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SÉCULO 18 Naquele tempo

3 LITERATURA E CULTURA DE MASSA

3.2 Crescendo durante a guerra numa província ultramarina

3.2.3 A história de um Brasil

Entremeado com a cultura de massa e sob o clima de guerra que imperava no ar, a história de um Brasil contemporâneo se desenha nas malhas grafadas dos poemas. Não só a história “oficial”, dos atos monumentalizados, mas as “micro- histórias” que fazem vislumbrar a teia contínua e imensa que trança uma realidade contextual muito além das repetidas nas páginas dos livros didáticos, como bem exemplifica o paratexto epígrafe do escritor austríaco Peter Handke: “levando em conta a base lingüística de toda a comunidade, em lugar de basear-se exclusivamente nos fatos e selecionar os acontecimentos mais extraordinários...”131.

A base lingüística de toda a comunidade está exposta tanto pela referência à alta cultura como também pela cultura trivial, tematizada pelo uso da imagem dos comic books, das ondas do rádio e da tela dos filmes, compondo um complemento ao conhecimento literário de uma classe média que começava a se impor no cenário nacional. Os testemunhos estão presentes através de citações de personalidade históricas, como, das letras brasileiras: Mário de Andrade, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Cyro dos Anjos, Jorge Amado, Dias Gomes, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar e Antonio Candido. Na cultura internacional: Duras-Resnais, Wilfrid Gibson, Daniel Snowman, Paul Eluard, R.P. Blackmur. Na política nacional: Getúlio Vargas, Alzira Vargas, Oswaldo Aranha, Plínio Salgado, Presidente Dutra. Na música popular: Antônio Nássara. Assim como outros participantes efetivos da história de um país que se desenvolvia, como os comerciantes e industriais de São Paulo. Também estão presentes alguns artigos de decretos-lei e da constituição brasileira de 1937.

Silviano Santiago constrói em seus poemas uma história de um Brasil que se abre para o mundo moderno e globalizado. A atitude de abertura impõe, no entanto, uma salvaguarda. É preciso estar atento para as relações de poder cultural e econômico que se entrelaçam no dia-a-dia da vida de um povo e de uma nação, principalmente àquelas em desenvolvimento. Por isso, as constantes disputas intelectuais entre os pensadores e críticos tradicionais e os vanguardistas, com

relação às questões de cultura e dependência nacional, estão presentes na tessitura dos poemas. Dessa forma está exposto um jogo ambíguo que desfaz o maniqueísmo que se impõe entre regional/mundial, como ilustra o poema em que se concretiza a batalha pelo mineral do subsolo de Minas Gerais e do Rio de Janeiro entre brasileiros, ingleses e americanos (Irmãs gêmeas):

O que é, o que é: tive ouro,

agora tenho ferro, era de Samuel hoje sou Companhia, fico no vale

e dizem que meu rio não é azedo. O que é, o que é:

cortejada pelos ingleses, flertei com a Krupp, veio a guerra e destruiu meus primeiros pretendentes. Remocei, e caí de novo na vida:

amiguei-me com Roosevelt, homem generoso

mas amante ciumento. Hoje, a casa é minha:

os móveis e os empregados, no entanto,

são dele 132.

O último poema de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, de Silviano Santiago refaz o caminho de leitura da obra dando-lhe uma circularidade metalingüística. Separado do corpo dos outros textos, ele vem exposto em uma seção denominada “Como ler os poemas: reflexão sobre o que foi lido”. Didaticamente, Silviano Santiago aponta os possíveis caminhos para a compreensão dos poemas lidos. Denominados de “Esses textos”, o autor-professor explicita a característica da sua escrita desvinculada a gêneros definidos, ampliando a abrangência de suas criações sob a rubrica de “texto” que acolhe a linguagem como a sua principal identidade. O título “Esses textos”, referindo-se aos poemas lidos, abre espaço no papel em que é grafado para a interpretação dos diversos discursos

apresentados no livro como vozes pertinentes a uma época e um espaço físico e cultural que podem ser detectados pelo leitor atento.

No poema está explicitada a relação entre os diversos níveis de um texto: uma hierarquia textual que existe para ser subvertida. Um texto primeiro se apresenta como forma embrionária que será refeito pelo leitor a cada nova leitura. Aqui, Silviano Santiago não está explorando apenas o leitor de seu texto, mas está invocando o seu texto como sendo de um primeiro leitor que refez discursos e textos alheios, explicitados como poemas na obra lida. Portanto, o leitor de seu livro já é um segundo leitor de sua escrita. Por isso, Silviano Santiago se empenha em escrever que “é preciso saber vestir/o texto,/ como tatuagem na própria/ pele”. A escrita de outro em sua própria pele, no próprio fazer-se linguagem, passa a ser parte daquele que a absorveu, desfazendo a idéia de propriedade textual numa escrita dissociada de sua origem e misturada à escrita do outro. As metáforas de estilete e tatuagem conferida pelo autor à palavra e ao texto ampliam a significação de violência e pertencimento da escrita no corpo seu e da realidade:

O texto primeiro existe só, como ponto.

Se transforma depois em linha com sua própria força

de deslocação,

sua velocidade própria. Depois,

o leitor institui outra linha, lendo. O leitor constitui

um feixe de linhas cruzadas organizando os textos. No percurso de texto e no trânsito da leitura, as linhas se chocam, se repudiam, se perdem, correm paralelas e podem se amar. Depois, saber fazer retorná-las a ponto.

(Mas o importante é o leitor. Você.)

É preciso ter calma. Saber ir abotoando os elementos vários à espera do clique de colchete.

Quando dois ou mais se engatam, fecha-se um sentido

único e exclusivo.

Mas que você pode emprestar a alguém,

desde que o diga

(Não tenha medo da alta-velocidade. Não tenha receio de dar marcha à ré.) É preciso ter pressa.

Saber ir desabotoando os colchetes de sentido como quem quer tirar camisa usada e suada de dia de trabalho. Cada camisa, depois de surrada, é fonte de novo esforço. Ou então vira camisa-de-força. É preciso saber vestir o texto,

como tatuagem na própria pele.

É preciso saber tatuar o texto,

como sulcos feitos na bruta realidade. O duplo estilete do texto e da leitura, do autor e do leitor. A dupla tatuagem contra o próprio corpo e a realidade bruta.

A tatuagem que se imprime para poder forçar

a barra.

A tatuagem que o corpo, depois de violado, tatua. Violentando 133.

Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, mais do que um livro de poesias, é “uma espécie de diário também, (...) dos anos 40. E diário cujo narrador é incerto” 134. Micro-histórias de uma classe média que habita em território

incerto quanto às tradições culturais, por isso, amplamente aberto para as idéias e modas vindas de fora. Sendo assim, o discurso apresentado é mais do que lírico, é uma “poesia do cutelo que vai retalhando em profundidade e nas mais diversas direções (...) da então emergente classe média brasileira e do espaço político- cultural neodependente em que ela se acha inserida” 135. A “nova dependência”, representada pela cultura à reboque de países mais desenvolvidos que o Brasil, apontada por aqueles que olham com olhos “de fora” que permitem ver “o que não se vê quando está dentro 136”, tal é o papel do criador, pois ele sabe “que o crítico vem depois, diversamente da poesia, que frequentemente é o prenúncio de uma nova vaga de pesquisas e reflexões” 137.

É por isso que encontramos ao fim da leitura da obra um trecho discursivo de Antonio Candido que retrata justamente a questão do testemunho de um indivíduo ser elevado à capacidade de representar toda uma geração, pretensão dos poemas reunidos na obra de Silviano Santiago. Assim se expressa Antonio Candido-Silviano Santiago: “...o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos...” 138. Esse fragmento de Candido não deixa de ser

uma estocada nos indivíduos que se auto-intitulam independentes na criação artística, sem vínculo com escolas, tempo, local e referências. O indivíduo, segundo a ótica sociológica-marxista do crítico paulista, acaba por se tornar um elo em uma corrente finita e representativa de uma determinada época, pois retrata uma sociedade ou uma fatia desta, nunca uma individualidade.

134 SUSSEKIND, Flora.

Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Belo Horizonte: UFMG, 2004. 161 p. p. 136

135 MIRANDA, Wander Melo.

Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: USP; Belo Horizonte: UFMG, 1992. 175 p. p.77

136 MOTA, Carlos Guilherme. Prefácio, nas asas da Panair. In: SANTIAGO, Silviano.

Crescendo durante a guerra numa província ultramarina. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 128 p. p. 13.

137 Idem, p. 14. 138 CDGPU, p. 126.

Nos poemas criados por Silviano Santiago há a captura do contexto histórico de uma faixa da classe média em que a possibilidade de cruzamento de referências culturais se faz mais presente. Tais referências são a prova de que a cultura deve ser produzida segundo uma intersecção mais ou menos equilibrada entre local e global, conforme esclarece Stuart Hall: “A tradição [local] está muito mais relacionada às formas de associação e articulação dos elementos” 139. Associar e articular os diversos elementos tem sido a forma de compreender o movimento cultural de um espaço geográfico, pelo menos desde o surgimento do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade.

139 HALL, Stuart.

Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 410 p. p. 243.

4 ESCRITA DO EU