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História, fontes digitais e os problemas de bancos de dados

A internet tem nos apresentado suas inúmeras e complexas possibilidades de comunicação e interatividade, que resultam em desafios e benefícios. No campo da história surgiram possibilidades e problemas para os pesquisadores que se aventuraram a mergulhar nas ondas do ciberespaço. Neste amplo cenário, chamam atenção as questões referentes aos arquivos digitais, virtuais, que configuraram novas categorias de fontes documentais para as pesquisas históricas.

O historiador, ao perceber-se num oceano de fontes e arquivos virtuais, deparou-se com demandas para escrever a história a partir de fontes virtuais e digitais. Num contexto de ampliação das fontes e arquivos digitais é necessário analisar e problematizar a nova matriz de fontes primárias, questionando metodologias a serem usadas e o entendimento de historiadores que relutam em utilizar a rede como fonte de pesquisa.

Parece-nos pertinente situar aqui o que seria um documento virtual. Antes, porém, se faz necessário o entendimento do documento. Segundo Almeida (2011, p. 10), “durante séculos, a historiografia baseou suas regras de validação de fontes e metodologia de análise em suporte documental: o papel”. O autor buscou nos estudos de Lucien Febvre a ampliação do conceito de documento, ou mesmo sua flexibilização para estabelecer um entendimento sobre o documento, que extrapola a tradicionalidade da própria historiografia, uma vez que Febvre defendeu que a ausência de documentos escritos não impede a escrita da história, abrindo espaço, portanto, a outras fontes.

Nesse sentido, ao se considerar a ampliação do conceito de Paes (2004), os arquivistas entendem por documento um registro de informação independente do suporte, não relacionando, portanto, o documento a um suporte específico. Para Almeida (2011, p. 17), o “documento histórico” compreende uma gama de registros da atividade humana, como “escritos dos mais variados tipos, logicamente, mas também a música, arquitetura, palavra oral, pintura, escultura, fotografia, cinema, iconografia, vestuário, etc.”, enquanto o “documento

digital” se refere como aquele “de conteúdo tão variável quanto os registros da atividade humana possam permitir, codificados em sistema de dígitos binários, implicando na necessidade de uma máquina para intermediar o acesso às informações”, na maioria das vezes, o próprio computador. É importante destacar ainda que entre os documentos digitais, podemos encontrar aqueles que foram digitalizados, ou seja, reproduzidos a partir de documentos anteriormente existentes em suportes físicos, como o papel; e os documentos oriundos do da internet, produzidos e veiculados nela.

Ao tratar da metodologia aplicada para documentos virtuais, Almeida (2011), a exemplo de Lucchese (2014), ressentiu-se da falta de literatura sobre o tema, o que não impede, todavia, a procura de adaptações de outros métodos quando se trata de fontes relacionadas à internet e à tecnologia da informação. Para Leão (2001, p. 24), a construção da internet reuniu diversas especialidades, o que fez “da web uma teia, uma rede, na qual uma complexa malha de informações se interliga”, sendo ela a “própria tecnologia hipertextual que permite os elos entre diversos pontos” do planeta. Ao mesmo tempo em que os recursos da informática e do ciberespaço possibilitaram acesso a uma plêiade de informações documentais, seja em páginas de bibliotecas, em jornais virtuais ou impressos, em blogs, em arquivos digitalizados e em tantas outras publicações, o risco de arquivos e fontes frustrarem os historiadores em função da limitação do espaço dos bancos de dados é recorrente.

Esse paradoxo ficou visível nos estudos de cibermeios de Dourados, cujos primeiros arquivos, sejam eles textos ou layout, não foram encontrados. Celso Amaral, responsável pela criação do design do primeiro jornal de Mato Grosso do Sul a mergulhar na teia mundial de computadores, O Progresso, reafirmou não ter guardado qualquer registro dos arquivos da época porque não havia essa preocupação. Esse argumento foi reforçado por Paulo Lobo, desenvolvedor de site de web notícias e contemporâneo de Amaral, ao observar que quando começaram a aparecer os websites, os profissionais do setor não tinham o entendimento do impacto na sociedade daquilo que estavam lidando. Segundo ele, “não havia uma preocupação com isso na época, com as telas. Era feito tudo em código, ninguém desenhava nada, era tudo direto no código, ninguém se preocupava com isso, então, você não tinha nem croqui, um pré-

layout, nada” (LOBO, 2017) 119.

Um episódio que evidencia bem a questão do desaparecimento de fontes históricas do ambiente virtual foi a criação do site Vota Já. Celso Amaral contou que ajudou a criar sites no final da década de 1990 e início dos anos 2000, como o Vota Já, página virtual que concentrou

notícias sobre as candidaturas majoritárias nas eleições municipais de 2000, além de criar fóruns de bate-papo. O projeto Vota Já inspirou a criação de outros sites de webnotícias em Dourados, conforme lembrou Amaral.

Eu distribuí acesso a todos os candidatos a prefeito de Dourados, eu achei mais fácil que os políticos mesmos, os assessores e os publicitários alimentassem seus sites de campanha, e não ao contrário, de a gente alimentar e criar matérias; então, foi uma experiência bem interessante. Nós conseguimos com o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) autorização para fazer isso, então, foi provavelmente o primeiro bate-papo online do Brasil, com candidatos, onde as pessoas cadastradas podiam fazer perguntas aos candidatos e eles respondiam. Teve uma boa participação de todo mundo, uma coisa muito boa. E o interessante da alimentação do “Vota Já” é que praticamente, todos aqueles que participaram desse projeto, acabaram criando sites virtuais de notícias, depois. Então, foi uma coisa muito bacana, porque a maioria dos sites que existem hoje, em Dourados, eles começaram no “Vota Já”, eles aprenderam a postar a notícia, foi um negócio bem dinâmico e puderam ver como funcionava a coisa. Entre eles, os que saíram estão o Dourados News, a rádio Grande FM e diversos outros (AMARAL, 2018)120.

A experiência foi considerada uma iniciativa bem-sucedida, pois abasteceu a imprensa com notícias dos candidatos, embora não tenha restado qualquer arquivo digital após sua extinção, perdendo-se um manancial de informações sobre as eleições. (AMARAL, 2018). O caráter volátil da documentação virtual nas primeiras décadas de internet foi problematizado pelo historiador uruguaio Juan Andrés Bresciano, que reconheceu alguns impedimentos e limitações de acesso aos repositórios dos arquivos e fontes digitais, sendo o problema amenizado em função das tecnologias da informação e comunicação que multiplicaram os suportes e formatos documentais, ampliando o conceito de arquivos e modificando os modos de identificação e reprodução dos dados que aportam as fontes (BRESCIANO, 2010).

De uma forma geral, Bresciano (2010) entende que a mídia eletrônica e a disseminação da digitalização remodelaram o conceito de fonte histórica ao diluírem diferenças que permeavam diversos tipos de registros. Ele enumera quatro elementos surgidos na mudança de tipologia do documento em papel e o virtual: o suporte, elemento material que guarda a informação; o meio, sistema que transmite a informação; a classe, natureza dos conteúdos; e o formato, disposição dos aspectos formais do documento (BRESCIANO, 2010, p. 286). Para o autor, as diferenças tipológicas geradas por estes elementos são superadas com a documentação digital, porque estão relacionadas a cada meio de transmissão de dados, por sua vez, associado à mídia e aos códigos de armazenamento específicos.

Com o advento das tecnologias digitais, a informação (não importa o meio original em que é gerado) é registrada no mesmo meio e com o mesmo código. Os signos que codificam os textos, sons ou imagens são reduzidos a combinações de dígitos. As

diferenças entre os sistemas de comunicação e o tipo de veículo – rádio, cinema, televisão, indústria editorial – desaparecem também, dando origem a um novo sistema de comunicação capaz de integrar os anteriores. As fontes eletrônicas – mais especificamente as digitais – se diversificam graças à conjuntura de três classes de tecnologias que dão origem aos documentos: as tecnologias da informação produzem registros computacionais, as tecnologias da comunicação geram registros telemáticos e as tecnologias audiovisuais criam registros multimidiáticos. Tal diversificação traz consequências metodológicas inevitáveis para o estudo do presente, não só porque amplia o espectro heurístico, mas também porque modifica algumas características importantes do documento tradicionalmente concebido. (BRESCIANO, 2010, pp. 286-287). Tradução nossa 121.

Entre a falta de fontes primárias no período inicial da internet e o posterior, com a volatilidade do suporte que, muitas vezes, pode contribuir para o desaparecimento de arquivos e posts, tornando quase impossível a recuperação da memória cibernética, apresentou-se uma infinidade de arquivos, fornecendo um amplo espectro documentacional capaz de complicar a vida do historiador. A questão que se apresenta é como o historiador deve lidar com as fontes em novos formatos numa situação quase imensurável de tão complexa. Para Almeida (2011, p. 24), o processo ainda está sendo assimilado pelos historiadores e alerta: “mais que facilitar o trabalho do historiador, a grande quantidade de fontes constitui um obstáculo perigoso”, pois o “impulso em buscar expandir a análise pode levar o pesquisador a um labirinto de fontes, onde seria difícil encontrar a saída no tempo disponível”. Para fugir dessa armadilha, o autor sugere ao pesquisador selecionar documentos mais relevantes para seu estudo, uma vez que o campo metodológico está em processo de adaptação ao novo contexto.

Especialista em registros eletrônicos no Canadá, Luciana Duranti analisou o espectro de fontes virtuais que surgiram com a proliferação dos sistemas eletrônicos de informação e constatou que “esse mundo físico bem-arrumado dos arquivos desapareceu”, porque “os sistemas eletrônicos estão gerando uma nova realidade documental tão distinta daquela com que os arquivistas estão familiarizados que é muito difícil para eles acreditar que exista de todo uma realidade documental” (DURANTI, 1994, p. 10). A autora advertiu sobre a necessidade de compreender a estrutura administrativa gerada a partir do uso dos sistemas de informação

121 Con el advenimiento de las tecnologías digitales, la información (no importa el medio original en que se genera)

se registra en el mismo medio y con el mismo código. Las señales que codifican textos, sonidos o imágenes son reducidas a combinaciones de dígitos. Las diferencias entre sistemas de comunicación por tipo de información — radio, cine, televisión, industria editorial— desaparecen también, dando origen a un nuevo sistema comunicacional capaz de integrar a todos los anteriores. Las fuentes electrónicas —y más específicamente las digitales2— se diversifican gracias a la conjunción de tres clases de tecnologías que originan documentos asociados: las tecnologías de la información producen registros computacionales, las tecnologías de la comunicación generan registros telemáticos, y las tecnologías audiovisuales crean registros multimediáticos. Tal diversificación tiene consecuencias metodológicas insoslayables para el estudio del presente, no sólo porque amplía el especto heurístico, sino porque modifica algunas características sustanciales del documento tradicionalmente concebido (BRESCIANO, 2010, pp. 286-287).

para entender a função dos registros eletrônicos gerados pela cibernética.

Os sistemas eletrônicos processam a informação em lugar de apenas transmiti-la. Cada registro existe somente dentro do sistema e depende dele, não só para ter sentido, mas para ser processado e acessado. Por esta razão, os registros eletrônicos precisam ser identificados, não por séries, mas pelo conceito mais amplo de sistemas de dados informacionais. A organização de cada sistema de dados em microdados relacionados pelos softwares para uma indexação precisa permitir uma alta precisão da recuperação, inatingível no caso dos documentos físicos. Ao mesmo tempo, os registros eletrônicos são muito instáveis, dependem dos softwares adotados e sofrem rápida obsolescência, o que pode facilmente provocar a perda do contexto documental dos registros, ou, em termos tradicionais, da ordem original. De fato, no caso dos registros eletrônicos, a ordem original é encontrada no contexto relacional dinâmico do sistema. Essa funcionalidade é inerente à configuração do software e precisa ser preservada pelo arquivista para manter o sentido e a acessibilidade. Essa preservação não pode se iniciar após a geração dos registros, mas deve ser parte integrante das decisões de configuração que maximizam o layout do registro, da ligação dos registros entre si e com aqueles pertencentes a outros sistemas, e da função que cada tipo de registro preenche (DURANTI, 1994, pp. 10-11).

A nova realidade dos arquivos e documentos de qualquer suporte, principalmente o eletrônico, tem despertado interesse de pesquisadores, sobretudo, historiadores preocupados em entender a escrita da história no contexto da internet. A história digital surgiu como aporte de referencial teórico para ajudar analisar e entender os arquivos e fontes digitais como registros históricos. De acordo com Burton (2005, p. 207 apud ALMEIDA, 2011, p. 30), a história digital está promovendo uma revolução no campo da ciência, alterando a maneira de fazer história em todos os níveis de pesquisa e ensino, muito “embora a história digital seja importante para a operação e prática do fazer histórico, pouca atenção tem sido dedicada ao assunto pelos profissionais”. Os pesquisadores em história digital Stefania Gallini e Serge Noiret (2011) defendem a construção de uma infraestrutura cibernética específica, compartilhada entre os historiadores, para garantir acesso às novas ferramentas de pesquisa que surgiram a partir da web 2.0, uma vez que sua caraterística principal é o trabalho colaborativo e o compartilhamento das informações.

Estamos testemunhando hoje a integração da web semântica e das redes sociais para construir formas de “conhecimento” coletivo. É o espírito de cooperação das redes sociais que permite reunir usuários “similares” em plataformas coletivas, como por exemplo LibraryThing, Flickr, Delicious, Facebook, YouTube e Twitter, que têm provado ser útil também para a prática histórica. A participação dos usuários no conteúdo desses sites não depende mais do e-mail eletrônico, mas acima de tudo do contato direto através do navegador, inserção de documentos, textos, comentários, formulários multimídia, formas de indexação em sites. Dessa maneira, os atores da web não apenas consomem passivamente a comunicação e as informações na rede, mas também constroem objetos de consumo, possibilitados graças à simplificação tecnológica com a introdução de linguagens mais próximas do usuário final do que do próprio engenheiro de computação. Ao contrário do complexo sistema de páginas no formato html, as novas ferramentas são relativamente fáceis de manusear e criam em qualquer pessoa a impressão de serem protagonistas na rede, entendida e lida como não poderia ter sido em outra era tecnológica. Mas não é uma mera mudança de

ferramentas tecnológicas, faz parte de uma mudança cultural fundamental que incentiva esclarecer o conhecimento de todos e promover o desenvolvimento de inteligência coletiva num mundo incerto, o conhecimento é democratizado e nascem formas híbridas que relegam a distinção tradicional entre conhecimento acadêmico e profano, um fato novo que coloca enormes problemas no discernimento de conteúdo científico na web (GALLINI: NOIRET, 2011, pp. 26-27). Tradução nossa122.

Os autores ainda ressaltaram o papel relevante da história digital na criação de uma nova etapa na relação entre o historiador e seu público, fazendo uso da tecnologia digital em uma sociedade dominada pela força dos meios de comunicação da internet. Gallini e Noiret (2011, p. 31) alertaram, contudo, que a difusão das tecnologias do tipo 2.0 convida os estudiosos a revisar comportamentos epistemológicos de disciplinas humanísticas, como a história, no contexto do que definiu como humanidades digitais, uma vez que “a história digital 2.0 está dominada por práticas que desafiam métodos tradicionais que fundamentaram a história como disciplina assim como os lugares convencionais da matéria, sem, contudo, se contrapor à sua própria ontologia”. Dessa forma, muitos estudos de pesquisadores tiveram o cuidado de tratar dos blogs, na história 2.0, principalmente os ligados a comunidades dos mais diversos segmentos, como política, etnia, cultura, em que se publicam testemunhos individuais ou coletivos, utilizando as tecnologias da web 2.0 para consolidar práticas sociais e de memória.

4.4 A produção da notícia e as ferramentas tecnológicas: olhares de profissionais da mídia