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Hoasca, remédios, placebos e cobaias

No documento Tempos e saúde na União do Vegetal (UDV) (páginas 143-146)

6. Considerações Finais.

6.2. Hoasca, remédios, placebos e cobaias

Na reflexão geral sobre substâncias psicoativas escassamente é mencionado o “efeito placebo”. O “efeito placebo” descreve a cura sem utilização “verdadeira” da substância ou agente medicinal ativo quando a consciência dos pacientes é “enganada” ou “atua de boa fé” acreditando estar recebendo uma medicina. A sugestão e auto-sugestão atuariam de formas ainda desconhecidas para curar a doença. Stelio Marras96 levanta interessantes reflexões que podem ajudar a

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Notadamente, pelas socializações primárias nos grupos indígenas. 95

Quer dizer: não explicitamente eclética nas falas que ouvi para definir sua religião. Penso que um estudo que aborde trajetórias e itinerários individuais poderia destacar o variado leque e multiplicidade de experiências que muitos filiados transitam, ainda continuando sua participação na UDV. Por exemplo, na página 133 citei um mestre que falava sobre suas experiências com ioga. 96

Texto originalmente publicado em Revista Campos, número 2, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná (Paraná, 2002, pp. 117-133).

compreender algumas das noções imbricadas na cosmovisão da UDV a respeito do chá Hoasca.

O autor examina o trabalho cientifico de obtenção/invenção de novas medicinas alopáticas como um “trabalho depurativo... dependente do sucesso laboratorial com cobaias.” (MARRAS, 2002, p. 1). As cobaias são, segundo ele, classes de seres cuja primordial qualidade é certa “tipicidade” de resposta aos testes, e que são “homólogos ontológicos” do que se acredita sejam os doentes típicos no mundo fora do laboratório.

[...] Homens e ratos vão aí concebidos como contínuos no plano biofísico, assim identicamente naturais pela episteme ocidental. Episteme dessa cosmologia moderna que, por sua vez, informa e sustenta a lógica com que opera o pensamento das ciências médicas; essa lógica que por biologizar o homem, biologiza a doença, seja em seu diagnóstico de causas (razões de etiologia), seja em seu prognóstico prático (razões de terapêutica). (Idem).

Toda a armação metodológica e conceitual destes laboratórios está concentrada em isolar efeitos não controláveis, dos quais o “efeito placebo” é a manifestação mais subjetiva e, diria eu, escandalosa, espantosamente cultural. É para esses cientistas um mistério menor, não pesquisável. Não poderia ser vendida substância nenhuma como resultante dessas pesquisas. Somente interessados nos “princípios ativos” objetivos, quantificáveis e medíveis (e também vendáveis no mercado) eles afastam-se com complexas metodologias do “efeito placebo”. Segundo a “boa razão científica” destes laboratórios, uma medicina tem de superar estatisticamente em eficácia ao “efeito placebo”, considerado uma “má razão cientifica” segundo diz Stelio Marras. Má razão a partir que combina, em doses desconhecidas, subjetividade idiossincrática do paciente “atípico” com concepções simbólicas do meio cultural em que se desenvolveu essa subjetividade. A medicina moderna teria sua melhor imagem na pílula universal, com um único e curador efeito na totalidade daqueles que a obtenham do mercado.

Um sacramento religioso, quando comungado, pode envolver uma analogia com o “efeito placebo”. Num sentido positivo, a comunhão da substância (água, vinho, fumo, hoasca...) faz, induz e performa um contato com a sacralidade. Tudo aquilo que, no laboratório de pesquisa medicinal é isolado, removido, deixado de lado; no ritual religioso é incentivado, apoiado e reforçado. O sacramento é acompanhado de atos performáticos e de técnicas cenográficas e corporais que são utilizadas para aumentar o que posso chamar seu “poder de comunhão” no grupo. Esta discussão aponta para certos dados da minha pesquisa de campo em que se pode observar a importância dos fenômenos relativos ao “efeito placebo”. Um deles são os casos de diferentes pessoas que não sentem efeito nenhum ao ingerir o vegetal, seja numa ou várias sessões ou até em nenhuma delas, ainda que tivessem ingerido doses consideradas suficientes e que provocam os efeitos psicoativos nos demais participantes. Num ponto de vista positivista, essa situação somente poderia ser explicada por condições corporais ou fisiológicas individuais, mas na UDV é o merecimento como noção universal que explica este assunto. Ainda mais se lembrarmos que, na UDV, a eliminação do sócio é competência do

Vegetal (Regimento Interno, ouvido nas sessões de escala).

Continuo abordando diferentes categorias aplicadas ao chá. Enteógeno. É uma noção interessante, mas, no fundo, ela é “divinamente positivista”. Porque induz a pensar que certas substancias poderiam ter o mesmo tipo de efeito em todos aqueles que as consumam. Assim, na idéia de enteógeno estão ausentes o set e o setting, que no âmbito religioso da UDV poderíamos corresponder à doutrina e as expectativas e idiossincrasia de cada pessoa. Ficam fora do conceito de enteógeno assuntos importantes para caracterizar o vegetal; tanto do âmbito acadêmico como do “mundo nativo” da UDV. Dentre as questões acadêmicas a principal é a desconsideração dos contextos de utilização das substâncias em pauta. Os contextos sociais e as idiossincrasias individuais são, na verdade, muito importantes e fica invisibilizado ao pensar na realidade pesquisada. Na UDV, e em outros grupos religiosos ayahuasqueiros também, a preparação do templo ou local da sessão é importante. Já Aldous Huxley e outros pioneiros nas pesquisas “psicodélicas” tinham apontado para a importância dos preparativos

para o sucesso das experiências que empreendiam97. A tradição do grupo de origem dos “psiconautas” é também fato maior para ser considerado porque reveste todo o ambiente físico de significado e simbolismo, tanto por presença como por ausência. Seguindo uma noção como a popularizada de “enteógeno”, os grupos religiosos que os utilizam são homogeneizados e invisibilizados, sendo apagada sua doutrina porque parece que o importante é a substancia e não tudo o mais. O termo também leva, na pesquisa do cientista, a deixar de lado os dados “anômalos” ao desconsiderar os informes como aqueles que ouvi algumas vezes: quando o enteógeno não produz efeito de divindade nenhuma, ou pior, efeito nenhum mesmo. Na UDV, é aceito que algumas pessoas podem não experimentar burracheira depois da ingestão de Hoasca, sendo isso explicado em virtude do merecimento.

Não é minha intenção aqui resolver semanticamente a questão, mas queria deixar a resposta aberta, indeterminada, como uma volta ao estranhamento radical, ao assombro (Rita Segato, 1992) na consideração daquilo que, no grupo em pauta, é o vegetal. Em algumas paginas, fiz certas racionalizações interpretativas, com o pretexto de que eles (os “nativos” da UDV) também as fazem. Agora quero me distanciar delas para me aproximar à incomensurabilidade das experiências que transitei. Manter o olhar no alvo de um horizonte transcendente deste próprio trabalho, como possibilidade de geração de um efeito de conhecimento. Foi por isso que deixei exibir no texto, sem resolver, alguns dos conceitos e das noções, como de grau de memória, por exemplo.

No documento Tempos e saúde na União do Vegetal (UDV) (páginas 143-146)