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Sobre a constituição inicial do acervo e a sua movimentação pelo público leitor

CAMPINA ISTÓRIA

1. DO GESTO SIMBÓLICO DE FUNDAÇÃO AO ATO POLÍTICO DE MANUTENÇÃO

1.2. Biblioteca Pública Municipal de Campina Grande: primeiras páginas dessa história

1.2.3. Sobre a constituição inicial do acervo e a sua movimentação pelo público leitor

A acolhida da população em relação à biblioteca não se dá apenas através do reconhecimento da importância do gesto do prefeito campinense; os cidadãos campinenses querem, de alguma forma, colaborar para que a biblioteca cresça e, consequentemente, querem também garantir que seu nome seja associado a esse crescimento, como benfeitores da cultura local. Assim, atendendo aos apelos reforçados nos jornais (ver, por exemplo, a matéria publicada em A Voz da Borborema do dia 10/11/1938, mencionada anteriormente), são muitos os cidadãos ilustres e as instituições que se dispõem a ajudar no propósito de fazer a biblioteca prosperar, doando, para tanto, livros ao acervo. Os livros doados, bem como o nome dos doadores, passam a ser publicados recorrentemente no jornal A Voz da Borborema, sob a seguinte justificativa:

Figura 5 – Notícia sobre a intenção de divulgar lista dos livros doados à Biblioteca

Fonte: Jornal A Voz da Borborema (12/03/1938), disponível no acervo da Biblioteca Átila de Almeida (UEPB)

Como essa publicação dos livros doados ocupa várias edições do jornal ao longo do ano de 1938, e como em cada edição são vários os títulos e os doadores, decidimos por reunir essas informações numa tabela (disponível integralmente no Apêndice A), identificando a edição do jornal, o doador e as respectivas obras. O levantamento desses dados e a construção da tabela trazem informações importantes sobre a biblioteca em três diferentes aspectos: a construção inicial do acervo, composto em grande parte por essas doações; a circulação de determinadas obras na cidade, pois nos indica que obras estavam sob a posse desses doadores; e a apropriação dessas obras por outros leitores, através da biblioteca.

Em resumo, o que pudemos observar é que, de março a novembro de 1938, foram doados ao todo 283 obras, além de diversos números de jornais e revistas, por 75 doadores, constituídos por cidadãos comuns e instituições. No que diz respeito aos doadores, verificamos que é possível supor o status social de alguns deles, tendo em vista que seus nomes são precedidos, na publicação, por títulos como “Dr.” ou “Prof.” e

alguns têm seu vínculo religioso revelado, ao serem identificados como “padre” ou “cônego”. Entre eles, é possível identificar algumas das figuras ilustres da história de Campina Grande, como a professora Apolonia Amorim e Félix de Sousa Araújo, este último que viria, posteriormente, a dar nome à biblioteca municipal. O próprio prefeito não é sequer identificado pelo nome, mas apenas pelo cargo que ocupa, em cuja sintonia estão as obras doadas por ele: Álbum das realisações do Governo Argemiro Figueirêdo e dois volumes de O estado autoritário e a realidade nacional.

Há ainda as doações realizadas por instituições públicas e/ou particulares, tais como livrarias (Moderna, H. Antunes, Campinense e Casa Brasil), editoras (Cia Editora Nacional, Vecchi Editora, Livraria Editora da Federação, Casa Editora Cruseiro do Sul, F. Brigueit & Cia, Livraria Editora Jacinto – Rio de Janeiro), além do Rotary Clube e de órgãos do governo, como a Prefeitura Municipal e o Departamento de Viação e Obras Públicas do Estado. Ao observarmos os títulos oferecidos por esses doadores, verificamos que pode haver, implícitos ao gesto, dois fatores que orientaram a escolha a respeito de quais obras doar: o primeiro deles pode ter sido a conveniência de doar obras de fácil acesso para o doador ou que não representassem um gasto/custo elevado para ele.

A partir disso, se verifica, por exemplo, que as livrarias tendem a oferecer obras as quais costumavam comercializar (como é o caso da Casa Brasil, responsável pela doação de diversos exemplares de revistas variadas); as editoras doam as produções do seu próprio catálogo (a Livraria Editora Jacinto, por exemplo, doa principalmente livros didáticos, e a Livraria Editora da Federação privilegia a oferta de livros espíritas); os órgãos públicos (como a prefeitura) oferecem majoritariamente obras de publicação do próprio governo ou de temática relacionada à política nacional (a exceção neste caso é a Secretaria do Palácio da Redenção, que doa também a obra de literatura Histórias da

Velha Totônia, do paraibano José Lins do Rego); e instituições privadas, como o Rotary Clube, doam os boletins informativos produzidos por elas. Quanto aos particulares, não é fácil perceber os perfis desses doadores quanto ao tipo de doações realizadas, mas é provável que fosse mais conveniente doar obras relacionadas às suas respectivas áreas de atuação (as quais não lhes fizessem falta para a realização do seu trabalho) ou ainda de literatura.

O segundo critério provavelmente levado em conta (talvez não conscientemente) é o fato de que o doador teria seu gesto publicizado através do jornal, com a divulgação do seu nome, seguido da identificação de qual obra foi por ele doada. Assim, a obra

doada também representa que imagem esse doador queria construir de si como benfeitor, ou seja, não bastava, nesse caso, a doação em si como forma de se promover, mas a escolha da obra também poderia representar o status e a erudição do doador, além de demonstrar que obras ele considerava úteis para a comunidade usuária da biblioteca. Nesse sentido, é curioso observar, por exemplo, a doação de livros em língua francesa, sobre Filosofia, Religião e Medicina, como Philosophie – deux mois Eu e La

Sociologie (doados pelo Dr. José de Farias), Manual d’Histoire Ecclesiastique (dois volumes doados pelo Cônego José Delgado), e Malaidies Blenorrhagique e L’infection

Gonococcique (doados por Dr. Apuichio Vieira).

Entre os livros que predominam na lista de doações, os romances e os livros de história apresentam certo destaque. Vale ressaltar, contudo, que, dos 283 títulos doados, apenas 17 pertencem a grandes autores da literatura brasileira e estrangeira, cujos nomes permaneceram até os dias atuais: Monteiro Lobato (02), Machado de Assis (01), Oscar Wilde (01), Graciliano Ramos (02), Victor Hugo (02), José Lins do Rego (01), F. Dostoiévsky (01), Menotti Del Pichia (01), William Shakespeare (01), Camilo Castelo Branco (01), Rachel de Queiroz (01), L. de Tolstói (01), Humberto de Campos (01) e uma coletânea de contos com diversos autores (como José de Alencar, Mario Alencar e Visconde de Taunay). Os demais são de autores pouco conhecidos hoje em dia, como O

perfume de Querubina Doria (de Téo Filho) e A conquista amorosa de Casanova (de Claudio de Souza).

Mesclam-se, portanto, nessa lista de doações, dois tipos de livros: o primeiro deles, formado por títulos que poderiam contribuir para a (in)formação dos cidadãos, para sua formação moral e religiosa, em última instância, para a sua educação; o segundo tipo é formado pelos livros relacionados a uma representação de leitura como forma de lazer valorizada pela gente dita “culta” (no caso da literatura). A partir dos dois tipos de livros, uma forma “útil” de ocupar o tempo livre: através da leitura.

Esse recurso às doações dos cidadãos ou das instituições para a constituição do acervo inicial, bem como a publicação, em jornal, da lista de obras doadas e dos nomes dos respectivos doadores também foi registrado em relação à Biblioteca Pública Olegário Vale (Caicó-RN), entre os anos 1918 e 1920:

[...] o periódico O Seridoense divulgava a movimentação das doações de livros para a Biblioteca Olegário Vale, que atingiram cento e onze novos títulos de autores estrangeiros, nacionais e regionais, incluindo-se livros de religião ─ dentre eles, o Novo Testamento ─ e obras filosóficas, científicas, históricas, didáticas, pedagógicas, técnicas, jurídicas e literárias (contos,

crônicas, conferências, poesias, romances, novelas). (ARAÚJO; MEDEIROS, 2006, p. 5)

Assim como ocorreu anos depois com a Biblioteca Pública de Campina Grande, naquela biblioteca caicoense a lista dos doadores era formada por cidadãos comuns e também por instituições, a exemplo da Biblioteca e do Museu Nacionais. Contudo, em ambas, o maior volume de obras doado era registrado entre os particulares.

Além das doações de livros realizadas pela população, o acervo da biblioteca municipal de Campina Grande vai sendo constituído também através das bibliotecas de particulares ilustres, adquiridas pelo governo após o falecimento do proprietário. É o caso, por exemplo, da livraria de Clementino Procópio, adquirida ainda durante o ano de 1938 e cujos 226 volumes foram avaliados e catalogados por Hortensio de Souza Ribeiro, a pedido do prefeito Bento Figueiredo (conforme consta em notícias publicadas em A Voz da Borborema, recuperadas nas Figuras 6 e 7, abaixo). A biblioteca terá outras aquisições semelhantes ao longo de sua história.

Figura 6 – Notícia sobre a incorporação da livraria de Clementino Procópio à Biblioteca (maio/1938)

Fonte: Jornal A Voz da Borborema (21/05/1938), disponível no acervo da Biblioteca Átila de Almeida (UEPB)

Figura 7 – Notícia sobre a incorporação da livraria de Clementino Procópio à Biblioteca (junho/1938)

Fonte: Jornal A Voz da Borborema (01/06/1938), disponível no acervo da Biblioteca Átila de Almeida (UEPB)

Como vimos até aqui, durante todo o seu primeiro ano de existência a biblioteca pública municipal foi notícia em várias ocasiões em A Voz da Borborema. Além de todas as matérias já citadas, merecem destaque ainda publicações relacionadas à movimentação da biblioteca, tanto quanto ao número de leitores e de consultas, quanto aos eventos que se realizavam no seu salão de leitura, organizados pelo Centro Cultural Campinense, que ali passa a funcionar no mesmo ano de fundação da biblioteca. Tais eventos movimentavam o espaço dessa instituição, que ampliava sua atuação ao não se restringir a funcionar apenas como sala de leitura. Em relação aos leitores, são escassas as informações sobre suas atividades na biblioteca (tendo em vista que a própria instituição não guarda esses dados). Em quatro edições de A Voz da Borborema (em 06/08, 31/08, 08/10 e 10/11/1938, conforme se pode conferir no Anexo B), registramos informações sobre a quantidade de visitas e de obras consultadas, mas não há nenhum

documento que explicite o tipo de obras consultadas, quem eram esses leitores, nem as suas práticas na biblioteca. Temos apenas números que nos indicam ao menos que esses leitores existiam. Essas informações apareciam da seguinte forma no periódico, conforme ilustra a Figura 8:

Figura 8 – Lista de doações e Movimento da Biblioteca no mês de Julho

Fonte: Jornal A Voz da Borborema (06/08/1938), disponível no acervo da Biblioteca Átila de Almeida (UEPB)

A publicação desses dados se referia sempre ao mês anterior à data da publicação no jornal. Então, segundo esses dados, o número de visitas realizadas em julho (como se pode verificar no recorte acima, de 06/08/1938), foi de 151 pessoas. Nos meses de agosto, setembro e outubro, registraram-se, respectivamente: 148, 290 e 168 visitas. Já a quantidade de obras consultadas em cada um desses meses foi, respectivamente: 172, 137, 309 e 113 obras. Leitores havia, mas, por hora, não é possível saber quem eles eram, o que buscavam e como usavam esse espaço.

Em resumo, nesse primeiro momento de existência da Biblioteca Municipal, segundo o que pudemos constatar através dos registros de A Voz da Borborema, o sentimento era de euforia e entusiasmo da população campinense, que se mostrou bastante receptiva à criação deste espaço de leitura. Devido a essa receptividade, houve o engajamento dos mais diversos segmentos da sociedade (imprensa, poder público, profissionais liberais) em torno da biblioteca, a fim de garantir-lhe o bom funcionamento, através do ato de doação de obras. Há, tanto na iniciativa do prefeito de atender a aclamação de uma elite intelectual quanto na reação popular, traços da visão

idealizada das bibliotecas, vistas como símbolos de poder e ferramentas para a educação e formação do espírito do povo. Se de fato ela serviu às diferentes camadas da população, não é possível saber, uma vez que não temos informações sobre o perfil dos leitores que a frequentavam nesse início (conforme já salientado).

Evidentemente, tamanho entusiasmo em torno da inauguração da biblioteca e do gesto do prefeito, tão exaltado em matérias do referido jornal, pode ser efeito da postura proibitiva do Estado Novo em relação às críticas a autoridades, ou mesmo resultado do comprometimento político do jornal A Voz da Borborema com o governo naquele momento. De qualquer forma, esse foi o discurso registrado durante todo o primeiro ano de existência da biblioteca, o que nos fornece dados importantes sobre como se deram as circunstâncias de sua fundação. Essa mesma euforia, contudo, não será percebida em publicações de décadas posteriores, conforme se verá mais adiante, no Capítulo 2.