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Tornar-se reprodutor da violência sofrida, mas sem desejá-lo

pela violência intrafamiliar, pela negligência e pelo desamparo

3) Tornar-se reprodutor da violência sofrida, mas sem desejá-lo

Quando a triangulação constituída não se revela com capacidade suficiente para lidar com a ansiedade presente, no intuito de abrangê-la ou dissipá-la, há o aparecimento de formações triangulares adicionais, denominados como triângulos imbricados (Bowen, 1976) ou triângulos justapostos (Andres, 1971, citado por Nichols & Schwartz, 1998). De acordo com esses autores, a inserção contínua de novas pessoas na triangulação inicial produz múltiplas triangulações que formam uma tessitura caótica e caracte- rizada por sobreposições de triângulos de difícil observação. A meta deste múltiplo envolvimento se inscreveria com o mesmo objetivo de apartar a ansiedade familiar. A

imaturidade dos filhos em terem que assumir o papel de continência aos anseios dos pais imaturos, associada à insustentabilidade de ser receptáculo amortecedor da violência intrafamiliar e o lidar com as questões edipianas produzidas pela intensa fusão entre mãe e filho resultaria na necessidade de inclusão de um novo elemento na triangu- lação inicial.

Nestes termos, pode-se dizer que a nova inserção não se restringiria necessariamente a uma nova pessoa, podendo se direcionar para outros elementos. Desta maneira, com- preendeu-se do empírico que o consumo de BA disponibilizou-se como elemento de uma nova triangulação. O ato de beber excessivamente, compreendido enquanto sintoma fa- miliar instalar-se-ia em situações nas quais a ansiedade familiar se encontrasse elevada excedendo-se a capacidade do sistema familiar de ligá-lo ou neutralizá-lo (Bowen, 1974). O esquecimento provocado pela BA seria uma forma apresentada de lidar com o in- suportável da relação familiar. “Quando, quando eu bebo, eu não lembro de nada. A minha bebida é uma bebida... que eu esqueço de tudo!” (TESEU); “Ah, a gente, a gente esquece das coisas, né? A gente esquece dos problemas... se tu tiver algum problema tu esquece... você se sente mais animado pra fazer alguma coisa... é diferente demais!” (AKHENATÓN).

Durante anos, o beber serviu ou serve como um regulador auxiliar, até que os filhos se tor- nam como os pais, atores reprodutores de violência, não tendo mais no beber um aliado, mas um gatilho para a repetição do ciclo de violência vivenciado durante anos. Este padrão se reproduz na própria família e aquele que era vítima se transparece em al- goz e fiel cumpridor dos padrões vividos e condenados no passado. A teoria sistêmica contribuiu para o pensamento humano no sentido de direcionar o foco para além das personalidades individuais, redescobrindo a interconectividade fundamental da condi- ção humana. Neste sentindo, algumas perspectivas contribuíram para a teoria e a prá- tica do trabalho com os sistemas sócio-familiares. Conhecidas como terapias familiares intergeracionais (Elkaïm, 1998), as propostas contidas nesses modelos compreensivos e interventivos pressupõem que as famílias possuem uma história que extrapola a fa- mília nuclear e envolve a família extensa (Penso, Costa & Ribeiro, 2008). As questões que aparecem em uma geração podem passar para uma geração seguinte de outra forma, mas mantendo-se um padrão das famílias repetirem a si mesmas (Carter & McGoldrick, 2007). Estas heranças recebidas contemplam tanto aspectos positivos quanto negativos (Boszormenyi-Nagy, 1986). O patrimônio herdado em sua vertente positiva serviria para

assegurar a sobrevivência transgeracional, assim como facilitar a sobrevivência huma- na. Em sua dimensão negativa, caracterizar-se-ia pela herança de padrões disfuncionais (Bucher-Maluschke, 2008). Dessa maneira, o patrimônio dos problemas associados ao consumo de álcool e da violência seriam exemplos de padrões transferíveis ao longo das gerações.

Na busca de compreender este fenômeno de mimetismo de padrões intergeracio- nais, Bowen (1974) desenvolveu o conceito de processo de transmissão multigeracional. Segundo ele, a família é uma unidade emocional, portanto, um sistema cujo funciona- mento afeta e é afetado por todos seus membros. O padrão emocional da família é trans- mitido através de múltiplas gerações, onde todos os membros são agentes e reagentes dos problemas que surgem. Para este autor todas as famílias possuem dois processos basilares, que se influenciam mutuamente de maneira dialética. Uma das forças se direciona para a união das personalidades individuais no seio familiar enquanto a outra visa o logro da individualidade e separação da família. O desequilíbrio pendente para a união denominou “fusão”, “aglutinação” ou “indiferenciação do self”, enquanto a capacida- de de funcionamento autônomo estaria relacionada à maior diferenciação do self. Quando essa indiferenciação ocorre nas famílias de origem - conceito de massa egóico- familiar indiferenciada - as relações se caracterizam pelo fusionamento emocional, destacada dificuldade de diferenciação dos membros, caos cognitivo coletivo e exces- sivo apego (Bucher Maluschke, 2008). Nestes termos, os pais transmitiriam aos filhos o equivalente ao nível de maturidade ou imaturidade que alcançaram, por meio de um processo denominado de projeção familiar, sendo que o filho que é o alvo do processo de projeção torna-se mais ligado aos pais e menos diferenciado em termos de self, enquanto os filhos menos envolvidos tenderiam a lograr níveis mais altos de diferenciação (Bowen, 1974).

De acordo com Boszormenyi-Nagy e Spark (2008), a manutenção dessas heranças recebidas por diversas gerações ocorre por meio de lealdades invisíveis, compreendidas como a existência de um conjunto de expectativas familiares em torno da adesão a certas regras e padrões e orquestradas em torno de distribuição de compromissos entre todos os membros. Esta distribuição, também conhecida por delegação2, implica na

execução de tarefas, missões encomendadas de forma inconsciente, que estão vincula- das aos anseios do grupo familiar. Seu cumprimento fiel defere prova de solidariedade e

compromisso às expectativas familiares, além de conferir status de pertencimento àquele que se revela leal. O seu contrário se concentra naqueles que transgridem ao que foi dele- gado, podendo ocasionar a expulsão do membro traidor (Simon, Stierlin & Wynne, 1988). Nestes termos, o ciclo de violência descrito pode ser pensado enquanto produto de redes complexas de delegações, lealdades invisíveis, projeções familiares que exigem uma ma- nutenção da tradição familiar em seu eixo vertical (relativo às múltiplas gerações). Não obstante, no nível horizontal, esta continuidade do ciclo de violência pode encontrar ex- pectativas não condizentes com aquelas transmitidas transgeracionalmente. Esta situa- ção pode gerar conflitos de lealdade, ocasionando percepções estranhas sobre si mesmo. Em um dos participantes esta situação revelou- se exemplar, quando o mesmo destacou existir uma espécie de duplo dentro de si. Um almeja mudar a relação com o beber e aquilo que o padrão abusivo ou dependente acarreta, enquanto o outro parece servir aos propósitos de outra entidade. “E eu, sei lá... a gente, eu faço força aí, pra não ver se não dá vontade gente parece que tem duas pessoas, mas tem hora que... dá um trem, uma coisa esquisita dentro da gente... a... parece é duas, duas pessoas dentro de mim. Uma hora eu falo que não vou beber (...) Aí quando dá, quando eu penso que não, já tá com um cigarro no dedo, uma bebida na boca. E isso que é chato demais (...)” (AKHENATÓN).

Esta manifestação de uma espécie de duplo parece apontar para aspectos que falam tanto de uma atualidade sofrida descrita pelos sujeitos, mas também parece enunciar uma verdade encoberta. Este duplo “esquisito” dentro dessas pessoas, adotando-se a cosmovisão sistêmica, aponta para realidades além do sujeito singular. Esta realidade traduz-se em uma constituição interna que se mantém fiel aos padrões herdados na contínua verticalidade transgeracional que rivaliza com outra vertente que almeja a possibilidade da mudança. A consideração desta perspectiva amplia o conceito de ambivalência destacado por Miller e Rollnick (2001), descrito pelos mesmos enquanto conflito de vontades entre a mudança e a manutenção do comportamento disfuncional. No alcoolismo, a pessoa deseja mudar sua relação com o álcool, mas concomitan- temente revela existirem fatores mantedores do comportamento – que geram/cul- minam (n)a ambivalência. Nestes termos, entende-se que este fenômeno pode estar vinculado a um conflito de lealdades visíveis e, portanto, verbalizáveis, quanto invisíveis e perceptíveis de forma indireta, o que exige uma melhor consideração deste fenômeno no contexto terapêutico.

Diante do exposto, o pedido em torno da questão do ciclo de violências se associa com a preocupação em torno da continuidade dos possíveis prejuízos para as novas gerações. Existe o conhecimento sobre as perturbações advindas da experiência trazida pelo ciclo violento vivido com o padrasto, que se encontra atuante no presente, podendo afetar negativamente as novas gerações. O pedido de ajuda parece se direcionar para o logro de um barramento ou ruptura do ciclo violento com a finalidade de garantir uma vida diferente para os filhos. “Ele ganhava bem. Ele fazia só feirinha... e levava pra casa. O resto ele perdia tudo na sinuca... e na bebida, né? (...) aquela onda de violência dentro de casa. Eu acho que isso ajuda muito na destruição da gente e dos filho da gente sabia? Que é o meu medo lá dentro de casa. É por isso que eu procurei aqui (...) É. Porque eu fui criado com um padrasto... que não me dava nada, só violência dentro de casa (...) Poxa, eu, eu num lugar que não sou (referindo-se ao seu pai3

alcoolista e violento) padrasto, sou pai... ... e ficar dando lugar pra futuramente meus filho ficar com o juízo perturbado também?!” (SÓCRATES).

A busca por ruptura com aspectos de uma herança transgeracional escravizante e disfuncionalizante não objetiva, contudo, o despertencimento, o deixar de ser herdeiro. Implica na possibilidade de promoção de mudanças produtoras de novas possibilidades relacionais entre as gerações e seus membros.