trate de expressões geométricas desprovidas de originalidade decorativa; indicação dos acréscimos seja pelo emprego de materiais diferentes, seja pela adoção de um sistema de completamento sem nenhuma pretensão ornamental, seja por meio de epígrafes ou de siglas; respeito pelas condições de ambientação do monumento; documentação precisa dos trabalhos, por meio de relatórios analíticos e de fotografias ilustrando as diversas fases (GIOVANNONI, 2013, p.181).

Contudo, quando se trata de um tema tão complexo como o do restauro, Giovannoni afirma que as classificações têm apenas um valor teórico e estes princípios abstratos devem ser interpretados em aplicações concretas, pois qualquer intervenção nos monumentos levanta, a todo instante, novas questões e imprevistos e, para resolvê-los, é necessário se deter “mais ao espírito do que à letra da teoria e mantendo rigorosamente o método” (GIOVANNONI, 2013, p.190).

13 Os trabalhos de liberação consistem em decidir o que pode ser sacrificado e o que deve subsistir (GIOVANNONI, 2013, p.189).

No Verbete: Restauro dos Monumentos o autor enfatiza as exigências da “Carta de Restauração” – para ele, o cânone fundamental das intervenções nos monumentos – que podem ser resumidas assim14 (GIOVANNONI, 2013, p.198):

1. Acima de tudo, devem ser realizados cuidados constantes e obras de consolidação, voltados a conceder resistência e durabilidade aos monumentos;

2. Por motivos artísticos e da unidade arquitetônica, a questão da repristinação só pode ser admitida por razões históricas, baseada em dados absolutamente seguros e não em hipóteses;

3. Exclua-se qualquer completamento dos monumentos da Antiguidade, considerando-se apenas a anastilose, isto é, a recomposição de algumas partes desmembradas com o acréscimo eventual de elementos neutros;

4. Para os monumentos vivos (em uso), serão admitidas utilizações compatíveis com as primitivas, de modo a não produzir grandes alterações no edifício advindas das adaptações necessárias;

5. Todos os elementos, pertencentes a qualquer tempo e detentores de caráter artístico e histórico, devem ser conservados, podendo ser eliminados somente os que representam deturpações inúteis, não devendo ser desejo de uma unidade estilística e do retorno à forma primitiva. E, no caso das eliminações (liberações), esses elementos devem ser avaliados e não submetidos a juízo pessoal do autor do projeto de restauro;

6. O respeito às condições ambientais do entorno dos edifícios, não devendo estas ser alteradas por isolamentos inoportunos e por construções de novos edifícios invasivos por volume, cor e estilo;

7. Os acréscimos, quando necessários, devem ter um caráter de simplicidade e com material diverso do primitivo, de modo que o restauro nunca possa induzir ao engano e representar a falsificação de um monumento histórico;

8. O trabalho de liberação deve ser metódico nas escavações e ações que tornam novamente visíveis antigas obras;

9. Todo o processo de intervenção no monumento deve ser registrado e realizado com documentação precisa constante num “caderno de restauração”, e ilustrado com desenhos e fotografias, de modo que o registro seja permanente.

14 “Carta del Restauro Italiana”. Consiglio Superiore per Le Antichità e Belle Arti, Norme per il Restauro dei Monumenti (dezembro de 1931). Note-se que, quando proferiu a Conferência de Atenas, a Carta Italiana ainda não havia sido promulgada.

Pudemos observar que muitos dos princípios do restauro filológico, em especial as formulações de Giovannoni e Boito, ainda são válidos. Contudo, após a II Guerra Mundial, muitos países europeus foram confrontados com a necessidade de reconstruir suas cidades em larga escala e essa situação iria colocar em evidência algumas das limitações do “restauro filológico”.

A proporção do problema (cidades devastadas) exigia uma abordagem além do aspecto documental da obra e também havia questionamentos de como fazer o uso das analogias nas localidades assoladas. Até o momento, as questões relativas à estética não eram abordadas e, “por conseguinte, as formulações teóricas do restauro não lidavam com meios conceituais suficientes para se abordarem obras devastadas” (KUHL, 2007, p. 199). Ou seja, podemos observar a ilusão da cientificidade total da intervenção, ao pensar que a aplicação rigorosa dos princípios expostos anteriormente garantiria a conservação/restauração dos monumentos.

Evidenciava-se, assim, que a restauração de bens patrimoniais não existia apenas com a função de abrigar pessoas e serviços, mas também pela conservação da importância desses bens enquanto portadores de valores sociais e simbólicos da identidade de um povo. Por isso era necessário agir em razão de circunstâncias particulares que, necessariamente, remetem à atribuição de um valor ao monumento.

Podemos afirmar que os princípios do restauro “filológico” tiveram papel fundamental no desenvolvimento da reflexão preservacionista. Entretanto, por se mostrar incapaz de transcender a realidade documental da obra, novas contribuições teóricas surgirão, promovendo o nascimento de outra corrente conhecida como “restauro crítico”, que passa a apontar o restauro como ato de juízo, de uma escolha crítica, de atribuição de um valor. Esta nova corrente terá como um dos seus principais expoentes o italiano Cesare Brandi.