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SÉCULO 18 Naquele tempo

3 LITERATURA E CULTURA DE MASSA

4.2 Relações literárias

Silviano Santiago propõe-se assumir a escrita de Graciliano Ramos, suplementando um vazio na história do escritor alagoano. Ele cria a ficção para ocupar o espaço biográfico não narrado pelo outro. O momento pós-liberdade não descrito por Graciliano Ramos, entre o ato da prisão e o relato do diário em que conta as vicissitudes do cárcere, surge na escrita de Silviano Santiago. Como um observador que não se contenta em expor a ausência narrativa biográfica na história do outro, ele se permite incorporar, como que em um “transe perfeito” 150 não só a

vida, mas a literatura do autor de Vidas secas. Esse procedimento discursivo do pastiche 151 que amplia a relação do texto com a adaptação da palavra, do “estilo” do

149 MALE, p. 40.

150Caio Fernando Abreu se utiliza de um termo religioso para explicar a recriação do estilo de

Graciliano Ramos por Silviano Santiago como se este tivesse recebido o espírito daquele para escrever o enredo do livro. Relacionando o ato de criação de Silviano Santiago com a técnica de Borges e Marguerite Yourcenar, escreve Caio Fernando Abreu: “Assim como Borges cria livros e autores `inexistentes´, ou como Marguerite Yourcenar parece ter recebido mediunicamente o imperador Adriano – o corpo e a mente de Silviano Santiago são como o `cavalo´ que praticamente psicografa as angústias de um Graciliano sem emprego e sem dinheiro, arrasado por quase um ano de prisão”. Cf. ABREU, Caio Fernando. Transe perfeito. Veja, São Paulo, 23 set. 1981. p. 113.

151 Sobre o pastiche na obra

Em liberdade, escreve Silviano Santiago: “De maneira nenhuma eu estou criticando o estilo de Graciliano Ramos, que, a meu ver, é o melhor estilo modernista. Portanto,

outro na literatura de um terceiro, já havia sido detectado por Eneida Maria de Souza, como basilar na escrita de Silviano Santiago: “A opção por se apropriar da experiência alheia para falar de si é um dos recursos usados por Silviano Santiago para apagar a assinatura autoral, o que confere a seu texto alto grau de ficção e tendência a embaralhar afirmações, inseridas tanto no texto-modelo quanto na cópia” 152.

O discurso do outro já aparece, de modo velado, em Silviano Santiago desde o seu livro O olhar. A obra foi escrita entre os anos de 1961 e 1972, sendo elaborada durante o percurso do autor entre Rio de Janeiro e Paris, conforme está registrado na página final do livro. O lançamento do romance se deu em 1974. A segunda edição, em 1983. Nessa, Silviano Santiago agrega uma entrevista publicada em 1974 no Suplemento Literário do Minas Gerais, quando do lançamento do livro. A entrevista ocupa o espaço destinado ao prefácio da obra. Esse recurso de explicitação didática do texto a ser lido será utilizado por Silviano Santiago em várias de suas criações. É uma forma derivada da profissão de professor e crítico que tende a explicar o texto em questão, assim como é parte de sua forma de criar: o texto teórico explicitado no texto criativo.

Silviano Santiago diz que a idéia de escrever a obra era a referência da biografia de Baudelaire escrita por Sartre. O título da obra seria A infância de Charles Baudelaire, tal como foi sugerida a mim por Jean-Paul Sartre, e que escrevi com o estilo de Clarice Lispector, para dar de presente a Lúcio Cardoso. De todo esse título sobrou O olhar, que não havia entrado no título original e que, segundo Silviano Santiago, traduz uma das preocupações mais constantes do texto sartreano: a observação. Realmente, o olhar perpassa toda a narrativa, aguçando os desejos de mãe e filho, ao mesmo tempo impedindo que suas vontades se tornem

todas as reverências possíveis a Graciliano Ramos! Mas eu resolvi ser ousado fazendo um diário íntimo falso de Graciliano Ramos no momento em que ele sai da prisão, fiz um pastiche de Graciliano Ramos. De certa forma, estou repetindo o estilo de Graciliano Ramos, adoro o estilo de Graciliano Ramos, acho uma maravilha (...). Quis ativar o estilo de Graciliano Ramos, incorrendo em outras formas de transgressão, poderia ter feito uma paródia de Graciliano Ramos, mas não, eu fiz uma coisa que, obviamente, a família aceitou com muita dificuldade, que foi eu assumir o estilo de Graciliano Ramos e assumir, pior ainda, o Eu de Graciliano Ramos”. Santiago, MALE, p. 135.

152 SOUZA, Eneida Maria de. Márioswald pós-moderno. In: CUNHA, Eneida Leal (Org.).

Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008. 238 p. p. 24.

realidade. As ações existem apenas no pensamento, exceto uma, a que leva ao desfecho da trama: a morte do pai.

O olhar é elaborado com referências literárias definidas, como explica o próprio autor da trama, realçando a utilização do texto do outro como forma de redizer e refazer uma ficção toda sua:

Tem um capítulo no livro que se chama “Prazer – 15”. Nada mais é do que um resumo da vida de Emma Bovary e de um poema de Baudelaire, “L`invitation au voyage”. Faz parte (...) do esquema primitivo do livro, mas ao mesmo tempo foi ganhando suas próprias dimensões, distanciando-se mais e mais do modelo francês. O devaneio sensual no meu texto se passa num país de neve, enquanto no texto de Baudelaire é sempre no país das palmeiras, nos trópicos153.

O mesmo processo de “cópia” do outro está presente no livro de poesias Salto. Utilizando-se de motes alheios, Silviano Santiago compõe quatro poemas no livro como homenagem aos poetas: Manuel Bandeira (Louvado a mote alheio), Carlos Drummond de Andrade, representado em dois poemas (Palavra-puxa-palavra a mote alheio), e João Cabral de Melo Neto (Voltas a mote alheio). Os poemas estão na seção “Alguns floreios”, que divide a obra, funcionando como a Solda que une a primeira parte Saldo na terceira parte Salto. O poeta retoma um verso escolhido e trabalha em torno de seu tema. Usando uma estrutura retangular, lembrando uma espécie de placa de homenagem, os poemas são construídos com uma sintaxe quebrada, sem conexão semântica, criando uma leitura de sentido fonético. A presença dos três poetas é a transição do que existia de forma poética anterior para os novos caminhos, naquele tempo, da poesia concreta.

A primeira parte, “Saldo”, traz nas poesias a lembrança da tradição do verso, pois cria ainda um sentido global em cada poema. A sintaxe é explicita através dos seus elementos constituídos gramaticalmente, como os artigos, as preposições e conjunções. Essa primeira parte da obra está claramente relacionada, como indica o título, ao resto do estoque de certa mercadoria vendida com desconto pelos

negociantes, como está escrito nos dicionários. Silviano Santiago retoma o sentido tradicional da poesia brasileira para deslocá-lo para a reestruturação concretista. Chegara a hora de se desmembrar a poesia em fragmentos de prosa, em substantivos e verbos realocados em uma sintaxe particular. Esses elementos começam a sobressair na segunda parte do livro de poesia, denominada “Solda”. Nos quatro poemas de “Algum floreio”, Silviano Santiago ancora o salto para o futuro da poesia nos três poetas já relacionados. É a partir deles que Silviano Santiago enxerga um caminho novo para trilhar.

Finalmente, o livro se abre para o “Salto”, o que seria a virada em poética, com uma epígrafe que remete ao trabalho que o leitor terá em ler e em construir um “sentido” aos poemas com que irá se defrontar: do-it-yourself kit (monte você mesmo). Estranhamente, os primeiros poemas são denominados “Números”. Saímos da palavra, que remete à abstração, para a concretude matemática dos números e suas lógicas, mas que transpostos para o livro perdem a forma numeral e ganham a forma das letras, alterando a percepção numérica. A última parte do livro é constituída por nove poemas. Ali está, mais do que um livro de poemas, uma obra explicativa das transformações possíveis da poesia tradicional em poesia de vanguarda. Da conversão do sentido linear e metafórico para a idéia de língua como montagem lúdica. Não deixa de ser, de certa maneira, um livro de estudo a respeito do uso da palavra como arte, já que, didaticamente, ele é construído como uma ponte entre a tradição e a vanguarda na poesia brasileira. Nele, a palavra sobressai no espaço, reduzida quase que totalmente à sua grafia, reafirmando que a poesia é construída, também, na linguagem, como uma escultura signo sem significado. Esse livro de poesia de Silviano Santiago, com essa estrutura, foi exemplar único. A estrutura de composição já estava pronta para a elaboração de mais uma obra.