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SÉCULO 18 Naquele tempo

5 SUPLEMENTO DO OUTRO

5.1 Viajantes e narradores

Em “Por que e para que viaja o europeu?”, de 1984, Silviano Santiago enfatiza as relações entre o velho e o novo mundo, respondendo à questão que dá título ao ensaio. Dentre as respostas encontram-se: a) o europeu viajava, no século 16, para propagar a fé e o império, ao mesmo tempo em que negava os valores do Outro: o habitante local perdeu a liberdade, fora obrigado a abandonar o seu sistema religioso e a sua identidade lingüística, passando a ser mera cópia do europeu; b) o europeu viajava pela ética da aventura, da descoberta e da posse do “mundo”; c) o europeu viajava como integrante de uma missão cultural, assim como antropólogos, no caso, Lévi-Strauss no Brasil e artistas, como Artaud, no México:

Contemporâneo do antropólogo mas caminhando em direção oposta é o espírito que permeia as viagens de um Antonin Artaud. Cansado da esclerose galopante que invadia o palco burguês europeu, Artaud sai à cata de expressões “teatrais” em que os fundamentos da experiência cênica não tivessem ainda sido abafados pelo processo de comercialização e profissionalização dos tempos modernos. É nesse sentido que, tal como um novo Montaigne, faz voltar contra o moribundo teatro europeu (e a seu favor como força de rejuvenescimento) aquele sopro de sagrado e de violência, de mito e rito, que se foi esvaindo do palco pelo bom comportamento cênico, única e imperiosa exigência do teatro de tipo naturalista e burguês167.

Por último, d) o europeu, atualmente, viaja como turista. Deseja conhecer as grandes cidades, principalmente, norte-americanas, como é o caso de Umberto Eco, que transformou sua viagem aos Estados Unidos em livro intitulado Viagem na irrealidade cotidiana 168. Nele, segundo Silviano Santiago, Eco tenta compreender o

167 MALE, p. 235.

168 Silviano Santiago irá analisar, especificamente, os seis ensaios sob o título de “Viagem pela hiper-

realidade”, publicados no livro Viagem na irrealidade cotidiana, lançado no Brasil em 1984, pela Nova Fronteira. Nele, Umberto Eco comenta a respeito do “falso absoluto” explicitado na cultura americana, em que a cópia é mais realista do que o real. O semiologista analisa a arquitetura, os museus de

“falso absoluto” dessas cidades, para concluir que nelas existe um fundo de sensibilidade popular e de habilidade artesã. Escreve Silviano Santiago:

O significado imposto pelo europeu à América deriva da força da violência da conquista. Em virtude desta, a cópia (americana) como mais real do que o real (europeu) passa a ser o desejo supremo do habitante do Novo Mundo no seu desejo de autonomia. A cópia (americana) só pode ser “real” no momento em que suplantar o modelo (europeu). Ou seja: a cópia é mais real do que o real no momento em que puder começar a “influenciar” o modelo.

O hiperrealismo portanto é um desejo. O hiperrealismo é o desejo da América que se desrecalca da condição de cópia européia. E, em termos de arte, é o redirecionamento da arte que já não se manifestaria pela simples repetição do modelo. (...) A América é esse

excesso que marca a sua presença. Como excesso, é suplementar. O

suplemento já é mais significativo do que o todo (a Europa) de que ele é suplemento. Hipótese 169.

Segundo Silviano Santiago, o hiperrealismo que Umberto Eco descortina nas cidades americanas, representado pelo excesso, é a suplementação do real europeu, é um avanço sobre a influência externa do velho mundo. E Silviano Santiago ainda indaga de Umberto Eco por que ele não pensa o continente Europeu sendo “invadido” pelo hiperrealismo norte-americano, dando uma guinada na questão da influência, agora apresentada numa inversão de direção.

Aquele que viaja, deve, sempre que puder, relatar a viagem e as suas peripécias, assim como fez Umberto Eco, e também Antonin Artaud. Nessa perspectiva, as viagens são apresentadas por um narrador experiente, como o narrador de Benjamin, mas pode também ser narrada por aquele que não viajou, mas teve acesso à viagem, como é o caso do narrador pós-moderno. Em 1986, Silviano Santiago publicou o ensaio “O narrador pós-moderno”, problematizando a questão do narrador a partir do clássico artigo de Walter Benjamin. Para tanto, ele

cera, programas de tv, a Disneylândia, o museu Getty e os zoológicos americanos. Cf. ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 356 p.

utiliza alguns contos do escritor paraibano Edilberto Coutinho (1938-1995) 170, para

apreender o lugar do narrador: “Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê?” 171. Ou seja, narra-se o vivido ou o observado? No primeiro caso

transmite-se uma vivência; no segundo, uma informação.

O que está em foco, de acordo com Silviano Santiago, é a noção de autenticidade. O autêntico seria só o vivido, a experiência ou engloba também o observado como forma “exterior” de saber que poderia ser incorporado por aquele que observa? A primeira hipótese levantada por Silviano Santiago é a de que o “narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador” 172. Essa categoria de narrador é desvalorizada por Benjamin por não conter a experiência da ação, pelo fato de o narrador não ter mergulhado na vivência e trazido dali a sua narrativa, transformando a ação em sabedoria que deva ser transmitida. O narrador clássico teria senso prático, pois pretendia ensinar algo; já a narrativa de informação perderia tal praticidade por não ter sido “tecida na substância viva da existência do narrador”.

Silviano Santiago amplia a sua hipótese de trabalho, incluindo a “sabedoria” na narrativa de informação, dando o sentido de verdadeiro ficcionista àquele que narra o que não viveu, construindo uma linguagem que tece o enredo, e quiçá, um valor experimental:

O narrador pós-moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança, que é o produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem 173.

170 Silviano Santiago selecionou e apresentou uma antologia de contos de Edilberto Coutinho para a

Tempo Brasileiro, em 1992, denominada Amor na boca do túnel.

171 MALE, p. 44. 172 MALE, p. 45. 173 Idem, p. 46-47.

A figura do narrador é a de quem se interessa não por si, mas pelo outro e pelas situações presentes. É aquele que leva o outro a falar. Silviano Santiago observa, ainda, que nenhuma escrita é inocente. Por trás da fala do outro está presente a fala própria do narrador.

O choque entre o vivido e o observado é o embate entre “as glórias da narrativa de um velho” e “o ardor lírico da experiência do mais jovem”. Eis, para Silviano Santiago, o problema pós-moderno. A solução da equação estaria na lógica da observação, ou seja, o olhar. Esse sentido expõe a faceta do espetáculo que transforma a ação em representação. A experiência é transcodificada em imagem. Narrador e leitor seriam parte de uma platéia que assiste a um espetáculo proporcionado pelas experiências (ou a falta delas) das personagens. Paradoxalmente, o olhar é recoberto com a palavra para se construir uma narrativa, sendo essa a razão da escrita em uma sociedade pós-industrial. O narrador apenas dirige o olhar – seu e do leitor – pelas cenas desenvolvidas na ação das personagens, criando uma rede comunicativa entre imagem e escrita, da qual brota a sabedoria da experiência observada.

Atestando o caráter da pós-modernidade no ato de narrar, Silviano Santiago compreende o descolamento da vivência como situação real que se percebe na escrita, ou seja, a representação não precisa, necessariamente, ter uma âncora na realidade, na experiência pessoal. Ela pode ser fruto, simplesmente, da escrita, da palavra impressa. E é esse objeto, a letra na folha de papel, o livro em si, a matéria de um profissional: o escritor. No romance Viagem ao México, o autor exercita a teoria do narrador pós-moderno ao relacionar aquele que vê e escreve com a personagem que vivencia o ato. Em certa altura da narrativa, ele escreve: “o relato é sempre meu. A aventura é propriedade única e exclusiva dele [Artaud]” 174. Essa é a conexão que será explicitada na análise e interpretação a seguir.