• Nenhum resultado encontrado

2. TEORIA DO RESTAURO E MÉTODOS DE INTERVENÇÃO NO

2.2 A restauração enquanto disciplina

2.2.1 Contribuições teóricas do século XIX

2.2.1.2 John Ruskin

Em oposição às formulações de Viollet-le-Duc, merece destaque a figura de John Ruskin (1819-1900), considerado o principal teórico da preservação na Inglaterra do século XIX. Viveu durante o auge econômico e poderio militar do país. Inimigo ferrenho da industrialização, “foi um dos maiores expoentes da crítica romântica, de cunho socialista, à sociedade capitalista industrial e suas mazelas”. Entretanto, além de sua contribuição política, também é de grande importância para a sociedade moderna sua reflexão sobre o papel da arquitetura e sua preservação (KÜHL, In: RUSKIN, 2008, p.10).

Suas atividades como artista e crítico da arte começaram após sua graduação em Oxford, em 1842. Autor de As Sete Lâmpadas da Arquitetura, deu origem a uma linha preservacionista conhecida como anti-intervencionista (CHOAY, 2006). Suas formulações teóricas voltadas para a questão da preservação estão alicerçadas, especialmente, na Lâmpada da Memória, em que se colocava contra a restauração, alertando, contudo, para a necessidade de cuidado e manutenção constantes dos monumentos.

Ruskin defendia que as marcas que o tempo imprimiu nos edifícios fazem parte de sua essência e, segundo sua opinião, a restauração era “uma mentira do começo ao fim”:

[...] a mais total destruição que um edifício pode sofrer: uma destruição da qual não se salva nenhum vestígio: uma destruição acompanhada pala falsa descrição da coisa destruída. Não nos deixemos enganar nessa importante questão; é impossível, tão impossível quanto ressuscitar os mortos, restaurar qualquer coisa que já tenha sido grandiosa ou bela em arquitetura (RUSKIN, 2008, p.79).

Segundo opinião de alguns, como a de Choay (2006, p.155), a postura veemente de Ruskin contra a restauração é passível de críticas, especialmente pelo fato de ele não ter produzido qualquer teoria que legitimasse algum tipo de intervenção nos edifícios:

Para Ruskin [...], querer restaurar um objeto ou um edifício é atentar contra a autenticidade que constitui sua própria essência. Ao que parece, para ele o destino de todo monumento histórico é a ruína e a desagregação progressiva.

Entretanto, precisamos entender que, na época de suas formulações, a prática intervencionista mais usual era baseada nas reconstituições de unidade estilística, propostas por seu contemporâneo francês Le-Duc, com um desrespeito aos acréscimos no decorrer dos anos, sendo isto que ele entendia como restauração. Além do que muitos desconsideram seus apelos constantes às manutenções periódicas dos edifícios, para que os mesmos não cheguem ao arruinamento. E afirmava: “Cuide bem de seus monumentos, e não precisará restaurá-los” (RUSKIN, 2008, p. 81-82).

O elemento chave abordado na “Lâmpada da Memória” é o tempo ou a história, defendendo que é pela passagem do tempo que a arquitetura vai se impregnando de vida e dos valores humanos, sendo de grande importância construir edifícios duráveis, como também preservar os que chegaram até nós. Com isso apresenta-nos o conceito da pátina ou “mancha dourada do tempo”.

Pois, de fato, a maior glória de um edifício não está em suas pedras, ou em seu ouro. Sua glória está em sua Idade, e naquela profunda sensação de ressonância [...]. Está no seu testemunho duradouro diante dos homens, no seu sereno contraste com caráter transitório de todas as coisas, na força que – através da passagem das estações e dos tempos, e do declínio e nascimento das dinastias, e da mudança da face da terra, e dos contornos do mar – mantém sua forma esculpida por um tempo insuperável, [...] (RUSKIN, 2008, p.68).

Merece destaque também a atualidade do pensamento de Ruskin, ao reconhecer a importância da arquitetura doméstica. Para ele, as casas de moradia e suas diferenças expressam o caráter e a ocupação de cada homem, fazem parte de sua história, podendo, assim, ser elevadas à classificação de uma espécie de monumento (RUSKIN, 2008, p.61).

Outro ponto que merece destaque no capítulo “Lâmpada da Memória” é a associação feita pelo autor entre o meio ambiente natural e o construído.

A própria serenidade da natureza é gradualmente arrancada de nós [...]. Toda a vitalidade se concentra através dessas artérias pulsantes em direção às cidades centrais; o campo é transposto como um mar verde por pontes estreitas, e somos jogados em multidões cada vez mais densas sobre os portões da cidade. Lá, a única influência que pode de alguma forma tomar o lugar daquela dos bosques e campos é o poder da Arquitetura antiga. [...], lembre-se de que certamente haverá alguém que, dentro do perímetro dos muros desassossegados, preferiria outros lugares que não esses para percorrer; outras formas para contemplar com familiaridade: como aquele que se sentou com tanta frequência onde o sol batia do oeste [...] (RUSKIN, 2008, p. 84).

Kühl (p.19, 30. In: RUSKIN, 2008) aponta a importância e a atualidade desta associação precoce entre o meio ambiente natural e o construído, “uma postura que só encontrará eco nos meios preservacionistas na segunda metade do século XX”. Acrescenta ainda que é “justamente nessa coerência geral, de não dissociar a preservação do quadro cultural mais amplo, que reside o valor, a profundidade e a atualidade das ideias rusknianas a esse respeito”.

Diante do exposto, concluímos que o pensamento de Ruskin é marcado por várias questões pertinentes ao debate sobre as formas de intervir em edifícios de reconhecido valor patrimonial na atualidade, principalmente, seus apelos às manutenções constantes, o reconhecimento da importância da arquitetura doméstica. Além do reconhecimento das marcas do tempo (a pátina), essa última será corroborada nas contribuições teóricas de Boito, Riegl, Brandi e outros.