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2.2 Espaço organizacional e poder simbólico

2.2.1 Habitus

A noção de habitus “[...] exprime sobretudo a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc.”(Bourdieu, 1989, p. 60). Com efeito, a referida noção visa a romper com o estruturalismo sem, contudo, cair no individualismo metodológico. Desse modo, o habitus é definido como o sistema de disposições18 duráveis, estruturas estruturadas que

17 Segundo Wacquant (2005), a origem do termo remonta a noção aristotélica de hexis,

elaborada na sua doutrina sobre Virtude, que significava um estado adquirido e firmemente estabelecido do caráter moral que orientava nossos desejos e condutas. No século XIII o termo hexis foi traduzido para o Latim como habitus (particípio passado do verbo habere: ter ou possuir) por Tomás de Aquino que acrescentou ao termo a capacidade de crescer através da atividade ou disposição durável suspensa entre potência e ação propositada. No século XX a noção de habitus ressurge na fenomenologia de Edmund Husserl como uma conduta mental entre experiências passadas e ações vindouras. Em Husserl o termo também era visto como cognato conceitual do termo

Habitualität que significava um tipo de “conhecimento habitual”. Esta última noção foi

generalizada por Merlau-Ponty na sua análise sobre o “corpo vivido” como impulsionador silencioso do comportamento social. Ainda com este sentido, o termo aparece nos escritos de Norbert Elias sobre habitus psíquico das pessoas “civilizadas” em seu importante estudo O Processo Civilizador (1995 [1937]). Considerando todos os esses sentidos anteriormente atribuídos, Bourdieu recupera e retrabalha o termo em sua teoria disposicional da ação articulando-o ao conceito de campo dentro da dinâmica da sociologia simbólica.

18 Este termo “disposições” aparecerá com freqüência nas discussões subseqüentes.

Embora fique claro no próprio texto sua correspondência com a noção de habitus, acreditamos ser importante esclarecê-lo melhor. Nesse sentido, Bourdieu (2003, p.53, grifos no original) nos diz: “a palavra ‘disposição’ parece bastante apropriada para exprimir o que recobre o conceito de habitus (definido como sistema de disposições): ela exprime, em primeiro lugar o resultado de uma ação organizadora, apresentando então um sentido próximo ao de palavras como “estrutura”; designa, por outro lado, uma

operam como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores das práticas e representações. É uma espécie de máquina transformadora que faz com que nós “reproduzamos” as condições sociais de nossa própria produção, ou seja, refere-se a algo histórico que está ligado à história individual inscrita num modo de pensamento genético, por oposição a modos de pensamento essencialista (Bourdieu, 1983, 1996c).

Está inscrito na forma em que percebemos o mundo e delineia nosso

modo de agir, corporal e materialmente, sendo composto pelo ethos19que

corresponde a um conjunto sistemático de princípios ou valores em estado prático e de disposições morais que regulam a conduta cotidiana; e pelo héxis, que corresponde a um conjunto de princípios interiorizados pelo corpo, tais como, posturas e expressões corporais que são adquiridas (Bonnewitz, 2003). Ambas trabalham como esquemas de percepção e nos ajudam a produzir nossas práticas. Pois é pelo ethos que, por exemplo, nós julgamos se uma pessoa é humilde ou soberba, se votamos num partido ou em outro e até mesmo se gostamos mais de beber vinho do que cerveja. Pelo hexis corporal, assumimos as formas de uso do corpo, andando de cabeça erguida ou curvada, se gesticulamos ao falar, se falamos alto e até mesmo se devemos sorrir ou não quando estamos numa relação com o outro.

Como história individual e grupal sedimentada no corpo, ou seja, estrutura social transformada em estrutura mental, o habitus fornece ao mesmo tempo um princípio de socialização e de individualização: socialização porque nossas categorias de julgamento e de ação, advindas da sociedade, são partilhadas por todos aqueles que foram submetidos a condições e condicionamentos sociais similares, por isso podemos falar, por exemplo, de um

maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e sobretudo uma predisposição, tendência, propensão ou inclinação”.

19 O ethos se opõe à ética que é uma forma teórica, argumentada, explicitada e

habitus masculino, de um habitus religioso, de um habitus militar, etc.; e individualização, porque cada pessoa, ao ter uma trajetória e uma localização única no mundo, internaliza uma combinação particular e incomparável de esquemas (Wacquant, 2005).

Outro ponto importante é que o habitus designa uma competência prática adquirida na e para a ação, sendo mais detalhadamente compreendido como algo: (i) social e não natural, por essa razão torna-se variável através do tempo, do espaço e, sobretudo, através das distribuições de poder; (ii) transferível para vários domínios da prática, o que explica a coerência verificada desde o consumo (músicas, esportes, alimentação, etc.) até as escolhas políticas e matrimoniais (cônjuges da mesma classe, amigos da mesma profissão, etc.); (iii) durável, mas não estático ou eterno, pois as disposições adquiridas podem ser corroídas, contrariadas ou mesmo desmanteladas pela exposição a novas forças externas; (iv) incorporado inercialmente, ou seja, tende a produzir práticas moldadas depois das estruturas sociais que a geraram; por isso, a reverberação de esquemas implantados na infância, que produz um (v) defasamento, e por vezes, um hiato entre as determinações passadas que o produziram e as atuais que o interpelam: como “história tornada natureza”, o habitus “é aquilo que confere às práticas a sua relativa autonomia no que diz respeito às determinações externas do presente imediato. [fazendo] do agente individual um mundo no interior do mundo” (Wacquant, 2005, p. 317).

Em termos práticos, portanto, o habitus, seguindo a perspectiva de Berger & Luckmann (1996), pode ser comparado a um tipo de bagagem socialmente herdada pelo sujeito mediante a socialização primária em um ambiente familiar e depois, mediante a socialização secundária, quando da sua entrada nos diversos campos sociais representados pelos espaços de interação possíveis ao longo da vida. Tal bagagem (primária e secundária), quando incorporada, apresenta-se como algo inato e, com efeito, traduz-se em estilos de

vida, julgamentos políticos, morais e estéticos, que permitem criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. Conforme falamos antes, trata- se de um senso prático que inclina os agentes a atuar e reagir em situações específicas de um modo que não é sempre calculado e que não é meramente uma questão de obediência consciente a regras. Pode ser descrito como um sentido para o jogo (Bourdieu, 2004).

Finalmente, como um alerta diante das incompreensões recorrentes sobre a noção de habitus, Wacquant (2005) procura clarificar quatro pontos importantes: primeiro, o habitus nunca é a réplica de uma única estrutura social, pois seu conjunto de disposições sobrepostas em camadas tende a gravar e armazenar a influência dos diversos campos vividos pela pessoa ao longo de sua vida. Por conta disso, em segundo lugar, o habitus não é necessariamente coerente e unificado, mas revela graus variados de integração e clivagens, que resultam das condições irregulares que o produziram ao longo do tempo e, conseqüentemente, geram linhas de ação irregulares e, por vezes, incoerentes. Terceiro, o habitus não está necessariamente de acordo com o mundo social em que evolui. Por isso, não podemos universalizar modelos de ação sem considerar que eles apenas são válidos no caso em que as condições de produção sejam idênticas ou homólogas às condições de funcionamento. Caso contrário, o habitus pode “falhar” ou ter momentos críticos de perplexidade e discrepância. Por último, o habitus não é um mecanismo auto-suficiente para a geração da ação. Ele depende do estímulo externo e, por isso, não pode ser considerado isolado dos mundos sociais particulares – campos – dos quais evoluiu. Uma análise completa da prática requer uma articulação dialética entre a gênese e as estruturas sociais do habitus e do campo.