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A modulação dos tempos

No documento Tempos e saúde na União do Vegetal (UDV) (páginas 134-139)

5. Modulações entre tempos, transformações e curas

5.5. A modulação dos tempos

A sessão é um ritual que emerge na maior claridade, numa interseção complexa entre tempos. Os tempos da sessão parecem fluir numa relação com os tempos químicos e biológicos individuais de cada participante e tempos de “desencadeamento” ritual da burracheira. Toda a seqüência da sessão induz performaticamente para uma modulação dos desempenhos, sejam eles chamados corpóreos, psíquicos e/ou espirituais. As pessoas, quando participam periodicamente das atividades do grupo, podem sentir uma sensação de nova cotidianidade nos rituais. O devir da sessão deixa de ser estranho e agora é esperado, brindando possibilidades de experimentação que estão além do iniciante ou adventício. É o tipo de percepções que Mary Douglas (1997) quer chamar a nossa atenção, quando examina “as coisas que são impossíveis de experimentar sem o rito”. Falecida no ano de 2007, a antropóloga britânica deixou uma interessantíssima produção que abrangeu vários dos tópicos mais importantes da antropologia social. Do livro mais conhecido dela, Pureza e Perigo (publicado pela primeira vez em 1966), levanto vários aportes relevantes. Ela reflete profundamente sobre os rituais, e determina que ofereçam três coisas simultâneas: um

mecanismo de enfoque da realidade, um método de memotécnica e um controle da experiência. Segundo a autora, o ritual oferece um marco onde os fenômenos acontecem. A demarcação permite a emergência de certos acontecimentos e não permite a emergência de outros. São limites para a experiência, que atuam seletivamente enfocando a atenção dos participantes. “La acción mnemónica de los ritos es muy frecuente. Cuando hacemos nudos en un pañuelo no estamos sometiendo nuestra memoria a la magia, sino más bien reduciéndola al control de un signo externo” (DOUGLAS, 1973, p. 90). O ritual produz, na visão de Mary Douglas, uma mudança na percepção da realidade na medida em que modifica os princípios seletivos. O ritual pode permitir o conhecimento daquilo que, sem ele, não se conheceria de jeito nenhum, porque modifica a experiência no ato de sua expressão. No marco desta dissertação, é uma satisfação observar que uma autora tão destacada, clássica, menciona a importância do tempo como exemplo de uma forma ritual.

Hay algunas cosas que no podemos experimentar sin el rito. Los acontecimientos que sobrevienen en secuencias regulares adquieren un significado a partir de su relación con otros que se encuentran en la misma secuencia. Sin la plena secuencia, los elementos individuales se pierden, se vuelven imperceptibles. Por ejemplo, los días de la semana, con su sucesión regular, con sus nombres y características: aparte de su valor práctico en identificar las divisiones del tiempo, cada uno de ellos tiene sentido como parte de una configuración. Cada día tiene su propio significado y si se dan determinados hábitos que establecen la identidad de un día especial, su observancia regular produce el efecto del rito. El domingo no es solamente un día de descanso. Es el día anterior al lunes, e igualmente ocurre con el lunes en su relación con el martes. (DOUGLAS, 1973, p. 91).

Segundo essas idéias, a terça-feira é impossível de experienciar, simbólica e concretamente, sem que as pessoas tenham advertido a passagem pela segunda-feira. A autora critica o ceticismo que havia, na época, sobre as curas tradicionais, sem auxílio da medicina ocidental. A psicanálise é um excelente exemplo, na cultura ocidental, de um tipo de

cura que utiliza “somente símbolos”91

. Anteriormente desenvolvi uma interpretação da cura ou alívio no marco da UDV que pode se aproximar a esta perspectiva. Meu interesse aqui è mais apontar à modulação de experiências temporais que a permanência no grupo pode fazer possível. Por exemplo, Luis Luna faz uma menção da periodicidade de participação em sessões na UDV, que aumenta dependendo do lugar ocupado na hierarquia:

Os sócios da UDV se reúnem todos os primeiros e terceiros sábados de cada mês, além das festas (6 de janeiro, 27 de março, 27 de junho, 22 de julho, 1 de novembro, natal, ano novo) e os aniversários do núcleo e do mestre representante do núcleo. Os membros do corpo instrutivo se reúnem uma vez mais a cada dois meses, os de corpo de conselho mais duas vezes por mês, ou seja 12 vezes mais, e os do quadro de mestres, mais 6 vezes. Em caso de visita de mestres antigos se fazem sessões extraordinárias. Um mestre bebe então o vegetal aproximadamente 50 vezes em um ano. Alguns mestres, especialmente os antigos, são muito solicitados, e estes bebem o vegetal muitas vezes mais. (LUNA, 1995, p. 17).

O esquema citado pode ser muito estruturado e na prática observei que acontecem algumas mudanças, sendo mantidas estritamente, por outra parte, as datas das sessões de escala. Quero destacar a diferenciação das experiências, daquilo que, como diz Mary Douglas, modifica os princípios seletivos e, por tanto, modifica a percepção da realidade (incluindo a percepção do tempo). É uma construção social que pode apresentar particularidades, interrupções e adaptações. Por exemplo, na sessão de 07-10-2007, o Mestre Representante em Florianópolis marcou a sessão instrutiva para o dia 12 de outubro, que é conhecido como “o dia das crianças” no Brasil. Mas também diz que ele compreenderia às pessoas que devam cumprir

compromissos com suas crianças, ou viagens já marcados. (Diário de

campo). Essa compreensão seria assim, segundo entendi, como uma

91

A autora examina o artigo de Claude Lévi-Strauss, “A Eficácia Simbólica”, incluído no livro do mesmo autor “Antropologia Estrutural”, 1970. Cf. uma revisão critica: RENSHAW, 2006.

isenção ou licença especial da obrigatoriedade de assistência dessa sessão para os que integram o corpo instrutivo. Levanta também este exemplo um tipo de “negociação” entre o calendário litúrgico do grupo e o calendário habitual da sociedade geral, que acontece no marco da configuração mestres-discípulos na UDV.

No documento Tempos e saúde na União do Vegetal (UDV) (páginas 134-139)