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A hipótese de interferência da Prefeitura Municipal na ZEIS por meio de Decreto

4. O PROCESSO DE ALTERAÇÃO DO PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO DE

4.1 A Lei Complementar nº 76/2010

4.1.4 A hipótese de interferência da Prefeitura Municipal na ZEIS por meio de Decreto

O art. 5º da LC nº 76/10 prevê hipótese na qual o Prefeito, por meio de Decreto, poderá estabelecer exceções aos parâmetros urbanísticos previstos na ZEIS pelo PDPFor e pelo plano integrado de regularização fundiária da Zona Especial em questão.

Art. 5º - Fica o Chefe do Poder Executivo, em consonância com o que estabelece o

art. 4º desta Lei, autorizado a, por decreto, estabelecer exceção aos parâmetros urbanísticos da área em que está inserida a ZEIS 1 do Lagamar, quando o interesse público justificar, ou quando estiverem envolvidas ações de infraestrutura viária ou infraestrutura urbana ou ambiental ou ainda quando se tratar de projetos que tenham relação com a Copa do Mundo de 2014, sede Fortaleza.

§ 1º - A possibilidade instituída pelo caput do presente artigo não se limita a projetos

do Município de Fortaleza, podendo os mesmos serem de titularidade ou interesse do Governo do Estado do Ceará e da União.

§ 2º - A titularidade dos projetos distinta do Município não dispensa a necessidade

de edição de ato do Chefe do Poder Executivo, a quem compete decidir sobre a conveniência e oportunidade de implementar a exceção constante deste artigo.

A nosso ver, este art. 5º trata-se de um dispositivo legal extremamente problemático. Na prática, ele permite que sejam realizadas dentro da ZEIS I obras que, de acordo com a disciplina geral das ZEIS, contida no PDPFor, não poderiam ser executadas. Caso demonstrado o interesse público (expressão de sentido perigosamente amplo), ou sendo a motivação do empreendimento melhoria de infraestrutura visando a Copa do Mundo de 2014, poderá o Prefeito autorizar a obra95.

Na realidade, a redação da lei neste ponto não deixa dúvida acerca do desejo do Poder Público em contornar os interesses da população da ZEIS diante de um tema da mais alta importância. E por que isso ocorreria, se o Estado deve atuar em prol de uma política

95 É importante ressalvar que as organizações envolvidas na luta pela ZEIS do Lagamar protestaram bastante

urbana popular, que promova uma cidade mais justa e menos desigual, na qual sejam cumpridos os direitos fundamentais dos cidadãos? Justamente porque o Estado encontra-se aparelhado, alvo de forte pressão do mercado imobiliário e de setores empresariais ligados ainda a outros ramos, sobretudo a construção civil. A existência do dispositivo legal em comento conduz exclusivamente a semelhante conclusão.

A menção expressa à Copa do Mundo de 2014, no art. 5º da Lei Complementar nº 76/10, está inteiramente de acordo com as ideias preconizadas por muitos defensores de um “urbanismo flexível”, distante das amarras burocráticas do Estado e do controle político, para que as cidades “decadentes”, “em crise”, não percam grandes “oportunidades” como os megaeventos esportivos, marcadamente a Copa do Mundo de futebol e os Jogos Olímpicos. O “desenvolvimento” econômico e social frequentemente atrelado à imagem das cidades que sediam os tais competições é quase sempre exagerado pela imprensa; na verdade, os enormes lucros obtidos com os jogos são completamente privatizados, às custas de uma completa subversão das legislações dos países-sede, nos âmbitos criminal, tributário, concorrencial, consumerista, licitatório etc.96. Direitos fundamentais e humanos são também desrespeitados97. Em termos urbanísticos, não raro as leis são desprezadas, no intento de se assegurar a construção de obras cujo aproveitamento após os eventos é no mínimo duvidoso. Excepcionar a norma de ordenamento urbano torna-se regra. O estado de exceção, medida distante da realidade em um país democrático, torna-se permanente98. Surge a “cidade de

96 No Brasil, a medida que excepciona vários pontos do ordenamento vigente durante o período em que durarem

as competições da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional é a Lei nº 12.663/2012 (Lei Geral da Copa). Além dela, merecem destaque a Lei nº 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações, que flexibiliza a Lei de Licitações, e a Lei nº 12.350/2010, que isentou a FIFA do pagamento de uma série de tributos em suas operações em solo brasileiro. Para uma crítica à Lei Geral da Copa, ver Hoshino e Gorsdorf (2011).

97 “[A]s repercussões dos megaeventos no gozo do direito à moradia adequada para todos resultam menos

evidentes. Uma vasta experiência demonstrou que os projetos de reabilitação adotados para os jogos frequentemente dão lugar a violações generalizadas dos direitos humanos, particularmente do direito à moradia adequada. Nas cidades que organizam os eventos, são frequentes as denúncias de expulsões e despejos forçados massivos para ceder espaço ao desenvolvimento da infraestrutura e à renovação urbana, de redução do acesso à moradia como resultado de gentrificação [processo de aburguesamento de um bairro, que transforma sua estrutura socioeconômica e expulsa os antigos moradores mais pobres], de operações de grande envergadura contra as pessoas sem teto, e de punição e discriminação dos grupos marginalizados. Os que mais sofrem as consequências destas práticas são os setores mais desfavorecidos e vulneráveis da sociedade, tais como os segmentos de baixa renda, as minorias étnicas, os imigrantes, os anciãos, as pessoas com deficiência e os grupos

marginalizados (como vendedores ambulantes e trabalhadores sexuais)” (ROLNIK, 2009, p. 03). Uma situação

de patente violação de direitos humanos, que exemplifica o relato de Raquel Rolnik, ocorreu na África do Sul durante a Copa do Mundo de 2010: durante a preparação para a competição, os moradores de rua da Cidade do Cabo foram todos levados para um espaço afastado, onde foram concentrados e postos sob vigilância, para que

não saíssem. O “campo de concentração”, montado pelo Estado para segregar e esconder a pobreza, passou a ser chamado de Blikkiesdorp (“cidade-de-lata”), em razão de suas casas precárias feitas de zinco. Ver “O país da Copa tem ‘campos de concentração’ para os excluídos”. Disponível em:

<http://espn.estadao.com.br/noticia/129749_VIDEO%20O%20PAIS%20DA%20COPA%20TEM%20CAMPOS %20DE%20CONCENTRACAO%20PARA%20OS%20EXCLUIDOS>.

exceção” 99, na qual os rumos da política urbana são orientados pelo mercado (ainda mais), no sentido de torná-la “amigável” aos investimentos externos, mesmo que em detrimento da própria lei. Em Fortaleza, além do art. 5º em comento, é representativa desse modelo subversivo de política urbana a obra de construção do veículo leve sobre trilhos - VLT em Fortaleza, repleta de irregularidades100 e, ainda assim, em seguimento, não obstante a forte resistência popular que tem enfrentado.

Vale, finalmente, ressaltar ainda mais um aspecto relativo ao dispositivo legal em tela: pode-se considerar que ele vai contra o princípio da proibição do retrocesso social, pertinente aos direitos humanos. De acordo com o postulado, as nações signatárias de tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dentre inúmeros outros, devem trabalhar para implementarem concomitantemente, tão logo puderem, os direitos dispostos nos documentos, uma vez que os direitos humanos universais são interdependentes, constituindo um todo indivisível. Entretanto, são viabilizados de modo diferente:

Se os direitos civis e políticos devem ser assegurados de plano pelo Estado, sem escusa ou demora – têm a chamada auto-aplicabilidade –, os direitos sociais, econômicos e culturais, por sua vez, nos termos em que estão concebidos pelo Pacto [Internacional sobre os Direitos Sociais, Econômicos e Culturais], apresentam realização progressiva. Vale dizer, são direitos que estão condicionados à atuação do Estado, que deve adotar todas as medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômicos e técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização desses direitos (art. 2º, parágrafo 1º, do Pacto). (...)

Da obrigação de progressividade na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais decorre a chamada cláusula de proibição do retrocesso social, na medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo da implementação desses direitos. A progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais proíbe o retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à garantia de tais direitos (PIOVESAN; GOTTI; MARTINS, 2009, p. 85-86).

Ora, o direito à cidade, assim como a variedade de outros direitos que o compõem, possui aspecto de direito social, isto é, pertence à coletividade e demanda atuação estatal para sua concretização. Se um dos aspectos basilares da efetivação do direito à cidade é a gestão democrática das políticas públicas urbanas, não se pode admitir que a legislação reconheça o papel proeminente dos Conselhos Gestores das ZEIS (art. 268, art. 270, § 1º, do Plano Diretor Participativo, e art. 4º da LC nº 76/10), somente para apresentar uma exceção

99Para o “urbanismo flexível”, os megaeventos esportivos como grandes “oportunidades” e sua associação à

ideia de “cidade de exceção”, ver Vainer (2010).

legal que pode ser utilizada para conduzir as ações urbanas em uma ZEIS sem controle direto por parte da população (aliás, em favor exclusivo de uma entidade privada, a FIFA). Além disso, há, por fim, de se ver que a lei específica que institui uma ZEIS não tem o condão de excepcionar a disciplina geral da matéria, contida no texto do Plano Diretor. O PDPFor não abre exceção para intervenções em ZEIS, logo não o poderia ter feito a LC nº 76/10, o que caracteriza o retrocesso.

Em nosso entender, a previsão do art. 5º em comento constitui patente retrocesso social, devendo, portanto, ser atacada judicialmente ou desconsiderada, por afrontar os princípios participativos contidos nas normas urbanísticas brasileiras (art. 2º, II, Estatuto da Cidade; art. 3º, III, PDPFor).

4.1.5 Conclusão

A Lei Complementar nº 76/10 é uma lei benéfica porque instituiu como Zona Especial de Interesse Social um dos assentamentos precários mais antigos da cidade de Fortaleza, e que já deveria ter sido contemplado quando da aprovação do texto final do PDPFor. Como bônus, o Conselho Gestor da ZEIS I do Lagamar foi a primeiro conselho gestor de ZEIS a ser criado na capital cearense (atualmente, somente existe mais um instalado, na ZEIS da comunidade Poço da Draga, na Praia de Iracema). Além disso, o aspecto mais importante da lei: sua aprovação se deu em função de grande mobilização popular, que forçou a classe política a se debruçar sobre tema que, caso contrário, provavelmente teria sido deixado de lado, pelo menos momentaneamente. Estabelecida a ZEIS I do Lagamar, é possível ter esperanças de que o instituto seja aplicado em toda sua amplitude, pois, como já afirmamos anteriormente, as ZEIS são os instrumentos de política urbana que, por si sós, possuem o maior potencial para auxiliar na concretização do direito à cidade, e isso já mais pode ser menosprezado.

Há, contudo, que se enxergar a realidade: a efetivação de Zonas Especiais de Interesse Social é tarefa complicada, sendo a causa de pesada disputa política nos meandros do Poder Público. No momento, uma das principais lutas que se trava é a de que as autoridades cumpram a lei e tratem as ZEIS da maneira que determina o Plano Diretor: como prioridade.

Por fim, entendemos que a lei é falha e vai contra o PDPFor e o direito à cidade no que toca à forma como foi estruturado o Conselho Gestor da ZEIS I do Lagamar. A forma de composição do Conselho e a hipótese de exceção aberta pelo art. 5º da LC nº 76/10

constituem retrocesso social e brecha legal cuja utilização pode, infelizmente, anular quaisquer efeitos da participação popular na condução da política urbana fortalezense.