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Homúnculos intencionais

No documento A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE (páginas 132-138)

CAPÍTULO 4: JOHN SEARLE E SEUS CRÍTICOS

4.4. Homúnculos intencionais

A intencionalidade voltou a figurar dentro da filosofia, como um termo técnico, pelas mãos de Franz Brentano. Um dos objetivos deste filósofo, ao resgatar tal termo, era responder aos desafios que a filosofia cartesiana colocava a respeito da mente humana (JACOB, 2004). Qual a natureza da mente? Os fenômenos mentais têm uma essência comum? Como esses fenômenos se relacionam com a natureza física em geral? Jacob (2004) diz que com a intencionalidade, Brentano tentou responder essas questões, argumentando que todos os fenômenos mentais consciêntes são intencionais, ou seja, a consciência é sempre consciência de alguma coisa.

Apesar de tentar investigar a intencionalidade por si mesmo, Searle (2002a/1983, p. 1) acaba caindo dentro da tradição brentaniana ao dizer que a intencionalidade é "aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais pelas quais estes são dirigidos para, ou são acerca de objetos e estados de coisas no mundo". Como em Brentano, a intencionalidade seria a mesma coisa que direcionalidade, pois ela sempre (ou quase sempre) estria apontando para objetos e estados de coisas no mundo. Porém, como dissemos no capítulo anterior, há um sentido preciso que afasta Searle (2002a/1983) da tradição, qual seja, para ele nem todos os estados mentais conscientes são intencionais.

Com a pretensão de ser naturalista, Searle (2002a/1983) busca as bases biologicamente fundamentais da intencionalidade. Para ele, as percepções e as ações são tão intencionais quanto crenças e desejos, sendo que a única diferença seria a escala de valores. Biologicamente falando, crenças e desejos seriam menos fundamentais do que percepções e ações49.

Contudo, os estados intencionais não são causa sui. Há uma rede de outros estados intencionais que estão interligados, comunicando-se e formando um complexo

intencional consciente. Além disso, a intencionalidade humana repousa sobre um background, sem o qual ela não viria a existir. Retomando rapidamente o que expomos no capítulo 3, Searle (2002a/1983) define o background como um conjunto de conhecimentos e habilidades (know-how) sem os quais não seria possível nenhum estado intencional. Porém esse conjunto de habilidades e conhecimentos não pode ser, ele mesmo, intencional. Ele é um conjunto não representacional sobre o qual toda representação se torna possíveil.

Apesar desse aparente externalismo do conceito de background, Searle (2002a/1983) argumenta que ele ainda é mental. O background não se reduz às capacidades biológicas, nem às relações sociais, mas sim continua sendo uma capacidade da mente humana. Nosso filósofo não nega que haja capacidades biológicas e relações sociais que influenciem o background, pois, de qualquer modo, somos seres biológicos e sociais. Sem uma constituição biológica e um conjunto de relações sociais não poderíamos vir a ter o background que temos. No entanto, isso não invalida o fato de que tal fenômeno seja intrinsecamente mental. Todos os fatores sociais, biológicos e físicos só são relevantes na produção de um background específico por conta da relação que estabelece com cérebros e corpos humanos, ou seja, com a mente humana. Sem a mente não poderia haver background e é nesse sentido que ele é mental.

O Background, portanto, não é um conjunto de coisas nem um conjunto de relações misteriosas entre nós e as coisas, mas simplesmente um conjunto de habilidades, suposições e pressuposições pré-intencionais, posturas, práticas e hábitos. Tudo isso, até onde se sabe, é realizado nos cérebros e corpos humanos. (SEARLE, 2002, p. 214).

Este aspecto mentalista, inevitavelmente leva o background para uma via irreducionista. Como dissemos ao longo do trabalho, Searle (2004, 2006) considera o mental um fenômeno irredutível aos processos neurocerebrais, por conta de sua ontologia de primeira pessoa. Mesmo sendo dependente do sistema cerebral para existir, o mental não pode ser reduzido (muito menos redefinido ou eliminado), pois parece que sempre nos sobra o elemento subjetivo quando tentamos reduzi-lo (ou redefini-lo) em termos objetivos, de terceira pessoa. Dessa forma, porque Searle considera o background também mental, tal noção se torna, automaticamente, irredutível. Ela só poderia ser redutível se fosse um fenômeno puramente biológico, ou constituído apenas de relações sociais. Mas como observamos, Searle (2002a/1983, 2006) considera que o

background é também um fenômeno mental, então, por isso, também um fenômeno irredutível.

Essa carga mentalista que permeia a noção searleana da intencionalidade e, especialmente, do background não agrada muitos autores que desejariam transformá-los num fenômeno de terceira pessoa, entre os quais David Armstrong.

É interessante nortarmo que a resposta de Armstrong (1991) à hipótese searleana do background contêm não apenas o aspecto negativo, mas sim também um aspecto positivo e construtivo. Ele não se limita apenas em demonstrar os pontos que julga falhos na teoria de Searle, mas junto à crítica ele apresenta uma proposta para tapar os buracos que, segundo ele, são deixados pelo background searleano.

Um primeiro ponto que incomoda Armstrong (1991) é a persistente defesa da irredutibilidade ontológica da intencionalidade. Para ele isso é inaceitável, pois dessa maneira torna-se muito difícil pensar como estudaremos cientificamente esse fenômeno em seus próprios termos. Como estudar a ontologia da intencionalidade se ela permanece um fenômeno puramente subjetivo? Armstrong (1991) não acredita que uma redução tipo-tipo, como é feita entre calor e movimento molecular, seria adequada para a complexidade do fenômeno mental intencional, mas ele argumenta que podemos fazer com ela um tipo de redução ocorrência-ocorrência (token by token), desde que alguns ajustes conceituais sejam feitos. Para tanto, Armstrong acredita que devemos encarar a intencionalidade humana como uma espécie de sistema funcional, onde explicaríamos seu funcionamento através do comportamento sistêmico.

O sistema funcional a qual Armstrong faz referência seria do mesmo tipo teleológico como ocorre na biologia. "Parece-me muito plausível dizer que ela é uma verdade conceitual de modo que um sistema intencional é um sistema funcional." (ARMSTRONG, 1991, p. 151, tradução nossa). Assim um sistema funcional intencional seria alguma coisa que executaria determinadas funções em circunstâncias favoráveis para tais. Em circunstâncias desfavoráveis, ou por pura má sorte, o sistema não executaria essas funções. Isso, para Armstrong (1991), é certamente algo intencional (ou alguma coisa que se aproxima muito disso). Porque se observarmos a ocorrência das experiências que os seres humanos julgam mais íntimas, mais subjetivas, ou seja, observarmos as experiências humanas que ocorrem dentro de um complexo sistema cerebral, poderemos perceber certa similaridade entre esse tipo de intencionalidade

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50. Não é difícil observarmos que esse tipo funcional de intencionalidade poderia servir para a matéria não biológica de forma geral. Um robô que se comporta de determinada maneira poderia ser visto como tendo um comportamento intencional tal como os seres humanos, ou ao menos um comportamento que se aproximaria muito do intencional humano.

ingênuo e um sistema funcional que Armstrong faz referência. Ora, se tudo na natureza pode ser explicado através de sistemas funcionais, então as ações humanas não deveriam fugir à regra. Ademais, aderindo a esse tipo de visão, uma análise causal ou funcional da intencionalidade torna-se plausível, mais do que isso, um tipo de redução funcional seria possível50.

Mas quando Armstrong diz que todo fenômeno natural pode ser explicado através da teoria dos sistemas intencionais, com isso ele não está querendo dizer que há um tipo de igualdade que nivela todos os sistemas, de modo que sejam todos da mesma complexidade. Se esse fosse o caso, a dita riqueza e complexidade da consciência humana não passaria de um mito. O sistema cerebral humano seria tão complexo quanto o conjunto de moléculas que compõem uma ameba. Não é isso que Armstrong (1991) defende. Para ele, há níveis de complexidade nos diferentes sistemas intencionais. A única diferença é que a consciência humana é um complexo sistema que pode, como qualquer outro sistema, ser explicado funcionalmente.

Não obstante, Armstrong diz que os estados intencionais não são isolados, nem poderiam ser vistos dessa forma. Com isso, idêntico a Searle (2002/1983, 2004), ele diz que há uma intrincada rede de estados intencionais, sendo que eles não poderiam ser causa sui, abortados de suas conexões com outros estados intencionais. Ademais, e ainda seguindo a mesma trilha de Searle, ele diz que tal rede de estados intencionais não poderia ser compreendida sem um pano de fundo, ou seja, sem um background que o balize. Com isso, para tratar da noção de background, Armstrong primeiro se volta contra a noção searleana, dizendo que, apesar de ser uma noção muito importante, Searle não a trabalhou de maneira adequada. Searle (2002/1983, 2004) diz que o background careceria de intencionalidade por ser, ele mesmo, a base de toda intencionalidade. Contudo Armstrong (1991) não pensa dessa forma. Ele argumenta que podemos encarar o background como sendo intencional tal como qualquer outro ato intencional no nível mental humano. A única argumentação que Searle parece oferecer contra um background intencional seria que, caso isso ocorresse, deveria haver um outro fenômeno que o sustentasse, e caso esse outro fenômeno também fosse intencional, deveria haver um fenômeno ainda mais básico, e assim ad infinitum. Contudo, Armstrong não acredita que postular um background não intencional invalida, de fato, a redução infinita. Ora, por que não deveríamos supor que há um background,

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51. Claro que Armstrong não responde ao desafio empírico lançado pelo explanatory gap. Provavelmente ele concordaria com Searle, dizendo que a explicação causal efetiva entre disparos neuronais e estados mentais deve ser feita pelas ciências empíricas que lidam com esse assunto, ou seja, neurociências.

também não intencional, ainda mais básico, uma espécie de background do background, e assim sucessivamente? Por que deveríamos supor que, só por conta de sua não intencionalidade, o background seja a última base na qual se sustenta os fenômenos mentais e ele, por sua vez, não tem nenhuma outra sustentação mental?

Retornando a abordagem dos sistemas funcionais, Armstrong (1991) diz que poderíamos encarar o background como um sistema mais básico, sobre o qual o mental se sustenta. Mas ambos, tanto o nível mental quanto o nível do background, intencionais. Claro, por pensar em níveis de sistemas funcionais, em cada nível haveria um aumento ou diminuição da intencionalidade. Como dissemos anteriormente, Armstrong acredita que há diferentes níveis de complexidade dos sistemas funcionais, sendo o nível mental consciente um dos mais complexo, quiçá o de maior complexidade. Dessa forma, para explorar essa noção de níveis no sistema intencional, Armstrong utiliza a teoria dos homúnculos de Daniel Dennett (2006), onde em cada nível de complexidade haveria um sistema funcional (homúnculos) cada vez mais estúpidos, i.e. cada vez menos intencionais, menos complexo.

Armstrong (1991) diz que esse tipo de visão é muito melhor, do ponto de vista evolucionário, do que qualquer tipo emergente "saltatório" de intencionalidade, ou seja, que salta o gap entre a matéria física não-intencional direto para o mental intencional. Armstrong acredita que os naturalistas (Searle e ele, inclusive) devem evitar esse tipo de salto, ou tentar reconciliar o aparente salto com algum tipo de explicação causal explícita. Essa é, justamente, a vantagem na abordagem que Armstrong defende. Olhando o mundo como uma série de sistema funcionais, cada qual com seu nível de intencionalidade (ou complexidade), não precisamos dar esse salto entre a matéria inconsciente e o mental plenamente consciente. A explicação causal entre um sistema funcional e outro se torna possível, evitando o mistério quase mágico que fica em torno da intencionalidade humana51.

Em contrapartida, no parecer de Armstrong, John Searle não cumpriu nenhuma dessas duas exigências, ou seja, evitar o salto entre matéria inconsciente e a consciência humana e procurar uma explicação causal explícita para esses fenômenos. Dessa forma, a intencionalidade searleana se torna um fenômeno curioso, pois salta de um

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52. Como já salientamos, Searle acredita que não há nenhum problema com a noção de subjetividade oferecida pelo senso comum (Folk Psychology). Para mais detalhes, cf.UZAI JUNIOR, P. ; COELHO. J.G. John Searle e o Realismo Ingênuo. Kínesis (Marília), v. 7, p. 87-102, 2015.

background não intencional para o mental intencional.

Não obstante, a contraproposta de Armstrong, que veio carregada de críticas à noção searleana de background, não deixou de receber uma resposta. Apesar de Searle (1991) ter achado que os pontos levantados por Armstrong são muito relevantes, e também demonstrar concordância em muitos aspectos da filosofia da mente de seu crítico, o ponto central de discordância entre os dois autores gira em torno da irredutibilidade ontológica do mental.

Searle (1991) argumenta que não seria possível fazer uma redução funcional da intencionalidade, onde o funcionalismo trabalharia teleologicamente, sem com isso fazermos uma terrível redefinição e subsequente eliminação do caráter mental subjetivo tal como entendido pelo senso comum52. "[...] Não podemos eliminar a intencionalidade em geral e recolocá-la como função teleológica, porque a função teleológica apenas existe relativa a uma intencionalidade intrínseca." (SEARLE, 1991, p. 183, tradução nossa).

Já em relação ao background, uma pergunta que pode ser feita é o que pensa o homúnculo em cada nível explicativo? (SEARLE, 1991). Claro, a metáfora dos homúnculos não deve ser tomada demasiadamente a sério, mas Searle diz que essa seria uma pergunta interessante de se fazer. Se há intencionalidade em cada nível explicativo, de que tipo seria? Uma outra questão que poderia ser posta na formulação de Armstrong é que se o primeiro homúnculo, o mais básico de todos, o último na escala de estupidez, é balizado por uma matéria inconsciente, ou seja, no momento mesmo em que a intencionalidade é descarregada (discharged), então, como se dá o salto entre o não intencional e o intencional mais estúpido? Não seria também esse um salto explicativo?

Apesar de ser uma crítica muito fecunda (SEARLE, 1991), nosso filósofo ainda acredita que a intencionalidade e o background só fazem sentido para a mente humana. Tentarmos transpor esse tipo de fenômeno para sistemas mais rudimentares não parece, para Searle (1991), uma proposta muito viável. Ao menos não parece viável se quisermos preservar uma noção mais ingênua do mental. Para Searle (2006) essa noção mais popular é o que realmente caracteriza o mental intencional. Dessa forma devemos antes tentar explicar como a existência de tal noção foi possível (ou como veio a ser o que é), do que eliminá-la ou redefini-la (no caso de Armstrong) em outros termos.

No documento A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE (páginas 132-138)