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Todo indivíduo participa da construção de uma pluralidade de campos históricos: do grupo familiar, comunitário, social, entre outros. Aqui a referência ao indivíduo é con-

siderada de modo bastante amplo, tanto aqueles que são invisibilizados pela socieda- de, quanto os que são visibilizados, ou os que têm uma hiper visibilidade. Pensamos que a História não é feita só pelos poderosos, mas por todos os humanos. Ela é uma construção e enquanto tal ela se presta a múltiplas interpretações e leituras. A História está sempre sendo construída e reconstruída, como qualquer outra disciplina social ou humana, recebe influencias da conjugação de forças que se apossam dela e de outras forças que lutam por fazê-lo (Deleuze, 1962).

Se deslocarmos as ideias sobre as forças históricas e sociais para o plano dos sujeitos, diremos que elas têm influencias nas construções das subjetividades. No entanto, exis- tirá uma relação dialética continua entre ser influenciado pelas produções da história e influenciar as mesmas. Deste modo as várias modalidades interpretativas históricas e sociais e as construções subjetivas estão sempre podendo passar por reconstruções. Uma das ideias exposta por Freud em “Psicologia das Massas e análise do eu” é que as relações que interferem no indivíduo desde a sua infância são também relações sociais. Ele diz a conhecida frase: “Na vida psíquica do indivíduo considerado isoladamente o outro intervém regularmente como modelo, objeto, suporte e adversário. Por este fato a psicologia individual é ao mesmo tempo, e simultaneamente, uma psicologia social” (Freud, 1981, p. 123). Pode-se desmembrar esta ideia em outras (Carreteiro, 1993): - a identificação, qualquer que seja ela, já traz um social incorporado e as grandes noções do pensamento freudiano (pulsões, fantasias, projeções etc.) não podem ser circunscri- tas unicamente na perspectiva do pensamento individual, agem igualmente no campo social.

A narrativa é uma modalidade de compreensão das condições sócio históricas de pro- dução de vida dos sujeitos humanos. Ela permite observar o conjunto de eixos que intervêm nas histórias de vida (psíquicos, familiares, coletivos, sociais, econômicos e tantos outros). É através da articulação entre as diversas dimensões que atravessam o indivíduo que a construção subjetiva se faz, mantendo sempre certo nível de abertura, visto que a vida nas suas várias dimensões continua sempre pulsando.

A narrativa oral ou escrita é um principio de expressão do ser vivo, que narra seus suces- sos, evoca suas experiências, sentimentos e emoções, sempre vinculados a seu universo social (Enriquez, 2002, p. 36). A análise da história de vida vai buscar compreender o

trabalho da incorporação da herança ligada às origens sociais, familiares e institucio- nais. Ela permite estudar as modalidades, de como a história coletiva tem influência sobre os destinos individuais (Gaulejac, 2005).

Diversos campos teóricos estudam as narrativas de vida (Pineau & Le Grand, 1993). Nes- te texto nos focalizaremos sobre o denominado “Romance Familiar e Trajetória Social” (Gaulejac & Levy, 2000), que faz uma vinculação entre o que é da ordem do psíquico e o que é da ordem do social. Mas, antes de abordá-lo, percorreremos perspectivas que têm proximidades teóricas e que auxiliam a melhor adentrar o campo de nosso estudo. A perspectiva etno sociológica, na qual se situa Bertaux (1971, 1980), tem por objetivo estudar um fragmento particular de realidade social histórica, compreender como ele funciona e como se transforma, enfocando as configurações das relações sociais, os mecanismos, os processos, as lógicas de ação que o caracterizam. Em sua obra, Bertaux propõe chamar a história de vida de abordagem biográfica (approche biographique). Esta denominação ressalta a construção progressiva de uma nova abordagem sociológi- ca, a qual permite conciliar observação e reflexão. Estudando as questões voltadas para o trabalho, propõe denominar as narrativas de vida como narrativas de práticas. Sugere que elas sejam compreendidas não como um objeto único, do qual se busca apreender o sentido, mas sim como um conjunto de relações pessoais e interpessoais. As narrativas de práticas permitem a reconstrução da lógica de produção destas práticas e sua vincula- ção nas relações sociais. Cada narrativa de prática é concebida como a de um ser huma- no, que é influenciado sucessivamente por diferentes subconjuntos de relações sociais. A narrativa de prática favorece a observação do processo de distribuição dos seres hu- manos nas relações sociais, o qual Bertaux denomina processo de antropo-distribuição. Concebe a produção antroponômica como a produção da energia humana (Bertaux, 1973), tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo (concretização na práxis. Ex: energia do artesão, do homem de negócios, da dona de casa, entre outros). A famí- lia, para o autor, é o lugar principal de produção antroponômica. Não se refere à famí- lia no sentido global, mas específico: operária, burguesa, camponesa, entre outras. As relações, que determinam as práticas de cada uma delas, são diferentes. O que vai ser determinante é a vinculação das famílias nas relações de classe.

O ser humano vai ser portador da maneira como ele é produzido. Pode-se, deste modo, afirmar que ele é portador de traços de práticas. Esta questão é importante, pois toda narrativa contém elementos que se vinculam a forma como o narrador se insere no es- paço social do qual faz parte. A ideia implícita é que a perspectiva social tem uma forte influência na construção do humano, e as modalidades de práticas sociais são incorpo- radas ao sujeito.

É através das narrativas que o sentido que os indivíduos dão para suas ações vai poder ser apreendido. Toda narrativa fará referências, implícitas ou explícitas, a diversos per- tencimentos sociais, a uma variedade de instituições, grupos (família, escola, trabalho, vida associativa, amigos etc.) e organizações. Deste modo, a dimensão coletiva está sem- pre presente na narrativa. Quando ela é oral se dirige sempre a um outro, seja o ouvinte uma pessoa, um grupo ou ainda um pesquisador. Quando é escrita, pode, ou não, ser dirigida a um público bem especifico, como o citado acima.

Quando estudamos a história de vida podemos dizer que a narrativa autobiográfica é uma prática humana (Ferrarotti, 1983). Ferrarotti considera, se inspirando em Sartre, que toda prática individual humana é uma atividade sintética, uma totalização ativa do conjunto do contexto social. Uma vida é uma prática que se apropria de relações sociais, as interiorizando e as retransformando em estruturas psicológicas, através da atividade de desestruturação-reestruturação. Em cada um de nossos atos, sonhos, delírios e com- portamentos, encontramos o sistema social. Para este autor, todo indivíduo é um pólo ativo na rede de relações. Quando afirma que ele tem uma prática sintética quer signi- ficar que ele se apropria do social, o midiatizando, o filtrando e o projetando em outra dimensão, ou seja, a dimensão de sua subjetividade.

Porque pensamos que a narração da história de vida permite conhecer não só os in- divíduos, mas ainda o contexto social no qual eles foram produzidos? Pois “Se cada indivíduo representa a reapropriação singular do universo social e histórico que o cerca, poderemos conhecer o social partindo da especificidade irredutível de uma prática in- dividual” (Ferrarotti, 1983, p. 51). Por isto o autor considera ser possível conhecer “uma sociedade através de uma biografia”, o que se desdobra na ideia de que uma biografia não é unicamente a narrativa de experiências vividas por um indivíduo, mas ela se apre- senta também como uma microrrelação social.

Consideramos que a escuta e a análise das narrativas biográficas devem poder estar atentas a vários aspectos: as zonas cronificadas que se repetem, assim como as sinaliza- ções de movimentos espontâneos e novos que participam de sua construção. A escuta plural vai ser sensível à pluralidade de dimensões que compõem as narrativas. Por elas não serem unificadas, mas poliformes, a escuta deve poder detectar as nuances que as compõem. Elas têm sincronias, ambiguidades, contradições e ainda várias oscilações pulsatórias, mesmo que estas sejam difíceis de serem apreendidas. É a escuta sensível que vai poder detectar estas dimensões e buscar, junto com o narrador, construir sen- tidos. Estes não devem ser postulados como fixos, pois são sempre passíveis de serem reconstruídos. Os sentidos não são visto como compondo verdades, mas hipóteses, que mudam segundo as forças que as atravessam. Aqui seguimos Morin (1990), para quem os fenômenos são sempre muito mais complexos do que podemos apreender. Enriquez (2002) também ajuda a pensar esta questão, ao afirmar que todo fenômeno terá zonas de desconhecimento. Estes dois autores ajudam a se ter uma posição de humildade na elaboração de sentidos.

A narrativa terá sempre um interlocutor real ou imaginário (Rhéaume, 2012). A dimen- são relacional funciona como um suporte de acolhimento da produção da narrativa. Deve-se considerar que lugar social e simbólico se está ocupando e a quem se fala (tanto a dimensão psíquica, quanto social). Enfim, existe um conjunto de forças que partici- pam na construção narrativa.

As formas e os conteúdos que se desenvolvem ao longo da narrativa têm uma relação com o interlocutor e com o tipo de vínculo estabelecido entre o que escuta e o que narra sua vida. No caso de uma pesquisa entre entrevistado e entrevistador, se forma uma espécie de feedback circular.

A história só é acessível pela memória, que é coletiva e simbólica. A memória é sempre percebida em uma perspectiva dinâmica, ela está sempre sendo reconstruída, seu senti- do é buscado através de um trabalho de interpretação, que é determinado pela situação atual daquele que narra sua história e do conjunto de circunstâncias presentes, na qual se inclui a relação com o pesquisador. Entre os elementos presentes estão também as exigências do inconsciente. O trabalho da memória não existe sem o do luto e da perda. Ricoeur nos diz que “estes trabalhos afetam nossos esforços para narrar de outros mo- dos nossas histórias de vida, sejam elas individuais ou coletivas” (Ricœur, 2004, p. 2).

È neste ponto que podemos introduzir a perspectiva do “Romance Familiar e Trajetória Social” (RFTS) (Gaulejac, 2002). Ao mesmo tempo em que ela tem proximidades com as outras abordagens descritas, ela articula as dimensões sócio históricas às exigências do inconsciente. Poder pensar no engendramento destas dimensões nos faz evitar cair em posições extremas, que são de um lado o sociologismo e, do outro, o psicologismo. Trata-se de ter leituras múltiplas, que se vinculam e permitem análises transdisciplina- res. Uma das originalidades do método “Romance Familiar e Trajetória Social” é poder vincular a realidade objetiva dos fatos sociais e a realidade da experiência subjetiva. A hipótese levantada é que a história pessoal é produzida por uma multideterminação de fatores (psíquicos, sociais, ideológicos, econômicos, políticos, entre outros) e que a construção subjetiva vai depender da arte de cada sujeito de se construir em permanên- cia a partir dos diferentes eixos que o atravessam (Carreteiro, 2002).

Os estudos e pesquisa oriundos da abordagem RFTS mostram existir em toda narrativa de vida uma forte tensão entre o sujeito produto da história (que sofre o peso da histó- ria) e o sujeito agente de historicidade, ou seja, aquele que quer ser autor de sua história e ser reconhecido como construtor de história.