• Nenhum resultado encontrado

2. A NOVA ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA E O DIREITO À CIDADE

2.6 Os planos diretores municipais

O plano diretor municipal (PD) é o terceiro pilar no tripé que compõe o núcleo do novo ordenamento jurídico-urbanístico, sendo os dois outros a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade. É lei essencial para a efetivação dos ditames da política urbana nacional, uma vez que boa parte dos instrumentos elencados nas leis urbanísticas federais somente pode ser efetivamente aplicada em nível municipal após previsão no Plano Diretor, a exemplo da outorga onerosa do direito de construir e do parcelamento, da edificação ou da utilização compulsórias de terrenos urbanos.

A definição legal de plano diretor está contida no § 1º do art. 182 da CF/88: “O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte

mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. O parágrafo seguinte atesta: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. O art. 39 do Estatuto complementa o texto constitucional, informando que tais exigências deverão assegurar “o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no artigo 2º desta Lei”.

Eles são, assim, diplomas legais indispensáveis à política urbana brasileira, porque suas normas determinam o parâmetro pelo qual se verifica se a propriedade urbana está cumprindo ou não sua função social. E, como já se falou nesta monografia, a noção de que o exercício do direito à propriedade está submisso à sua funcionalização baliza todo o Direito Urbanístico brasileiro (bem como o Direito Civil, aliás).

A aprovação de um plano diretor, segundo o art. 41 do Estatuto, é obrigatória para cidades:

a) com mais de vinte mil habitantes;

b) integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

c) onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da CF/88 (parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública);

d) integrantes de áreas de especial interesse turístico; e

e) inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

Se a cidade não se enquadrar em uma das hipóteses acima, poderá, se desejar, exercer a faculdade de elaborar seu próprio plano diretor, seguindo, para tanto, as regras básicas estabelecidas no Estatuto da Cidade.

Os planos diretores municipais, que devem ser necessariamente renovados pelo menos uma vez a cada dez anos, precisam passar pelo crivo popular durante sua criação. Em consequência do princípio da gestão democrática da política urbana, o Estatuto, em seu art. 40, § 4º, determina que o Poder Público assegure a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos e o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos. Desta forma, por força de lei, os PDs do século XXI passam a ser “participativos”, circunstância que ao menos em tese os

distancia dos primeiros planos diretores existentes no Brasil, excessivamente técnicos, muitas vezes alheios à questão urbana e, por isso mesmo, desacreditados e indesejados por muitos (basta lembrar a resistência dos movimentos sociais urbanos à previsão constitucional de obrigatoriedade de plano diretor para as cidades e sua vinculação à função social da propriedade urbana) 54.

O conteúdo mínimo dos PDs é dado pelo art. 42 do Estatuto da Cidade, o qual afirma que eles deverão conter a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; disposições referentes a direito de preempção, outorga onerosa de direito de construir, operações urbanas consorciadas e transferência de direito de construir; e o sistema de acompanhamento e controle do cumprimento da lei. O conteúdo mínimo dos planos é também objeto da Resolução nº 34 do Conselho das Cidades, de 1º de julho de 2005, a qual recomenda expressamente que os planos diretores municipais incorporem os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade.

Do ponto de vista quantitativo, a obrigatoriedade de aprovação de planos diretores tem-se demonstrado bem sucedida: Santos Júnior e Montandon (2011, p. 29-30) apontam que, em 2009, 87% dos Municípios com mais de vinte mil habitantes declararam possuir plano diretor. O sucesso, entretanto, não se repete quando se faz uma análise mais aprofundada acerca da efetividade dos PDs, pois

[a]o mesmo tempo, do ponto de vista qualitativo, nem todos os Planos Diretores são efetivamente resultado de um pacto social para a gestão do território e também não são todos os planos que dialogam com os preceitos sociais do Estatuto da Cidade, especialmente quanto à instituição de instrumentos de gestão do solo urbano” (SANTOS JÚNIOR; MONTANDON, 2011, p. 29).

Não é à toa, então, que pesquisas apontam “uma generalizada inadequação da regulamentação dos instrumentos nos Planos Diretores no que se refere à autoaplicabilidade ou à efetividade dos mesmos, principalmente no caso dos instrumentos relacionados à indução do desenvolvimento urbano” (SANTOS JÚNIOR; MONTANDON, 2011, p. 34). Essa situação tem resultado em planos diretores insuficientes para o direcionamento da política urbana rumo à conquista de cidades mais sustentáveis e menos injustas, pois retira da lei sua força modificadora, abrindo espaço para que o velho modelo de urbanização se perpetue, beneficiando a minoritária camada da população que detém a maior parte das propriedades

54 “Durante o Regime Militar, uma produção numerosa e ineficaz de PDs [planos diretores], orientada e

financiada pelo governo federal, conduziu à sua desmoralização até mesmo entre urbanistas” (MARICATO, 2011, p. 47).

urbanas. É em razão disso que alguns afirmam que “[n]ossas cidades não ultrapassaram os limites da política de intenções” (MARQUES, 2011, p. 18).

Verificando essa situação, Maricato (2011, p. 96) encara o presente (e o futuro) com pessimismo, ao declarar que

não há que se criar ilusões sobre o Plano Diretor instituído por lei municipal. Sua elaboração permite aos participantes conhecer a cidade, entender as forças que a controlam. Seu processo participativo permite incorporar sujeitos ao processo político e ao controle – sempre relativo – sobre a administração e as câmaras municipais. Mas é preciso não perder de vista a natureza do poder municipal, que tem a especulação imobiliária (nem sempre capital, mas patrimônio) entre suas maiores forças. Há uma distância imensa entre discurso e prática entre nós. Invariavelmente os textos dos Planos Diretores são sempre muito bem- intencionados, afirmam uma cidade para todos, harmônica, sustentável e democrática. A implementação do Plano, entretanto, tende a seguir a tradição: o que favorece a alguns é realizado, o que os contraria é ignorado.

É visível a inefetividade das normas urbanísticas, sobretudo a não aplicação generalizada do conteúdo dos planos diretores municipais nas cidades que os possuem, por falta de recursos públicos, capacidade técnica e de pessoal e, naturalmente, ausência de vontade política, isto é, compromisso com uma vontade política distinta daquela

incorporada à lei55, compromisso com um modelo de cidade atrasado e sabotador do direito à cidade, sendo, assim, ilegal.

O panorama descrito pode ser considerado generalizado, porém vamos nos ater ao Plano Diretor Participativo de Fortaleza, o qual, indiscutivelmente, padece de todos os males já descritos aqui sobre não efetivação de uma política urbana que favoreça a concretização do direito à cidade.