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SÉCULO 18 Naquele tempo

3 LITERATURA E CULTURA DE MASSA

3.2 Crescendo durante a guerra numa província ultramarina

3.2.1 Infância e memória

Silviano Santiago recupera, através da poesia, um gênero popular, a HQ, que era considerado a subliteratura da literatura de massa, conforme assinala Regina Zilberman: “os anos 50 promoveram a cruzada contra a história em quadrinhos, modalidade paraliterária de literatura de massa (...) a década de 70 concedeu estatuto universitário aos estudos sobre os quadrinhos e a literatura infantil” 111. A elevação de nível da HQ dentro da academia não excluiu do gênero a imagem de literatura menor, como constata, ainda, Regina Zilberman: “mas nem mesmo as defesas entusiasmadas abrandam a atitude preconceituosa, que atribui aos gêneros da literatura de massa a condição de ´menor`, seja por considerá-los negativos, seja por imputar-lhes um papel meramente preparatório, de iniciação à grande literatura”112.

A atitude preconceituosa está representada, no livro de Silviano Santiago, pelo recorte discursivo intitulado “Dois poemas em prosa sobre os quadrinhos”, retirado da fala de Carlos Lacerda (1914-1977) durante o I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, em 1945, tendo o diálogo complementado por Dyonélio Machado (1895-1985):

A verdade é que nós estamos importando veneno para

As nossas crianças.

Carlos Lacerda

Em Porto Alegre verificou-se o suicídio de uma menor, Em um banheiro, e se supõe, por vários indícios, que Tenha sido sugerido por uma gravura do “Vingador”. Como Médico psiquiatra, dou inteiro apoio à opinião do Sr. Carlos Lacerda.

Dyonélio Machado 113.

A aversão pela literatura dos quadrinhos, se sob a ótica da academia é devida ao valor menor da realização estética, do ponto de vista dos discursos apresentados

111 ZILBERMAN, Regina. Apresentação. In: _____. (Org.).

Os preferidos do público. Petrópolis: Vozes, 1987. 110 p. p. 7-8.

112 ZILBERMAN, op. cit., p. 8. 113 CDGPU, p. 19.

acima, ela seria o mote de uma influência exógena pernóstica que desestabilizaria toda a sociedade local, porquanto atacaria diretamente a raiz da nação, ou seja, a juventude.

Para Silviano Santiago, o material importado principalmente dos Estados Unidos “se mesclava de maneira desequilibrada à incipiente produção cultural brasileira para crianças” 114. Tal produção era comanda por Monteiro Lobato e não tinha todo o aparato tecnológico norte-americano. Poeticamente, o crítico problematiza assim a questão (Pica-pau amarelo):

Emília luta Contra Tarzã. Lobato contra o entreguismo. Uma questão de patriotismo.

O que que é isso,

meu Deus? 115.

A luta de Emília contra Tarzã é a metáfora do combate entre cultura brasileira e cultura americana, tendo por substrato textual o medo da entrega da nação latino- americana ao forte poderio cultural da nação norte-americana, apresentado sob o conceito de patriotismo, representado pelo verso indagatório final que explora a ambigüidade do binômio entreguismo/patriotismo.

Silviano Santiago comenta que as formas tradicionais e interioranas de espetáculo e entretenimento foram rechaçadas, pouco a pouco, para escanteio, à medida que a cultura do entretenimento importada se mesclava àquelas. Foram expulsas para a periferia da diversão o circo, o parque de diversões e as festas religiosas com suas barraquinhas, comes e bebes, danças e folguedos típicos. Silviano Santiago retrata assim esse deslocamento de tradições (Joe & Jack):

114 COSPO, p. 107. 115 CDGPU, p. 51.

O caminhão forde desliza pela cidade ao som de Alvarenga e Ranchinho. Anuncia o espetáculo daquela noite e de todas as noites durante a semana. E também a matinê de domingo para a gurizada. Na carroceria está armada uma jaula. Dentro, o domador, o chicote, o tamborete e os leões ferozes (são três) caçados nas florestas da África. As famílias, das janelas, acompanham com os olhos o caminhão; as empregadas, das cozinhas, escutam a dupla caipira; e as crianças seguem pulando o domador e as feras até a entrada do circo.

Mas no espetáculo da noite quem rouba os chiliques da platéia de velhos e moços é a dupla Joe & Jack, do espetacular Globo da Morte. Fora do circo, com as mesmas e reluzentes motocicletas, são os galãs inesperados que todas as mocinhas esperam: se vestem como o herói da série O Terror dos Espiões que o Cine Municipal apresenta às

quartas-feiras 116.

No texto, com certo desvio de crônica, está fixado um quadro realista de cidade interiorana em que as pessoas da família acompanham através da janela a vida que passa pela rua. Nesta, estão presentes o caminhão Ford tocando música “caipira” da dupla Alvarenga e Ranchinho, chamando para o espetáculo do circo. Paralelamente, a dupla de nome inglês Joe & Jack atrai os olhares de velhos e moços no globo da morte. Fora da tenda, as motocicletas e seus pilotos galãs vestidos à moda de heróis de filmes encantam as mocinhas. Há, portanto, nessa cena, um deslocamento e entrelaçamento de culturas diversas, diferentes tradições e gerações e diferentes visões de classes compondo, como um minúsculo mosaico, um instante flagrado de vidas em constante movimento, de relações culturais paralelas e sobrepostas que se alimentam formatando-se em hibridismo.

É certo que as novas formas de diversão ocuparam lugares distintos na sociedade brasileira a partir da massificação cultural, mas é importante observar que, de maneira alguma, as diversões tradicionais, que também foram importadas em tempos remotos, como o circo, as festas religiosas e os parques de diversões, não desapareceram por completo das vidas das pessoas urbanas, principalmente em cidade menores, do interior. O que se constata é que há sempre um entrelaçamento entre as novas importações culturais com as referências locais.

O poema “Crianças” retrata esse deslocamento. O primeiro e o último versos amparam o desenvolvimento do texto, como margens de uma tradição aberta para o novo que vem povoar a vida e a imaginação infantil, como outrora esse papel era reservado ao livro. Se o divertimento, baseado na cultura estrangeira, amplia e sustenta o imaginário da criança, a relação com o local, a terra e suas tradições, fixa certas raízes onipresentes, como a vida livre do moleque saboreando a fruta no pé:

A mangueira é frondosa. De galho em galho salta Tarzã,

o rei dos macacos, desce pelo cipó

e encontra Silver à espera com o fiel Tonto,

trotam pela planície horta

até que Nyoka oferece seus perigos,

abre uma lata de espinafre e a briga continua

com Charles Starrett, e na nave espacial agem Flash-Gordon, de cabelos louros e medievo, o Príncipe Valente digladia em torneio pelo amor de Jane A manga é saborosa 117.

Façamos uma leitura comparada com o poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Infância”, do livro Alguma poesia, de 1930. Esse poema foi analisado e interpretado por Silviano Santiago no livro de ensaio que leva o nome do poeta mineiro:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo olhando para mim:

- Psiu... Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda. E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé 118.

A cena drummondiana posiciona o menino entre as mangueiras, a leitura de Robinson Crusoé e a família que resguarda as tradições patriarcais. A situação do menino resume-se em ler e observar aquele mundo pequenino, mas com vistas para o alargamento do horizonte representado pela história do livro em mãos. Já a infância representada por Silviano Santiago apaga a presença da família e coloca nas relações do menino não só o livro, mas a moderna técnica de transmissão por imagem como o cinema e seus personagens presentes à cena sob e sobre a mangueira que dá frutos saborosos. A amplitude cultural é maior, mas não se caracteriza pela alienação das tradições explicitada no fruto da mangueira, que dá o sabor para todos os outros objetos presentes na memória do menino 119.

118 Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de.

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. 1599 p. p. 6. Silviano Santiago escreveu a introdução da obra. O texto se encontra editado, também, em seu livro de ensaio Ora (direis) puxar conversa!.

119 Diz Silviano Santiago em entrevista: “Mas gibi e cinema são duas coisas que vão ser muito

importantes para mim, porque vão marcar – de maneira pretensiosa – certo espírito cosmopolita meu. Eu tinha o imaginário ligado ao que estava acontecendo no mundo, apesar de a cidade ser provinciana. Tinha, por exemplo, perfeita noção da Segunda Guerra Mundial, através dos personagens de gibi ou dos filmes. Naquela época havia seriados, e me lembro dos 15 episódios de O terror dos espiões e muitos outros. (...) Minhas experiências eram gibi e cinema. (...) Se eu falasse em Capitão Marvel, Tocha Humana, Príncipe Submarino, Mandrake, Homem Bala, etc., todas aquelas crianças sabiam o que era. Havia uma contaminação da província pelo mundo”. SANTIAGO, Silviano. Entrevista concedida em 02 mai 2002 a Helena Bomeny e Lúcia Lippi Oliveira.

Nem só de filmes e HQ se fez o histórico sócio-cultural dessa geração que nascia. Também o “horror” da Segunda Guerra Mundial é parte integrante da sociedade ocidental.