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5 INTERLOCUÇÕES TEÓRICAS

5.1 Histórias de Vida e Formação

Voltar-me sobre minha infância remota é um ato de curiosidade necessário. Paulo Freire

Escolhi trabalhar com a pesquisa baseada em Histórias de Vida e Formação, pois essa opção permite ver o cruzamento entre o individual e o social, a subjetividade e sua relação com o mundo material e com a cultura.

Gaston Pineau (2002) apresenta as Histórias de Vida como abordagem de pesquisa e de construção de sentido, prática autopoiética e processo de reinvenção de si. Daí seu caráter formador pelo acesso à historicidade da construção de nossa identidade, contribuindo para uma compreensão das forças condicionantes de nossa formação, através

da tomada de consciência reflexiva e crítica dos “determinantes existenciais” através da

expressão narrativa. Abre desta forma, caminhos para a possibilidade de um percurso emancipador.

Querer fazer uma história de sua vida é querer ter acesso à historicidade, quer dizer à construção pessoal de sentido a partir dos sentidos recebidos, dos não- sentidos e contra-senso que engrenam e balizam a experiência vivida dos entre- dois, nascimento e morte, organismo e meio ambiente (PINEAU, 2002, p.76. Tradução minha).

Ao trabalharmos com histórias de vida em grupo, há o compartilhar das experiências que é extremamente enriquecedor para todos, uma vez que aprendemos com a nossa própria história, mas também ao ter acesso ao relato do outro. Neste percurso, formamo-nos individual e coletivamente, com o fortalecimento dos vínculos de confiança, de pertencimento e gera-se um clima de acolhimento e respeito.

A narrativa de si sempre fez parte da história da humanidade, mas como método de pesquisa surgiu no final do século XIX. De acordo com Lani-Bayle (2008), isso se deu quando as Ciências Humanas começaram a ganhar autonomia em relação à Filosofia, às Letras e às Ciências Exatas. No entanto, sua validade científica não foi facilmente reconhecida. Apesar disto, os relatos de histórias de vida passam a ser propostos na educação de adultos devido ao seu caráter formador, sempre com o cuidado de distanciar-se das abordagens que tinham objetivos terapêuticos.

Foi a partir de 1918, com a escola de Chicago, que Thomas e Znaniecki deram vitalidade às histórias de vida com o estudo sobre camponeses poloneses: “trata-se, na verdade, da primeira pesquisa de campo, reconhecida em sociologia, utilizando

documentos biográficos, e que resultará em uma obra de sociologia da imigração” (Lani-

Bayle, 2008, p.299).

Em 1950, a abordagem conquistou mais credibilidade a partir dos trabalhos de

Franco Ferrarotti na Itália e, no México, com a obra “As crianças de Sanchez”, de Oscar

Lewis, que mostrava a sociedade através da visão de uma família do interior. Na França, consolidou-se a partir da década de 1960 com o trabalho de Daniel Bertaux.

Mas foi apenas a partir dos anos de 1980 que a abordagem de Histórias de Vida e Formação passou a ser mais utilizada, se expandindo para diversas áreas de pesquisa e ganhando força na Educação após os trabalhos feitos por Gaston Pineau, Marie-Christine Josso e Pierre Dominicé. Neste momento, se fortalece no mundo francófono, dedicando-se, sobretudo, à formação de adultos e autobiografias. Passou a ser amplamente divulgada em Portugal e no Brasil depois da publicação de “O método (auto)biográfico e a formação”, de António Nóvoa e Matthias Finger (1988).

A abordagem tem se propagado mais rapidamente a partir de 1991, quando foi criada a Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e de Pesquisa Biográfica em Educação - ASIHVIF (Lani-Bayle, 2006, p.165). Nesse período, foi elaborada a carta – original em anexo, conforme o site oficial www.asihvif.com – que apresenta as diretrizes éticas para as práticas da ASIHVIF e para que o trabalho com histórias de vida possa ter um caráter formador e não, por exemplo, um viés somente literário, jornalístico ou terapêutico. Entre essas diretrizes, destaco algumas que foram essenciais para orientar este estudo e que nele se refletem:

Trata-se de uma abordagem que coloca no centro o sujeito narrador, porquanto este define seu objeto de busca e desenvolve um projeto de compreensão de si por si e pela mediação de outrem.

A finalidade que orienta, perpassa e sustenta as práticas de narrativas de vida é a emancipação pessoal e social do sujeito.

A Associação pede que o futuro formador tenha ele mesmo feito a experiência de uma abordagem autobiográfica.

A Associação não privilegia nenhum referencial teórico particular. Ela valoriza o recurso a teorias e métodos plurais e favorece os debates sobre essas questões por exemplo quando da apresentação das produções escritas de seus membros. (http://www.asihvif.com/Charte.pdf, tradução minha).

Lani-Bayle (2006, p.165) comenta que a Université de Nantes foi a primeira a criar, em 2001, um curso de formação contínua inteiramente consagrado a essa abordagem, o Diplôme Universitaire Histoires de Vie en Formation.

As pesquisas com Histórias de Vida têm ganhado bastante força no campo da educação e formação de educadores no Brasil, tanto que o III e o IV Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)Biográfica (CIPA) foram realizados no Brasil nos anos de 2008 e 2010, respectivamente.

Acredito que é bastante enriquecedor para o educador, profissional que trabalha com a formação de outros, que este reconheça seu próprio processo formador, que pense sobre seu caminho e suas escolhas, inclusive a de se tornar um educador. Assim sendo, a pesquisa com Histórias de Vida é também intervenção, na medida em que contribui para uma melhor compreensão de si, de seu passado e presente para melhor se pensar o futuro. Durante o percurso, também há uma tendência de fortalecimento das identidades pessoais e comunitárias, contribuindo para uma melhor reorganização de si na relação com o mundo.

Ao narrar-se, o sujeito é capaz de reconhecer os caminhos escolhidos e trilhados. Para Jorge Larrosa (1996), esta é uma aventura interminável, pois somos um devir constante, nos construímos cotidianamente, vamos nos metamorfoseando: “o eu não é senão uma contínua criação, um perpétuo devir, uma permanente metamorfose” (Larrosa, 1996, p.481).

Nunca estamos definitivamente prontos, nossa identidade é algo que elaboramos a cada dia e a narrativa de nós mesmos nos ajuda a nos identificarmos ao mesmo tempo em que contribui para nos transformarmos. A própria narração pode apresentar-se, desta forma, como uma experiência formadora. Lani-Bayle, entretanto, destaca que a potencialidade formadora da narração não se dá de forma simples, é

necessário evidenciar vínculos com o que é evocado, “transformar esses dizeres em informações, as quais vão „informar‟ sobre essas evocações e „formar‟ tanto o narrador quanto os ouvintes” (Lani-Bayle, 2008, p. 303).

A autora destaca ainda que, para avançarmos da informação à formação, é necessário que, durante o processo através dos relatos, se estabeleçam redes de significados entre o que é narrado, por meio da consideração e do entrecruzamento com o experienciado. Para a autora isso se dá ao longo das três etapas a serem observadas: os fatos em si; o que os fatos me/nos causaram/causam e o que faço/fazemos com o que os fatos me/nos causaram.

As etapas descritas por Lani-Bayle (2008, p.303, grifos da autora) são esquematizadas pela pesquisadora da seguinte maneira:

1: os fatos (“eu relato” – aspecto de agenda, escrita “plana”)