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História da leitura como prática: delimitando conceitos

CAMPINA ISTÓRIA

2. OS LEITORES DE BIBLIOTECA E SUAS PRÁTICAS

2.1. História da leitura como prática: delimitando conceitos

Para dar continuidade à nossa discussão, é necessário antes retomar a noção de

práticas de leitura, mencionada já na introdução. A leitura passou a ser estudada dentro do conjunto das práticas culturais, a partir dos trabalhos desenvolvidos por

pesquisadores ligados à terceira geração25 do movimento francês denominado Escola

dos Annales, associado à publicação da revista de história Annales – criada em 1929, por Lucien Febvre e March Bloch, os quais foram seguidos por Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Pierre Bordieu, Michel de Certeau, Roger Chartier, entre outros. Esse movimento tinha como pressuposto fundamental uma mudança de foco dos estudos históricos, pois defendia que a atenção deveria se voltar para a história do homem comum e não apenas para a grande história (dos grandes acontecimentos e personalidades). Ele propunha

Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas da história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas outras. (BURKE, 2010, p. 12) Tornaram-se interesse dos historiadores, então, fatos não necessariamente relacionados à política e que antes passavam despercebidos, como a história das práticas religiosas, da família e da moralidade, a partir do ponto de vista dos usos do homem comum. Segundo Burke (2010, p. 143),

[...] a mais importante contribuição do grupo dos Annales, incluindo-se as três gerações, foi expandir o campo da história por diversas áreas. O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo da humanidade [...].

Dentro desse contexto, um grupo de pesquisadores, entre os quais destaca-se Roger Chartier, dedica-se a estudar as leituras do homem comum, investigadas enquanto práticas culturais, ou seja, as pesquisas empreendidas por eles observam quem

lê, o que lê, como e por quê. Além disso, nesses estudos, o modo de empreender as investigações “[...] opôs-se à abstração operada naqueles trabalhos [anteriores], entendendo que os suportes nos quais eles se fazem ler, ouvir ou ver tomam parte na construção do sentido” (ABREU, 2003, p. 8-9).

Ao se voltar para os leitores comuns, esses estudos começaram a registrar uma multiplicidade de práticas de leitura nos mais diferentes grupos sociais e a perceber que

a leitura só pode ser compreendida/descrita em sua relação com diversos fatores: sociais, históricos, econômicos e culturais. Tais fatores determinam, a cada época e lugar, as leituras legítimas e o modo correto de realizá-las, assim como, por consequência, as leituras ilegítimas e o modo escolhido pelos leitores para burlar esse controle, nem sempre visível.

No capítulo anterior, algumas dessas práticas foram mencionadas: a leitura monástica; a leitura intensiva e a extensiva; a leitura oral e a silenciosa; a leitura religiosa e a laica; leitura de livros, mas também de periódicos, folhetos, etc. Como foi possível perceber, elas foram sendo modificadas ao longo do tempo, sendo registrados períodos em que práticas diferentes permaneciam sendo utilizadas simultaneamente e algumas vezes por grupos sociais diferentes. Em outras palavras, as “mesmas” leituras (uma mesma obra, por exemplo) podiam ser objeto de apropriação por diferentes leitores e submetidas a práticas distintas.

Dentre as correntes de estudo que procuram traçar o percurso do livro e dos impressos desde o momento de sua produção até a sua apropriação pelo leitor, encontra- se a linha de estudos denominada História da Leitura, na qual esta pesquisa se insere. Na tentativa de compreender quem lê, o quê, em que épocas, onde, como e por quê, os teóricos dessa área escolheram caminhos distintos, mas todos pautados nas mesmas constatações, como aponta Darnton (2010a):

a) a leitura tem uma história;

b) ela não foi sempre a mesma em todos os lugares e tempos; c) ela revela as relações entre saber e poder; e

d) é resultado de um complexo de fatores (sociais, econômicos, políticos, etc.) que exigem seu estudo a partir de uma perspectiva interdisciplinar.

Diante dessas constatações e da certeza de que, como afirma Darnton (2010a, p. 124), o campo de estudos sobre a história da leitura se tornou “Tão rico, de fato, que agora, mais do que um campo, parece uma exuberante floresta tropical. O explorador mal consegue atravessá-la [...]”, uma pergunta se impõe: como recuperar essa história?

Segundo Chartier (1999a), essa história foi contada a partir de três diferentes polos, relativos à delimitação do objeto a ser estudado, dentre as inúmeras possibilidades abertas pela pergunta acima:

[...] de um lado, a análise dos textos, sejam eles canônicos ou profanos, decifrados nas suas estruturas, nos seus objetivos, nas suas pretensões; de outro lado, a história do livro, além de todos os objetos e de todas as formas que toma o escrito; finalmente, o estudo de práticas que se apossam de maneira diversa desses objetos ou de suas formas, produzindo usos e significações diferenciados. [...] (CHARTIER, 1999a, p. 12, grifos nossos) O terceiro pólo, entre os reconhecidos por Chartier (1999a), refere-se à história da leitura a partir das diferentes maneiras com que cada grupo de leitores realiza/atualiza esta prática, considerando as determinações sobre o que pode ser lido, por quem e como em cada grupo social ou período do tempo. Nesse caso, a leitura será estudada a partir de sua relação com os dispositivos de interpretação que se interpõem entre o texto e o leitor. Tais dispositivos são definidos socialmente e variam de acordo com as funções e valores que cada grupo atribui à leitura.

Por essa razão, “[...] uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura” (CHARTIER, 1999a, p. 13). A leitura religiosa, por exemplo, foi considerada, durante muito tempo, apenas uma prática de recitação de um texto já conhecido e não era permitido ao leitor construir uma interpretação individual, pois, tendo em vista o caráter sagrado dos textos, a interpretação autorizada era feita pela Igreja e qualquer visão diferente poderia ser compreendida como heresia. Essa afirmação é verdadeira principalmente se considerarmos, entre outros lugares e momentos, a Europa na Idade Média, mas, talvez, para os leitores atuais ela já não se aplique em sua totalidade, ou se aplique a alguns grupos religiosos e a outros não. No entanto, ainda podemos encontrar resquícios desta prática no ritual da missa, nas igrejas católicas: a palavra é lida sempre em voz alta, com respeito e reverência, por um representante dos fiéis, mas cabe apenas ao pároco (ou outra autoridade religiosa presente) fazer a interpretação do texto lido para a assembleia. Aos fiéis, neste momento ritualístico, não é dado nem o direito de comentar o texto bíblico, nem o de encontrar-se com ele numa leitura silenciosa – a leitura é sempre em grupo, oralizada e interpretada por outro que detém a autoridade para tanto. Evidentemente, esses mesmos “leitores” que se encontram nas igrejas para esta prática, ao saírem de lá e participarem de outros grupos, poderão ter suas maneiras de ler também modificadas, em função de outros dispositivos que lhes serão apresentados.

Portanto, a leitura, nesta última perspectiva, é abordada procurando-se identificar “[...] as normas e as convenções de leitura que definem, para cada comunidade de

leitores, os usos legítimos do livro, as maneiras de ler, os instrumentos e procedimentos da interpretação. [...]” (CHARTIER, 1999a, p. 13).

A partir das pesquisas realizadas nesta linha de estudos, foi possível chegar a conclusões importantes sobre a história das práticas de leitura e sobre sua relação com as injunções sociais, econômicas e políticas que envolvem o acesso à cultura escrita em diferentes épocas.

Chartier (1999a) recupera os passos já dados na história da leitura, organizando-os a partir das diferentes delimitações que os teóricos fizeram quanto a seu objeto de estudo dentro desse campo tão vasto. Darnton (2010a) também recupera esses passos, mas organiza a sua exposição sobre a história da leitura a partir dos métodos utilizados pelos historiadores na apreensão do objeto. Segundo este autor, os estudos nessa área se dividem em dois tipos: macroanalíticos e microanalíticos.

O primeiro tipo de estudos é de base quantitativa e procura, a partir da análise baseada em números e estatísticas sobre a circulação de impressos, descrever o quê se lia. Nessa linha, há trabalhos que analisam os catálogos das feiras de livros, como a de Frankfurt, os registros dos direitos do livro, o dépôt légal, o desenvolvimento do mercado livreiro (o que inclui o estudo dos títulos publicados e do volume das vendas de livros), a posse de livros através da análise dos inventários póstumos e da listagem de títulos das bibliotecas particulares, entre outros aspectos.

Contudo, apesar de a macroanálise ter contribuído significativamente para a compreensão de parte da história da leitura e ter permitido o levantamento de outras questões a partir dos dados descobertos, ela apresenta algumas limitações. Para Darnton (2010a), as principais delas são o risco das generalizações e as distorções causadas pela vagueza das categorias utilizadas como critério para agrupamento dos dados. Para Chartier (1999a), o problema está na definição prévia de categorias sociais para analisar a produção/circulação de objetos culturais, como se, após realizado o recorte do universo social a ser investigado, fosse possível fazer afirmações categóricas sobre as práticas de um grupo, como, por exemplo, a elite e o povo. Na verdade, elite e povo são categorias bastante heterogêneas e podem ser redimensionadas e divididas em outras categorias, a partir de diferentes critérios, importantes para a compreensão da relação com a escrita e a leitura: por exemplo, a participação em grupos religiosos, ou em grupos comunitários, além das diferenças entre sexo e faixa etária. O estudo desses e de outros inúmeros fatores, sem dúvida, alteraria os resultados encontrados para o que antes era abordado apenas a partir da definição de uma única categoria.

Além disso, ao se ocupar dos inventários póstumos, por exemplo, a macroanálise construía uma definição de leitura e de leitor a partir do critério “posse de livros”, procurando observar quantos títulos e a que classe social pertenciam os seus donos. Contudo, este leitor representado no inventário (assim como outros que sequer tinham seus bens inventariados) podia não ler as obras às quais estava exposto ou ainda ter acesso a diversas outras formas de leitura e a outros suportes da escrita em seu cotidiano que não podiam ser apreendidos por esse tipo de documento, o que o torna o inventário, portanto, uma fonte importante, mas parcial, sobre a história de leitura desse indivíduo e mais ainda de sua classe.

O segundo tipo de estudos, a microanálise, tenta suprir as lacunas do método quantitativo, ao procurar observar esses desdobramentos das práticas de leitura que a outra perspectiva acabava por não se ocupar em explicar. Àquele conjunto de fontes documentais, outras se juntaram: a movimentação de empréstimos de livros em bibliotecas públicas; a constituição do acervo destas instituições; a observação das práticas de leitura nesses e em outros espaços, públicos ou privados etc. Passou a ser relevante observar não apenas como cada grupo social concebia e realizava a leitura, mas também como um “mesmo” texto poderia ter diferentes formas de apropriação, poderia ser lido diferentemente, a depender da época, dos leitores e das injunções aos quais estes estavam submetidos ao interpretarem este texto (CHARTIER, 1999a). Essa mudança de ponto de vista tornou possível, por exemplo, esclarecer alguns equívocos.

Mornet [...] comprovou que o estudo dos catálogos das bibliotecas poderia gerar conclusões que questionavam alguns lugares-comuns da história literária. [...] As bibliotecas estavam cheias de obras de autores que foram completamente esquecidos, e não dava nenhuma base para vincular determinados tipos de literatura (a obra dos filósofos, por exemplo) a determinadas classes de leitores (a burguesia). (DARNTON, 2010a, p. 176) Essa relação unívoca entre estratificação social e a distribuição e circulação de bens culturais entre os grupos resultantes dessa divisão em classes é herdeira de uma tradição de estudos da sociologia histórica da cultura (CHARTIER, 1996), que tendiam a correlacionar a produção e circulação de certos bens culturais como próprias e exclusivas de certos grupos sociais. Assim, segundo estes estudos, as leituras eruditas estariam relacionadas a grupos sociais de elite, e, contrariamente, as leituras tidas como populares seriam próprias apenas de leitores das camadas mais pobres da população. Contudo,

A circulação dos mesmos objetos impressos, de um grupo social a outro, é, sem dúvida, mais fluida do que sugeria uma divisão sócio-cultural muito rígida, que fazia da literatura apenas uma leitura das elites e dos livros ambulantes apenas a dos camponeses. De fato, hoje estão bem atestados tanto o manuseio de textos eruditos por leitores que não o são, quanto a circulação, nem exclusiva nem mesmo majoritariamente popular, dos impressos de grande difusão. (CHARTIER, 1996, p. 79)

Para fugir a esse impasse e evitar conclusões precipitadas sobre a história da leitura, o autor sugere que à observação sobre a presença dos livros nos diferentes grupos sociais seja acrescentado o estudo sobre as diferentes maneiras de apropriação dos livros e demais impressos no interior de cada grupo social, a fim de registrar os contrastes e contradições nas maneiras de ler, contrastes estes frutos das relações particulares que cada grupo mantém com a leitura enquanto prática.

Para Darnton (2010a), uma história da leitura que se pretenda coerente e justa em relação à complexidade do tema precisa considerar os diferentes elementos/sujeitos envolvidos na produção/circulação do livro, e as diversas formas de articulação entre esses elementos, quais sejam: autores, editores, gráficos, fornecedores, distribuidores, livreiros, leitores, entre outros. Nesta pesquisa, dedicar-nos-emos ao estudo de apenas alguns dos elos entre esses elementos que compõem o ciclo do livro, a saber: os leitores, as bibliotecas e as práticas de leitura, articulados com os fatores que ocupam o centro do diagrama proposto por Darnton (2010a): as influências intelectuais, a conjuntura econômica e social e as sanções políticas e legais.

Ao se inserir nesta linha de estudos, portanto, a presente pesquisa aborda a leitura a partir do complexo de fatores envolvidos na sua compreensão enquanto prática cultural (portanto, social, histórica, ideológica), procurando valer-se das contribuições que os métodos quantitativo e qualitativo podem dar para a abordagem desta temática. Se, como sugere Certeau (1994), o leitor é um caçador em terras alheias, cabe-nos observar seus procedimentos de caça e os movimentos utilizados por ele para capturar a sua presa. No caso específico desta pesquisa, como esse leitor/caçador atua no espaço da biblioteca? Quais suas práticas e táticas de “captura” e como estas contribuíam para definir o que é ser um leitor de biblioteca em cada momento? É o que discutiremos nos próximos itens.

2.2. Espaços da leitura e seus visitantes: o temido leitor e suas práticas