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Tipos de capital e a sua acumulação

No documento DISSERTAÇÃO_(O) Braço forte, (A) Mão amiga (páginas 158-168)

3.3 O Exército como campo social

3.3.3 Tipos de capital e a sua acumulação

A dinâmica das posições no campo militar descrita no item anterior nos fornece um ponto de partida acerca dos objetos de disputa neste campo. Isto é, os tipos de capital que, ao serem apropriados, movimentam seus portadores para posições privilegiadas no campo. Por se tratar de um capital específico que circula num campo especifico, trata-se do capital militar que, por ser reconhecido pelos agentes do campo, torna-se um tipo de capital simbólico; porém, seguindo a discussão do capítulo dois sobre a teoria dos capitais, entendemos que existem desdobramentos do capital militar (simbólico), cuja estrutura se forma a partir do encontro de outros capitais, sejam eles: econômico, social e cultural.

No campo militar, o capital econômico sofre algumas restrições. O fato de todos a(o)s militares serem funcionários do Estado em regime de dedicação exclusiva há uma limitação legal para o exercício de atividades econômicas paralelas. Sendo assim, a maioria da(o)s militares sobrevive apenas com a remuneração paga pelo Estado, salvo nas situações de herança ou de cônjuge com atividade remunerada, o espaço de acumulação desse capital é muito restrito. Todavia, dentro dessa limitada margem de manobra, é possível auferir uma remuneração maior (ampliando o capital econômico) mediante promoções (ao subir na escala hierárquica, sobe também a remuneração), de transferências (cada movimentação que a(o) militar faz recebe uma indenização pecuniária que

99 Pelo fato de as mulheres só terem acesso às funções de especialidade técnica dentro

varia de acordo com a distância de uma sede para a outra) e de gratificações (acréscimos percentuais com base no soldo que estão atreladas a cursos, missões e funções exercidas pelo militar em determinados momentos da carreira,

algumas se tornam permanentes, outras tem a duração da atividade100) que,

muitas vezes, dependem do desejo do próprio militar em se candidatar a determinadas funções ou pelo mérito de ser escolhido para tais. No entanto, com base nos dados de pesquisa, identificamos que muitas funções, transferências e promoções são também o resultado de uma rede de relações mobilizada pelo interessado em face das oportunidades de ampliar seu capital econômico (e também cultural, como veremos a seguir), abrindo, com isso, espaço para a inclusão de um segundo tipo de capital: o capital social.

Segundo Leirner (1997a), ter um amigo no Exército capaz de ajudá-lo em alguma questão significa, de acordo com a gíria militar, “ter um peixe”. Isso é, alguém que pode beneficiá-lo por meio da influência pessoal junto aos órgãos de decisão da instituição. Desse modo, diante de uma transferência, promoção, ou indicação para cursos, a(o) militar deve, além de possuir mérito, como dizem a(o)s militares: “dobrar os meios” e acionar seus “peixes” para que dêem uma “força” no pleito. Ou ainda, manter uma relação de amizade com aqueles “que vão votar” por ou contra você. No caso particular de uma promoção ao posto de general, no relato abaixo confirma-se a assertiva:

Qual é a competência pra sair general hoje? Eu ser amigo do João, do Pedro e do Luiz que vão votar. Ah tá, mas e se eu não me dou bem com o Pedro e com o Luiz? Morre Coronel. (Entrevistado 5)

obstante a própria condição feminina.

100 Por exemplo, a gratificação de compensação orgânica pode ser incorporada à

remuneração do militar que serviu mais de cinco anos em unidades pára-quedistas. Ao passo que a gratificação de comando, vige somente no período em que o militar exerce esta função. Outro caso são as missões no exterior, como a atual missão de paz da ONU no Haiti, em que o militar, durante o período da missão, recebe uma gratificação em dólar de acordo com o posto ou graduação.

Já numa situação específica de nomeação para missão no exterior, há também a influência do “peixe” no auxílio ao pleiteante.

[...] Alexandre, uma vez um oficial general me falou o seguinte, três coisas: nunca tenha medo de pedir, tenha sempre um objetivo em mente [...] e nunca perca um contato [...] por mais que você esteja longe, aquelas pessoas que você teve contato, teve próximo, você não deve nunca esquecer, mesmo que o cara esteja na reserva [aposentado] [...] porque quando você precisar da pessoa de novo, ele vai saber te abraçar, te proporcionar aquele objetivo que você quer... [...] por exemplo, agora ta previsto que a [...] RM [Região Militar] deve ir pro Haiti no que vem, inclusive era pra ter ido agora, este ano [...] então eu estou nesse quesito aí, eu tenho perfil né? Tenho QI... “Quem Indique”... [risos] então tá tranqüilo... (Entrevistado 7)

Os que estão nos centros de decisão, além de serem os correspondentes dos que não estão, beneficiam-se pelo simples fato de “estarem lá”.

Bom, se você fala em Brasília, porque a gente sabe que em Brasília todo mundo ganha medalha (Risos). Porque tá “lá”, na fonte né? Eu sei que todos os meus amigos que estão em Brasília, todos já tão cheio de medalhas... os outros que não estão lá, todo mundo está na mesma situação, que eu: zero. Então se você tiver perto de quem pode, vai ter mais prestígio. Agora se você está jogado lá num canto, tá longe da fonte de influência, aí você não vai ser tão prestigiado.

(Entrevistada 3)

Além dos contatos com superiores e colegas de trabalho, um fator de origem desse capital é a própria turma de formação. Ou seja, as dificuldades

sofridas durante a socialização militar101 (isolamento do mundo exterior,

afastamento da família, atividades extenuantes, etc.) tendem a aproximar aqueles que “estão no mesmo barco” e, com isso, constroem-se relações duradouras que, muitas vezes, duram por toda vida. Nesse sentido, após formar-se a turma, espraia-se pelo território nacional e muitos integrantes acabam servindo junto

aos centros de decisão, próximos aos dominantes, possibilitando ajudar os “peixes” que, em muitos casos, são colegas de turma.

De alguma forma, a construção e manutenção do capital social dependem de um terceiro tipo de capital: o capital cultural, pois é a partir dele que (a)o militar será percebida(o) como um(a) profissional competente ou incompetente. Ou seja, em suas três formas (instituído, objetivado e incorporados), pode-se avaliar o “padrão” de um interlocutor, seja numa situação funcional, seja numa situação pessoal. Na forma instituída, temos os diplomas obtidos em cursos de formação e aperfeiçoamento, que conferem um título aos portadores; no caso já comentado, um curso da ECEME confere ao formando o título de oficial de Estado-Maior, distinguindo dos outros oficiais que, pejorativamente, são chamados de “manga lisa”102. Esse caso, do distintivo da

ECEME, é um exemplo também da forma objetivada do capital cultural que se apresenta materialmente na farda da(o)s militares. São os diversos brevês de curso, medalhas e condecorações visualmente reconhecidas pelos agentes do campo ao interagirem com seus portadores. Finalmente, a forma incorporada consiste nas habilidades adquiridas pela(o) militar durante sua trajetória na instituição. São, por exemplo, a aptidão física, a ação de comando (capacidade de conduzir grandes grupos), a liderança (capacidade de conduzir pequenos grupos), a voz de comando (ordens emitidas durante a prática de ordem unida), etc., ou seja, são percebidas por meio das práticas executadas em ações cotidianas do campo militar. Sendo assim, um bom desempenho da(o) militar na mobilização do seu capital cultural constitui-se num exemplo a ser seguido por seus subordinados que, em sentido oposto, torna-se um motivo para ser mal avaliado por superiores e pares.

102 Esse termo refere-se aos oficiais que, por não terem freqüentado o curso de Estado-

Maior, não possuem o distintivo da escola que é bordado na manga da túnica (uniforme exposto no canto inferior direito do Anexo 15).

Na maioria dos casos, o capital social opera em favor da(o)s militares competentes que possuem o respeito e a admiração dos seus colaboradores (peixes). Ao passo que a(o)s militares percebidos como incompetentes, tem maior dificuldade em estabelecer laços de amizade com aqueles que estão próximos dos centros de decisão. Na figura 3.5, verificaremos, em perspectiva os diversos tipos de capital apresentados.

Figura 3.5 – Esboço dos tipos de capital em circulação no campo militar

Fonte: dados primários e secundários da pesquisa.

CAPITAL MILITAR Posto, Graduação, força física,

formação operacional e intelectual, experiência de combate, missões no exterior,

vivência nacional, etc.

CAPITAL SOCIAL Promoções, indicações

para certas funções, transferências, cursos, etc. CAPITAL CULTURAL Instituído Diplomas de cursos militares Objetivado “Brevês”, Medalhas e condecorações Interiorizado

Aptidão física, ação de comando, liderança, voz de comando, apresentação, etc. CAPITAL ECONÔMICO Soldo maior, gratificações, transferências, etc.

Podemos observar que pelos três tipos de capital, colaboram-se na formação do capital militar atribuindo-lhe características que são reconhecidas pelos agentes do campo, tais como o próprio posto/graduação (que situa o indivíduo na pirâmide hierárquica, sendo o resultado dos cursos realizados), a força física (que expressa a capacidade de usar o corpo belicamente, sendo o resultado do treinamento que esse corpo recebeu), a formação operacional (que habilita o militar às funções de combate, sendo adquirido nas escolas de formação ou em missões reais de guerra), as missões no exterior, vivência nacional (que trazem um ganho cultural e econômico, sendo possível por meio do mérito e da rede de relações), entre muitos outros fatores que resultam da confluência dos capitais na formação do capital militar.

Pela discussão apresentada, podemos afirmar que o campo militar se caracteriza pela sua dinâmica própria, pelo seu objeto próprio de disputa e pela existência de agentes dispostos a jogar a jogo, cujas regras são feitas pelos e para os dominantes do campo. Na dinâmica dos capitais, fica claro que a composição do capital militar se orienta por uma ordem de influências, sendo o capital econômico o menos importante e o capital cultural o mais importante dos três, em particular na sua forma incorporada que é manifestada nas práticas cotidianas e resulta de habilidades adquiridas ao longo da trajetória do indivíduo no campo militar. No próximo capítulo, aborda-se essa incorporação como ponto-chave do que denominamos aqui de habitus militar, isto é, a in(corpo)ração das estruturas sociais particulares do campo militar.

4 O HABITUS MILITAR

“Os soldados não são como os outros homens – eis a lição que aprendi de uma vida entre guerreiros. Essa lição fez-me considerar altamente suspeitas todas as teorias e representações da guerra que a colocam no mesmo pé de outras atividades humanas.”

John Keegan

O campo militar se caracteriza como espaço relativamente autônomo cuja dinâmica conjuga, simultaneamente, as dimensões racional-burocrática e irracional-simbólica formando uma simbiose responsável pela estruturação das atividades neste tipo de campo. Vimos também que existem homologias entre o campo militar e religioso, bem como sobreposições com o campo burocrático e escolar – no caso particular dos CMs. Aproximações estas que nos ajudam a compreender melhor sua dinâmica. Ainda no capítulo anterior, observamos que as organizações militares ligadas às atividades-meio – tais como os CMs – possuem uma estrutura organizacional menos rígida do que as de atividade-fim cuja estrutura assume uma forma piramidal e suas relações hierárquicas seguem o princípio da unidade de comando. Tomadas em conjunto, essas peculiaridades nos ajudam a diferenciar o campo militar de outros campos sociais e, com isso, nos fornece os elementos iniciais para construção do contexto organizacional onde ocorrem as relações entre militares que, expostos a esse contexto, interiorizam suas estruturas transformando-as numa estrutura mental capaz de orientar suas práticas diferenciando-os de outros indivíduos.

Por conseguinte, o campo militar com suas regras, posições e capitais somente terá sentido para o indivíduo quando introjetados por meio de uma ação

pedagógica socializadora. Isto é, um trabalho de inculcação da doxa realizado durante o contato inicial através dos cursos de formação, nos quais ocorre a construção do que denominamos aqui de habitus militar. Todavia, a preservação, atualização ou subversão desse habitus depende principalmente da sua manutenção e reforço (ou enfraquecimento) quando a(o) militar prossegue na carreira e passa a conviver com a dinâmica das organizações militares em que trabalha, (re)produzindo os conteúdos aprendidos nos cursos relativizando-os conforme as especificidades de cada organização.

Outra aproximação importante que deve ser assinalada desde já quando falamos de habitus militar é a sua histórica relação com a construção social da masculinidade. Ou seja, se a construção do Brasil foi um empreendimento militar, a construção do Exército foi um empreendimento masculino. Mas isso não é uma particularidade brasileira. Tanto porque a nossa herança militar remete ao Exército português (primeira tropa regular a desembarcar no país) que, por sua vez, remete aos movimentos políticos que envolveram a transição do medievalismo para a modernidade no continente Europeu. Assim, para entendermos essa herança torna-se necessária uma breve digressão acerca da relação entre masculinidade e militarismo nesses espaços de interação que nos antecedem.

Nesse contexto, Oliveira (2004, p.21) observa que “os contrastes entre o modelo de homem moderno e seu correspondente medieval podem ser abordados por intermédio de mudanças em aspectos importantes nos processos de sociabilidade”, ou seja, a transição do período medieval para a Idade Moderna trouxe consigo a transformação do cavaleiro em cavalheiro que significou a passagem da nobreza de espada para a nobreza de corte, sendo, posteriormente, ambas absorvidas pela sociedade burguesa que numa operação de alquimia histórica soube conciliar essas duas subjetividades num ideal de homem burguês, corajoso (porque enfrenta as adversidades da esfera pública),

sóbrio (porque mantém um casamento monogâmico), responsável (porque representa e cuida da família), honrado (porque defende seus compatriotas em conflitos armados) e disciplinado (porque tem o controle das suas emoções), entre muitos outros atributos que se transfiguraram e passaram a compor um ideal moderno de masculinidade.

Entretanto, a transição de um modelo de sociedade para outro não representa absolutamente uma ruptura. Há sempre a preservação de alguns fundamentos, pois “[...] sempre existem aspectos ou características das formações sociais precedentes que permaneceram na nova configuração, ainda que modificados ou reformulados” (Oliveira, 2004, p. 21) e o lugar ideal para preservação de determinadas subjetividades, em particular a de cavaleiro membro de uma nobreza de espada, cuja honra esteve sempre vinculada a sua estirpe aristocrática e a sua capacidade de defendê-la na espada, sem dúvida foi a organização militar. No caso da honra medieval (que deveria ser defendida a todo custo), o duelo se apresentava como um meio de defendê-la, ou seja, uma instituição social que definia um comportamento vinculado à dignidade e a reputação de pertencer a uma determinada linhagem.

Ainda que a Idade Moderna sugerisse a transição do cavaleiro para cavalheiro não impediu que “[...] alguns elementos constitutivos do ímpeto de duelar fossem transportados para a propensão bélica entre os Estados modernos e seu emergente nacionalismo” (Oliveira, 2004, p. 26). Desse modo, a necessidade de manutenção da soberania nacional por meio do monopólio do uso legítimo da violência nas mãos do Estado (conforme apresentamos no capítulo anterior) resultou na emergência de instituições capazes de gerir os meios de uso dessa violência: a organização militar moderna. Nela, o homem burguês – desvinculado de uma linhagem nobre – encontra na função de soldado a possibilidade de continuar defendendo sua honra na espada. Não mais uma honra vinculada à estirpe aristocrática, mas sim, uma honra vinculada a uma

causa nobre da modernidade: a defesa da pátria. Para tanto, seria necessário criar mecanismos para controlar o ímpeto de possuir em suas mãos a força da espada. Com efeito, emergem os processos de inculcação da hierarquia e da disciplina no sujeito militar que, na confluência dos ideais burgueses permeados pela tradição da espada, fosse capaz de agir docilmente na paz e furiosamente na guerra, cujo corpo pudesse ser forte e bruto o suficiente para resistir à dor, ao perigo e à possibilidade da morte diante da crença em algo maior: a nação.

A correspondência entre honra, virilidade e violência, portanto, se materializou na figura do homem-soldado-patriota capaz de “[...] levar a vida de forma menos sentimental e com mais sobriedade, nem que para isso tivessem que se comportar, em algumas situações, de modo mais brutal e bárbaro” (Oliveira, 2004, p. 38) e, desse modo, no decorrer de duas guerras mundiais subseqüentes, institucionalizou-se o ideal militar como sinônimo de ideal masculino. Afinal, no limite da referida correspondência, “[...] antes uma morte honrada a uma vida difamada e indigna” (idem, p.42).

Nesse sentido, observamos que a doxa militar nos remete à doxa masculina e que esse processo antecede a própria emergência do Exército Brasileiro. Por conseguinte, a lógica do campo militar estaria associada a esse movimento histórico, cuja reprodução depende de uma ação pedagógica capaz de inscrever nos corpos a doxa e transformá-la em disposições duráveis capazes de orientar as práticas no referido campo. Sendo assim, no presente capítulo, trata-se dessa incorporação e, principalmente, da reprodução desses padrões apreendidos na fase de formação como um movimento dinâmico e constante de interiorização e exteriorização das estruturas sociais, isto é, a própria lógica subjacente ao conceito de habitus. Por isso, não nos deteremos nessa fase (formação) – de extrema importância – mas sim, em como tais conteúdos são transformados e reproduzidos ao longo da carreira militar e como pode variar

segundo o tipo de formação, o contexto organizacional e a forma como é desenvolvido.

O capítulo se divide da seguinte forma: inicialmente apresentamos uma breve discussão sobre socialização organizacional descrevendo seus principais pontos e desdobramentos, em seguida, traçamos um esboço de sociologia militar por meio de três eixos temáticos que julgamos importante para compreender a dinâmica das relações na organização militar: poder/distinção, hierarquia/disciplina e honra/tradição. Finalmente delineamos as facetas do habitus militar por meio de uma descrição da hexis e do ethos militar.

No documento DISSERTAÇÃO_(O) Braço forte, (A) Mão amiga (páginas 158-168)