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Merecimento e saúde

No documento Tempos e saúde na União do Vegetal (UDV) (páginas 113-116)

4. Perspectivas antropológicas dos conceitos de saúde,

4.6. Merecimento e saúde

O Merecimento é uma filosofia cosmológica, total e totalizante. Todos os acontecimentos, os grandes e os pequenos, na vida de um indivíduo estão regidos pelo seu merecimento. Na forma em que é vivenciada na UDV, e nos distintos testemunhos, diálogos e conversas onde a determinação das “causas” dos mais diversos acontecimentos podia ser tocada, a noção de merecimento cumpriu sempre um papel importante. Quer dizer, nos momentos reflexivos seja formais (como as sessões) ou informais, a indagação das causas e fundamentos dos acontecimentos, especialmente os das trajetórias individuais, chegam até o ponto onde considera-se o merecimento como explicação suficiente e final. É uma Lei do Universo. A saúde e a doença, portanto, também estão regidas pela Lei do Merecimento. Cada pessoa/espírito é o demiurgo de si mesmo, criador de suas ações e de seus resultados, ainda que, num certo momento atual, não consiga lembrar os detalhes de essas criações. A memória (ou a ausência dela), então, tem na UDV superlativa função explicativa da doença.

A ênfase doutrinária na recordação, que pode incluir as encarnações anteriores, estendendo e ampliando o tempo de vida do indivíduo, contextualiza cada acontecimento no marco geral e supra- absorvente da cosmologia. Tudo o que acontece é um resultado de méritos anteriores do discípulo. Também, esta visão estende-se às considerações sobre as demais pessoas. Pode se falar de conjuntos como cidades ou países considerando seu merecimento, num sentido geral.

Poderia se admitir que o merecimento é uma filosofia determinista das condutas até um nível absoluto. Porém, na reflexão que os discípulos da UDV consideram mais profunda, o merecimento tem

Daime, in: Yearbook Of Cross Cultural Medicine And Psychotherapy, Berlin, Verlag, v. 4, 1996.

sua necessária contraparte “lógica” no livre arbítrio dos espíritos. Ambas são, na UDV, como duas faces da mesma moeda, uma noção precisando da outra e enfatizando a responsabilidade de cada um no seu destino. Para decidir, utilizando seu livre arbítrio, é necessário um contexto, histórico, pessoal e social, que provém do merecimento acumulado pelas condutas passadas. O vegetal, na UDV, é bebido por

livre e espontânea vontade segundo é lido no Regimento Interno nas

sessões de escala, e ao mesmo tempo o fato de chegar até ter a possibilidade concreta (nesse local, nesse dia, nessa hora) de comungar o vegetal na UDV é considerado um bom merecimento.

O Merecimento como doutrina relaciona-se a um crescente processo de individuação da pessoa. Os grupos, as instituições e os coletivos mais diversos somente existem pelos merecimentos comuns de seus integrantes. As pessoas na UDV trabalham no seu aprimoramento

espiritual levando, ou querendo levar, com maior ou menor sucesso

segundo o empenho e o merecimento, ao seu próprio self num movimento constante de desenvolvimento de uma refinada e mais concentrada atenção82. Numa perspectiva de “cosmologia em evolução”, essa atenção maior com palavras e gestos nos relacionamentos vai produzindo o típico éthos do grupo, sendo particularmente reforçado nas sessões e preparos. A integridade e coerência geral nas condutas de uma pessoa é um alvo tanto moral quanto espiritual e de saúde. A saúde tem componentes morais e espirituais indissolúveis, coerentes com a tradição espírita.

A circulação de saberes e práticas médicas, no sentido amplo, de distintas fontes e tradições é comum entre os filiados à UDV, e, claro, não somente entre eles. Na sociedade maior também circulam conhecimentos médicos e terapêuticos oriundos de tradições tais como a indígena, a chinesa, indiana e muitas outras. Tudo isso remete ao primeiro nível de atenção terapêutica (MENENDEZ, 1990) que acontece na intimidade dos lares, no meio familiar. Eis a verdadeira atenção primária da saúde e nela são misturadas práticas e

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Acima examinei aspectos relativos à educação da atenção, seguindo a Timothy Ingold (2010). Também quero destacar que a atenção, verdadeira atenção ao momento presente, está na base de vários sistemas e técnicas de cunho religioso, tais como o budismo za-zen e sufismo dentre outras. Aldous Huxley utiliza a mesma palabra “¡Atenção!” para abrir e para fechar sua novela “A ilha” (Island, edição original: 1962) onde examina uma sociedade utópica ideal, que utiliza rituais “estruturantes” com psicoativos.

conhecimentos de diferentes e distintas fontes. Diferentes em tradições, produtos, mas também distintas e hierarquizadas mais acima ou mais abaixo, positiva ou negativamente, pela hegemonia médica ocidental. Porém, no caso em pauta, algumas vezes o que pode ter um lugar baixo na escala de consideração da medicina alopática, pode ter maior ressonância positiva, e ter aumentadas expectativas, entre pessoas que participam dos rituais da UDV. Um exemplo disso é a prática terapêutica chamada vacina do sapo: nela são feitos pequenos ferimentos nos braços ou nas pernas de uma pessoa e ali são aplicadas secreções produzidas por um tipo de rã conhecida como Kambô

(Phyllomedusa bicolor). Acredita-se que as substâncias presentes na

pele do animal penetram na circulação sanguínea e produzem um prolongado efeito benéfico ao corpo, principalmente reforçando o sistema imunológico. Também podem produzir inchaço, erupções, taquicardia e outros sintomas agudos. Vários participantes das sessões da UDV em Pato Branco (Núcleo Cores Divinas) me falaram muito positivamente sobre o tema e relataram certa oportunidade em que foi feita aplicação da vacina no local (mas não no espaço da sessão, nem como obrigação, porém como oportunidade).

Outro exemplo são as chamadas garrafadas de chás ou preparados com ervas ou raízes de distintas plantas consideradas medicinais, parte da fitoterapia popular. Nos anos de 1998 e 1999 estive participando na Ordem do Templo Universal do Rei Salomão, em Porto Velho (RO), em rituais bem semelhantes aos do CEBUDV, e as

garrafadas de Kalunga (provavelmente Simaba Ferruginea83) eram muito comuns, acreditando-se que ofereciam um reforço às limpezas que fazia o próprio vegetal.

Os núcleos da UDV não são explicitamente centros de cura, mas oferecem uma oportunidade (para muitos, única) de encontro entre pessoas que necessitam da cura de doenças. Nos momentos menos formais, como antes ou depois da sessão, são espaços de troca de conhecimentos terapêuticos. As Jornadas de Saúde, organizadas em Florianópolis (SC) pelos filiados podem mostrar, em sua performance, a grande variedade de interesses conjugados numa visão bem abrangente do campo das terapias. Amplamente divulgadas com cartazes pela cidade, podem ser também uma forma de recrutar novos adeptos.

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Vânia Floriani Noldin apresentou dissertação de mestrado em Ciências Farmacêuticas na UNIVALI (Itajaí, SC) sobre as possibilidades terapêuticas da planta (2005).

No documento Tempos e saúde na União do Vegetal (UDV) (páginas 113-116)