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HABILIDADES DE LEITURA E ESCRITA EM ESCOLARES ALFABETIZADOS NO SISTEMA BRAILLE E OS DESAFIOS DA AVALIAÇÃO

Diversos estudos foram conduzidos com a finalidade de avaliar habilidades de leitura e escrita e procurar formas de intervenções específicas para as dificuldades de aprendizagem de crianças sem deficiências sensoriais.

Assim, a avaliação de habilidades como consciência fonológica tem se destacado como um importante preditor de aquisição de habilidade de leitura e escrita, sendo que a consciência fonológica definida como a capacidade de refletir sobre os sons em suas diferentes unidades. (FARIA e BOTELHO, 2009). Além disso, estudos de intervenção com o treino de consciência fonológica tem se mostrado eficaz para a aquisição de competências de leitura e escrita.

Nesse sentido, Capovila e Capovila (2000), verificaram os efeitos do trabalho com exercícios de consciência fonológica em crianças com baixo nível socioeconômico e constatou que elas apresentaram melhor desempenho na escrita. Além de estudos com crianças com desenvolvimento típico, estudos de intervenção com treino de consciência fonológica revelou que crianças com Síndrome de Down também se beneficiam desse tipo de abordagem (CARDOSO-MARTINS, 1999). De fato, crianças com essa síndrome apresentaram melhoras significativas nas habilidades de leitura.

Há ainda estudos que buscam identificar outros tipos de preditores para a aquisição de leitura e escrita. Outra medida que tem se relacionado com a habilidade de leitura é a prova de nomeação automática rápida (NAR). A NAR envolve a avaliação da velocidade para nomear símbolos visuais, como objetos, cores, números e letras. Estudos foram feitos com crianças que apresentaram queixas de aprendizagem, sempre evidenciando que a nomeação rápida estava diretamente ligada à velocidade de acesso a memória de curto prazo e influenciando o desenvolvimento da leitura e escrita (FERREIRA et al., 2003). Segundo o estudo feito com o teste de nomeação rápida automatizada (RAN), o desempenho dos escolares com queixas de dificuldades de aprendizagem foi significativamente

inferior ao de escolares sem histórico de dificuldade de aprendizagem (BICALHO e ALVES, 2010).

Existem diferentes instrumentos para avaliação de leitura para crianças sem deficiência sensorial. Um desses instrumentos é o Teste de Competência de Leitura de Palavras e Pseudopalavras (TCLPP), que avalia o estágio de desenvolvimento de leitura ao longo das etapas logográficas, alfabética e ortográfica (CAPOVILLA et al. 2004). O teste é formado por uma figura e uma palavra escrita em baixo e a tarefa do examinando é verificar se a palavra escrita corresponde à figura e se está grafada corretamente.

Embora os estudos apontem relações entre consciência fonológica e nomeação automática rápida com a leitura, tais estudo tem focado principalmente em crianças sem deficiências sensoriais. Assim, parece importante entender como tais fatores se relacionam com o processo de aquisição da leitura e escrita em pessoas com deficiência visual que usam o Braille para se comunicar. Dessa forma a criação e adaptação de instrumentos para avaliação de leitura em cegos pode ser feito a partir da prova RAN (letras e números em Braille do TCLP adaptado para ser dito o nome da figura em voz alta).

A aplicação de testes dessa natureza em escolares com deficiência visual pode ajudar a esclarecer se os preditores de aquisição de leitura em pessoas sem deficiência sensorial, também apresentam as mesmas características para pessoas que usam o Braille para a leitura.

Portanto nesse processo de alfabetização, período em que a criança já passou a interagir também com outros grupos sociais, sobretudo o escolar, é preciso observar algumas peculiaridades atinentes à estrutura cognitiva da criança cega, tendo em vista que segundo estudiosos cerca de 80 a 85% das informações chegam até o cérebro de uma pessoa por intermédio da visão (ALMEIDA, 2014). Essas peculiaridades estão relacionadas a ocorrência de falhas ou lacunas na estrutura cognitiva em razão dos modelos de linguagens não verbais serem projetados para um mundo majoritariamente visual, em detrimento dos elementos hápticos. Neste sentido, os educadores que assistem crianças cegas devem levar em consideração as suas dificuldades e particularidades, pois elas precisam ser estimuladas por meios de linguagens que maximizem os mecanismos do háptico; do contrário, os educadores podem adotar métodos de condicionamento da criança cega no seu processo de alfabetização, fato este que condiz com uma prática pedagógica

desastrosa que pode causar sérios danos ao processo de aprendizagem da pessoa cega durante toda a vida.

Por mais que nossa principal pretensão aqui seja problematizar o processo de desenvolvimento de leitura da criança cega, não podemos deixar de reconhecer que este processo está inter-relacionado com o processo de escrita. Mas o fato é que, ainda na fase inicial de alfabetização é preciso atentar para especificidades de aprendizagem da criança cega, pois as garatujas em relevo e depois, as letras e sílabas em Braille devem fazer parte do contexto sociocultural que a criança está inserida, evitando dessa forma que a criança seja treinada apenas para decifrar simbologias e letras, sem nenhum significado real de mundo.

Para que a criança cega possa desenvolver um processo de alfabetização de forma plena, é fundamental que a família e a escola, sobretudo, os educadores que trabalham diretamente com a criança, valorizem e potencialize suas habilidades e sua condição de sujeito do processo, de forma integral e dentro do seu contexto sociocultural. Desta feita, a criança terá condições de problematizar suas experiências, ou seja, terá condições de explorar seus conhecimentos empíricos para servir de base a seu processo de aprendizagem de escrita e leitura, já que a leitura de mundo precede a leitura das palavras. Isso dinamizará a aprendizagem da criança cega, valorizando suas experiências, respeitando sua forma peculiar de ver ou ler o mundo e o que também é muito importante, combatendo os modelos padronizados de aprender a ler e escrever a partir de métodos arcaicos de condicionamento de estímulo e resposta, repressão pelo erro e recompensa pelo acerto, como se o erro não fizesse parte do processo de aprendizagem da criança.

No âmbito da aprendizagem da leitura a criança cega parte da manipulação de simbologias e conceitos dados pelas diferentes texturas, diversos formatos e grandezas de objetos, sinais e símbolos sonoros, exploração corporal e social de ambientes, interação social de forma verbal, experimento de coisas e situações através dos sentidos remanescentes, etc. Todos esses elementos fazem parte de uma gama bem mais diversificada de experiências que a criança usa como base para aprender a ler em uma fase posterior de alfabetização. Quando esses pré- requisitos são negados ou ignorados pela escola, essa instituição estará fracassando e consequentemente, comprometendo o processo de alfabetização da criança cega.

Para Freire (2002), as práticas reacionárias de reprovação sinalisa o pragmatismo que os educadores praticam, onde só conseguem enxergar os seus alunos como meros acolhedores do saber pré-elaborado, neutralizando as experiências de vida desses alunos, que por sinal são ricas em informação e cultura inacabada.

O avanço no conhecimento da mente humana e dos sofisticados mecanismos que entram nos processos de aprender está levando os profissionais do ensino-aprendizagem a ser mais cuidadosos e respeitosos com os alunos que eram classificados como tendo problemas de aprendizagem (ARROYO, 2004).

As afirmações contundentes de Freire (2002), sobre a concepção do ser mais enfatizam a razão pela qual entendemos que a ação do educador não pode se respaldar em ideias fatalistas que, gerada pela ideologia do determinismo, tenta neutralizar a ação do educador progressista que busca uma autoconsciência norteada pelos princípios da criticidade. Como afirma o autor, o professor que ”cheio de si mesmo” visualiza o seu aluno como um paciente, de seus conteúdos, coloca o seu fazer pedagógico a serviço da ideologia dominante e seletista e, por isso mesmo, jamais pode promover nas suas aulas um espaço prazeroso que respeite a relevância da experiência construída pelo seu aluno.

Assim como o educador, o aluno cego é um ser “inconcluso” e rigorosamente nada que ele faça - na escola ou fora dela – na intenção de ampliar a sua inquietação pelo conhecimento, deve está alheio ao espaço socioambiental da qual ele faz parte e interfere como ser humano (FREIRE, 2005, p.84). Por esta razão e outras de cunho mais sistemático, é que sustentamos a hipótese de que: os conteúdos e técnicas apresentadas aos alunos cegos devem ser acompanhados de lucidez, clareza, acessibilidade no sentido de revelar que os mesmos têm intrínseca relação com o mundo construído pelo educando. Não pretendemos aqui, ser mal interpretado e despertar no leitor a ideia que esta finalidade dos conteúdos e técnicas deva limitar-se a uma visão mercadológica e funcionalista que posteriormente poderá ser vivenciada pelo educando. Mas o que queremos dizer é que o aluno só se sente contemplado com algo que foi construído numa coparticipação com o educador, se esta construção for relevante para sua vida sociocultural (FREIRE, 2005). Portanto, o aluno cego só pratica o descrédito sobre o que foi proposto pelo professor, só abdica de tal informação, se esta, por excelência, se fazer dispensável, incapaz de despertar, de provocar a curiosidade no aluno.

Nestas circunstâncias o aluno só se submete a tentar aprender por via da disciplina rigorosa que jamais lhe causará prazer.

Deste modo, compreendemos que a criança cega se desperta para o ato de aprendizagem da leitura. É mais oportuno considerá-la como sujeito de habilidades e requisitos peculiares. Nessa perspectiva, é provável que alunos com DV que não conseguem aprender a ler e escrever, fracassem porque os pré-requisitos não podem se fazer presentes diariamente no contexto escolar e sociocultural.

Na fase inicial do processo de leitura em Braille, a criança cega passa a ter contato com termos ou gêneros linguísticos que geralmente até então, não faziam parte do seu vocábulo ou se já conhecia, era apenas de maneira verbalizada, sem experimentar. Isso pode ser evidenciado quando a criança é ensinada a ler palavras como “arco-íris”, “cor do fogo”, “estrela”, “claro/escuro”, “pôr do sol”, “cara de tristeza ou de alegria”, “gesto de reprovação ou de aprovação de algo”, etc. Esses aspectos precisam ser bem trabalhados para não se sedimentarem em vias lacunosas de interpretação do que se lê.

Essas lacunas no ato da leitura podem ocorrer também porque geralmente, a criança cega não tem contato com o sistema Braille na fase pré-escolar, algo que limita o seu vocabulário, pois nesta fase, fica restrito ao uso de linguagens oralizadas, em detrimento da linguagem escrita.

Para iniciação do ensino da leitura em Braille os educadores precisam desenvolver com a criança cega algumas atividades de predisposição que tem por finalidade estimular a criança e potencializar suas habilidades. São atividades, por exemplo, de adequação postural, estimulação da sensibilidade tátil, aprimoramento da coordenação motora, conhecimento de vários tipos de textura, desenvolvimento da oralidade com artes musicais, reconhecimento de formas geométricas e formatos de objetos, dentre outros.

Ao ensinar uma criança cega a ler é preciso que os educadores atentem para a forma como essa criança está habituada ver o mundo. Uma criança sem DV conhece as coisas partindo de uma visão global do todo e depois segue para a análise das partes, quer dizer, quem enxerga busca primeiro uma noção sintética das coisas; já uma criança cega, conhece as coisas iniciando das partes para o todo, pois através do tato ela constrói uma percepção analítica das coisas e isso é característica do ser háptico, é algo sinestésico, devendo ser valorado no

desenvolvimento da leitura em Braille, tendo em vista que é nessa dinâmica que o cognitivo da criança cega trabalha.

Ao iniciar uma leitura de letras, palavras ou frases em Braille, a criança não dispõe de elementos visuais para primeiro fazer uma visão panorâmica do que se vai ler, por essa razão, o texto Braille precisa está bem organizado e sistematizado para não confundir a criança ou levá-la a levantar hipóteses erradas do que ainda não leu, e tudo que for apresentado como proposta de leitura deverá estar contextualizado com o meio da criança.

Outro aspecto de extrema relevância a ser considerado na leitura Braille envolve a leitura simbólica, sobretudo das linguagens não verbais. Em regra, ao se iniciar o processo de leitura com uma criança vidente é imprescindível que a criança faça uso de seus conhecimentos pré-adquiridos de leitura e interpretação de imagens, simbologias e outros elementos que transmitem as mesmas informações de um texto escrito (linguagem verbal). Contudo, quando se tratar de uma criança cega deve ser observado que a mesma não pré-adquiriu a experiência de ler e interpretar imagens e simbologias meramente visuais; a leitura logográfica feita pela criança cega das linguagens não verbais se dá de forma diferenciada, ou seja, imagens que proporcione percepção tátil ou sinais e simbologias sonorizadas, ou ainda, que possa ser percebida com os outros sentidos sensoriais. Nesse contexto, entendemos que a criança cega também desenvolve leitura simbólica como predisposição para a leitura Braille, mas a partir das suas peculiaridades de percepções sensoriais (ALMEIDA, 2014).

Levando em consideração todos esses aspectos, os educadores terão condições de realizar um processo avaliativo sobre o desenvolvimento de leitura da criança cega. Poderá analisar questões como: diversidade de códigos e linguagens assimilados pela criança, o nível real ou em potencial de interpretação do que se lê, o grau de abstração a partir de experiências já vivenciadas no contexto escolar e fora dele, a diferenciação entre a escrita e a fonética das palavras, a dicção das pronúncias, o poder de contextualização dos textos lidos. Sintetizando, a avaliação deve dar conta de identificar se o aluno está progredindo nível de leitura alfabético para o nível de letramento, que é a habilidade de ler e compreender o que se está lendo.

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