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Os limites da dominação simbólica

Encerrar uma revisão teórica da obra de Pierre Bourdieu sem destacar seus limites seria pressupor que nela não existem lacunas – o que é impossível no campo científico. Sendo assim, até mesmo para relativizar seus conceitos, nesta seção, apresentamos (de forma não exaustiva) algumas objeções ressaltadas pelo próprio autor e pelos seus críticos acerca da dominação simbólica e dos limites desse quadro teórico na análise social e, conseqüentemente, organizacional. Boa parte das críticas dirigidas à Bourdieu, de uma forma ou de outra, passa pela denúncia de uma visão tradicional da estrutura social defendida por ele. Ou seja, uma sociedade dividida pela lutas de classes – mesmo que simbólica, não modifica a visão de classes –, em que não há espaço para outras manifestações do social que não seja o conflito. Nesse sentido, acusam-no de ser o teórico da reprodução e de veicular um determinismo social em que os atores estariam presos, de uma forma ou de outra, às estruturas, sejam elas sociais ou mentais. Todavia, mesmo que trace uma imagem fortemente estruturada do mundo social, Bourdieu não defende a idéia de um mundo com leis sociais onde as ações humanas não possam modificá-lo. Até porque, para ele, são os próprios agentes que constroem e atualizam a estrutura social.

Sobre a noção de classes, Bonnewitz (2003) sistematiza diversos autores que criticam essa noção, afirmando que se trata de um erro considerar que exista ainda uma sociedade de classes, tal qual afirma Bourdieu. Primeiro, porque a burguesia (detentora do capital) não existe mais e, segundo, que a classe operária (desprovida de capital), progressivamente menor, atravessa uma crise de identidade advinda do declínio do marxismo no mundo. Ademais, complementa Bonnewitz, a ascensão do individualismo rompe a homogeneidade dos grupos e abre a possibilidade de os ricos escolherem viver como proletários e operários

viver como burgueses. Outro ponto que se choca com essa noção de classes é a natureza dos conflitos contemporâneos que fragmenta as classes em grupos de interesses organizados em torno de causas rurais, étnicas, de gênero, etc.

E sobre essa suposta classe desprovida de capital que Lahire (2002) incide sua crítica à Bourdieu. Para esse autor, a teoria dos campos sociais empenha grande esforço em iluminar os grandes palcos onde acontecem as disputas pelo poder, mas se esforça pouco para compreender os que montam esses palcos, instalam equipamentos, varrem o chão, etc. Ou seja, preso aos critérios de posicionamento social relativos ao volume e estrutura de capital, Bourdieu acaba negligenciando a maioria dos indivíduos da nossa sociedade, que são os excluídos dos jogos de poder: os dominados. Salvo quando eles são alvos da violenta ação pedagógica – que neste caso visa a converter seu habitus, eles são vistos como indivíduos “fora-de-campo”. Nesse sentido, Lahire aproveita a lacuna deixada por Bourdieu e argumenta também que os dominantes podem estar “fora-de-campo” na medida em que sua participação no espaço social não se limita apenas ao campo de disputa onde acumulam seus capitais. Pois eles operam incessantes passagens de um campo ao outro, na qual ora são produtores, ora são meros consumidores alheios às disputas, como, por exemplo, o advogado que freqüenta uma academia de ginástica e “consome” seus serviços sem se preocupar sequer com as lutas por capital travadas entre os professores de educação física ou proprietários da academia. Mesmo sendo um jogador no campo jurídico, esse mesmo agente seria passivo no campo do fitness e, com isso, estaria, homólogo a um dominado, “fora-de-campo”.

Ainda na trilha das pessoas comuns, ignoradas pela teoria de capitais bourdieusiana, De Certeau (2000) vai descrevê-las como “pessoas ordinárias” que no dia-a-dia das suas práticas (similares as das pessoas não tão ordinárias) desenvolvem modos de fazer que se constituem microresistências fundadas na suas microliberdades de mobilizar recursos insuspeitos que lhes conferem uma

capacidade de agência capaz de refutar todas as teses sobre a passividade dos consumidores e a massificação dos comportamentos. Essa visão microssociológica, e até etnográfica, da vida cotidiana que se constitui no contraponto principal da macrossociologia bourdieusiana fundada na circularidade impenetrável dos conceitos de campo e habitus. Para De Certeau, as “maneiras de fazer” ou a “arte de fazer”, fundadas em conhecimentos muito antigos, são táticas que buscam de forma astuta, silenciosa e criativa burlar a ordem dominante. Isto é, uma antidisciplina capaz de politizar as práticas cotidianas e transformar acontecimentos em “ocasiões” propícias para o “mais fraco” tornar-se “mais forte”, manobrando “[...] a realidade fugidia e massiva de uma atividade social que joga com sua ordem” (De Certeau, 2000, p. 52). Nesse momento, portanto, o domínio relacional do binômio campo-habitus é rompido e emergem comportamentos alheios ao senso prático determinado pelas disposições duráveis, e os “fora-de-campo” movimentam-se sutilmente transgredindo a ordem simbólica cujas “normalidades, generalidades e rupturas cederiam diante do pulular transversal e ‘metaforizante’ dessas microatividades diferentes” (idem, p.128, grifo original).

Além das críticas direcionadas aos conceitos e posições teóricas de Bourdieu, há um conjunto de críticas que são direcionadas às análises específicas do autor. Como é o caso do seu trabalho sobre a teoria dos gostos e das classes sociais discutido em seu livro La Distinction (“Distinção” em português) publicado originalmente em francês no final dos anos 1970, considerado um de seus trabalhos mais importantes. Sobre esse trabalho o filósofo alemão Axel Honneth (1995) expõe uma dura análise do que ele chama de “visão utilitarista da vida social”, isto é, para ele, o trabalho de Bourdieu sobre os gostos de classe tem o mérito de revisitar o conceito de classe social da teoria marxista, ampliando sua perspectiva com a inclusão do componente cultural que Bourdieu denomina de “capital cultural”, reconfigurando o espaço

social a partir dessa classificação de chave-dupla: economia-cultura. Por outro lado, ao fazer isso, o autor esbarra no limite da teoria do conflito e oferece “[...] uma teoria da ação que analiticamente coloca as práticas simbólicas num mesmo nível que as práticas econômicas” (idem, p.186) assumindo, com isso, que toda a vida social resume-se numa grande arena de disputas pela maximização e acumulação desses capitais. Assim, de acordo com Honneth, Bourdieu transforma o mundo das formas simbólicas num mundo de lutas sociais, cuja lógica economicista dos “lucros simbólicos” impõe um ritmo concorrencial aos atores que, presos pelas estruturas incorporadas (habitus), não vêem outra saída senão competir pelos capitais em circulação no espaço social44.

Outra crítica especifica refere-se ao livro A Dominação Masculina e suas proposições acerca da condição feminina na ordem simbólica masculina e sua homologia com a hierarquia sexual da comunidade Cabília. A questão principal colocada pelas feministas seria, segundo Perrot & Galster (2003), como a mulher dominada poderia pensar acerca da dominação? As respostas, em forma de crítica, são postas considerando-se os próprios instrumentos teóricos desenvolvidos por Bourdieu. Nesse sentido, Adkins (2003), retomando o trabalho de MacNay (1999) sobre a possibilidade de mudança social na questão de gênero a partir da própria reflexividade desenvolvida por Bourdieu, argumenta que existe uma falha na formulação bourdieusiana da reflexividade. Pois se a postura reflexiva consiste num momento de ruptura entre as estruturas subjetivas e objetivas, tendo o sujeito como ator que reflete sobre sua própria condição, então, essa ruptura parte necessariamente do sujeito. Todavia, mesmo

44 Em outro trabalho, Honneth (2003) apresenta uma alternativa à visão utilitarista

argumentando que as lutas sociais pela mudança e transformação social com vistas a reduzir a dissimetrias entre os grupos e as formas de exclusão consideram a também a questão do reconhecimento mútuo por meio do amor (no espaço privado das relações), da igualdade (no espaço dos direitos instituídos) e da solidariedade (no espaço das relações interdependentes). Princípios que buscam de certa forma ampliar a visão

o próprio Bourdieu afirmando uma relação de mão dupla entre campo-habitus, ou seja, estruturas estruturadas que operam como estruturas estruturantes, Adkins (2003) identifica que, ao tratar da mudança social, o autor assume uma postura determinista quando afirma o predomínio do campo sobre o habitus na medida em que esse tende a se ajustar àquele que é visto como algo objetivo, externo. Então se dilui aí a possibilidade de o habitus modificar o campo, logo, de que haja uma ruptura entre um e outro a partir da reflexividade.

Considerando as posições de Adkins (2003) e MacNay (1999), Chambers (2005) retoma a discussão sobre gênero na teoria bourdieusiana e ressalta a contribuição desse autor no que tange às instâncias de reprodução da dominação dispostas não apenas na família, mas também na escola, na Igreja e no Estado. Entretanto, ela confirma o determinismo da teoria e sugere duas saídas para o problema: (i) uma aproximação com o conceito de “conscientização” elaborado pela feminista Catharine MacKinnon (1989) como forma de dinamizar a noção de reflexividade e, com isso, abrir espaço para uma ruptura com a estrutura patriarcal de dominação; e (ii) estabelecer uma relação entre habitus gendrado e os diversos campos aos quais ele responde, pois, na formulação original, Bourdieu sugere que o habitus de gênero trata-se de uma estrutura mental trans-histórica desenvolvida com base em normas gendradas que, num longo processo de naturalização, formam uma visão andrôcentrica do mundo e, portanto, não se articula – como é previsto na teoria do habitus – a uma estrutura social específica. Com efeito, Chambers sugere que pensar nesse habitus a partir dos campos sociais, ou seja, como ele se manifesta em cada campo, pode ser uma via de análise que possibilita verificar quais são as condições sociais de (re)produção mais favoráveis à mudança. Logo, torna-se possível pensar na movimentação das mulheres fundamentando-se nas regras economicista de que todas as lutas têm um fundo utilitarista de acumulação de capitais (em todas as suas formas).

específicas desses campos e não mais considerando regras trans-históricas de um suposto metacampo dominado pelos homens. Pois se, como afirma Bourdieu (1989), os campos sociais são prismas que refratam o espaço social, então, podemos inferir, com base nisso, que a dominação masculina manifesta-se em cores diferentes, assumindo uma dinâmica própria em cada campo social particular.

Diante das críticas Bourdieu (1993, p. 263) afirma que “textos, como nós sabemos, circulam sem seus contextos”. Isto é, não levam consigo as condições sociais de produção do campo em que foram escritos e, por conta disso, são passíveis de equívocos de interpretação. Em parte, Bourdieu acerta ao evocar o contexto como condição para a compreensão; no entanto, usa também esse argumento para justificar suas próprias posições. No caso específico da dominação masculina, ele reconhece – de forma muito discreta – que mesmo diante dos processos naturalizados “[...] há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo e particularmente das realidades sexuais” (Bourdieu, 1999, p. 22), mas oferece poucas possibilidades de isso ocorrer (Adkins, 2003; Chambers, 2005; Lovell, 2000; McNay, 1999; Mottier, 2002). Nesse sentido, grande parte do nosso esforço nesta dissertação foi o de compreender o contexto em que a discussão sobre gêneros se desenvolve no trabalho de Bourdieu (1999), confrontando-o com seus trabalhos anteriores e, com isso, re-articular algumas posições que são pouco claras numa leitura isolada deste trabalho. Em adição, consideramos que observar essas críticas constitui-se num meio de sofisticar nossa análise. Assim, parte do nosso esforço foi, particularmente no que se refere aos contextos específicos de reprodução, verificar algumas delas no estudo empírico realizado.

No próximo item apresentam-se os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa. Contudo, antes mesmo disso, apresentamos o modo de trabalho bourdieusinano denominado de “praxeologia social”, em confluência

com outros métodos de pesquisa comumente utilizados no campo da análise organizacional como uma extensão do quadro teórico apresentado anteriormente. Afinal, como o próprio Bourdieu (1989, p. 24) afirma em sua sociologia reflexiva a respeito da separação entre teoria e método: [...] penso que se deve recusar completamente essa divisão [...] pois estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto combinando duas abstrações”.