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Significado e intencionalidade

No documento A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE (páginas 112-115)

CAPÍTULO 3: INTENCIONALIDADE

3.9. Significado e intencionalidade

Muito embora a abordagem de Searle seja mentalista, ela também tem a pretensão de ser naturalista. Dentro de uma abordagem naturalista, a intencionalidade não seria apenas uma característica humana, mas sim uma função biológica como outra qualquer que, como tal, existiria para além dos domínios da raça humana. Dessa forma, quando observamos o comportamento de outros animais, vemos neles percepções e ações intencionais, crenças, desejos etc. Então, se tal característica existe nos animais em geral, qual a diferença essencial entre a intencionalidade humana e a de outros animais? A diferença essencial, segundo Searle (2002a/1983), está na linguagem41. Nós, seres humanos, podemos nos referir a objetos e estados de coisas no mundo através de sons (ou grafismos), que em si mesmos não são os objetos, mas apenas o representam. E essa característica, apesar de aparecer de uma maneira mais fraca em alguns animais, marca a intencionalidade humana decisivamente. Portanto, por sua importância para a espécie, julgamos necessário nos debruçarmos sobre essa característica, em especial o que Searle entende por significado e sua relação com a intencionalidade humana. Ou seja, a pergunta fundamental dessa seção, que tentaremos responder à luz da filosofia searleana, é: como os objetos adquirem significado? Ou melhor dizendo, como passamos da física para a semântica?

Para começarmos a responder a essa questão, e se estamos seguindo por uma via naturalística, de início devemos dizer que a linguagem e o significado, na ordem evolutiva, surgiram posteriormente à intencionalidade. Com essa conclusão em mãos, Searle (2002a/1983) diz que o significado seria uma forma de intencionalidade mais primitiva, mas ele, por si, não deve ser intrinsecamente linguístico.

A intencionalidade difere de outros tipos de fenômenos biológicos por ter uma estrutura lógica e, assim como há prioridades evolucionárias, há também prioridades lógicas. Uma consequência natural da abordagem biológica advogada neste livro é considerar o significado,

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42. Como dissemos anteriormente, não iremos tratar especificamente de filosofia da linguagem. Com isso, não abordaremos a noção searleana dos atos de fala. Contudo, entendemos que os atos de fala estão contidos na noção de intencionalidade e que, no fim das contas, os atos de fala (como é próprio da linguagem) representam estados intencionais.

no sentido em que falantes significam alguma coisa por suas emissões, como o desenvolvimento especial de formas mais primitivas de intencionalidade. Assim concebido, o significado do falante deve ser inteiramente definível em termos de formas mais primitivas de intencionalidade. (SEARLE, 2002a, p. 224).

Nesse sentido, a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente, pois filia-se à concepção segundo a qual certas noções semânticas fundamentais, como o significado, são analisáveis em termos de noções psicológicas ainda mais fundamentais, como a crença, o desejo e a intenção. Então percebemos, seguindo essa abordagem filosófica, que a noção de significado relaciona-se com a intencionalidade, pois a primeira é explicável em termos da segunda.

Então a pergunta que fizemos no começo desta seção, qual seja, como passamos da física (sons que produzimos) para a semântica?, é respondida através da teoria da intencionalidade. Os objetos ganham significado porque os seres humanos tem a intenção de que a produção de sinais e sons seja a realização de um ato de fala42. Não obstante, entendemos que essa não seja efetivamente uma resposta, mas apenas a reordenação do problema do significado em termos intencionais (no caso, atos de fala). A explicação desse processo, contudo, conferiria uma resposta mais adequada.

Dessa forma, iremos apresentar a explicação desse processo. Searle (2002a/1983) diz que há um nível duplo de intencionalidade na realização de atos ilocucionários, quais sejam, um nível do estado Intencional expresso na realização do ato e o grau da intenção de realizar o ato. Quando, por exemplo, faço a afirmação de que está frio, ao mesmo tempo em que expresso a crença de que está frio, realizo o ato intencional de afirmar que está frio. Além disso, as condições de satisfação do estado mental expresso na realização do ato de fala são idênticas às condições de satisfação do próprio ato de fala. Para Searle, essa coincidência entre as condições de satisfação do ato de fala e do estado mental é a chave para entendermos o significado. Com essa coincidência entre as condições de satisfação, vemos que, na realização de um ato de fala, a mente impõe intencionalidade a essa expressão física.

O fato de as condições de satisfação do ato intencional expresso e a dos atos de fala serem idênticas sugere que a chave do problema do significado é perceber que, na realização do ato de fala, a mente impõe intencionalidade à expressão física do estado mental expresso as mesmas condições de satisfação do próprio estado mental. A mente

impõe intencionalidade à produção de sons, sinais gráficos etc., pela imposição das condições de satisfação do estado mental à produção dos fenômenos físicos. (SEARLE, 2002a, p. 229).

Ou seja, o que Searle está dizendo é que o ato de emissão é realizado com a intenção de que a própria emissão tenha condições de satisfação. Ou seja, o próprio significado seria um ato intencional no sentido de que suas condições de satisfação seriam as mesma do ato de fala que as produziu. “Na verdade, o que torna uma ação significativa, no sentido linguístico de uma ação significativa, é ter essas condições de satisfação intencionalmente impostas.” (SEARLE, 2002a, p. 233, grifos nosso).

Na verdade, para continuarmos a exposição, devemos apresentar mais uma distinção feita por Searle (2002a/1987) entre as intenções de significação. Podemos dizer que há dois níveis de análise nos significados, ou seja, os significados enquanto intenção de representar e enquanto intenção de comunicar. Claro, quando comunicamos algum significado linguístico estamos também representando. Contudo, nem toda intenção de representar transforma-se em intenção de comunicação. Searle diz que uma falha de sua abordagem anterior foi supor que o significado pode ser descrito, inteiramente, em termos de intenções de comunicação. O filósofo diz, contudo, que isso não é possível, pois há antes da comunicação uma intenção de representar. Portanto, nesta abordagem, a representação é anterior a comunicação.

Com mais essa distinção, Searle (2002a/1983) diz que o elemento chave para a compreensão das intenções de significação é que a maioria dos atos de fala são intenções de representar. E por intenção de representação o filósofo está querendo dizer é sobre uma intenção de que os eventos físicos que constituem parte das condições de satisfação (no sentido de coisa requerida) da intenção tenham condições de satisfação (no sentido de requisito). Por exemplo, num contexto de sala de aula, quando o aluno levanto o braço, tal ato tem um significado, qual seja, ele está pedindo permissão para falar. Levantar o braço, enquanto significado, tem suas condições de satisfação (que a comunidade entenda o significado desse erguer de braço e permita que o sujeito fale). Contudo, o próprio "erguer-se" do braço tem suas condições de satisfação em si, como a necessidade do ato intencional de querer levantar o braço realmente se cumprir.

No exemplo que demos, temos alguém querendo significar algo através de um movimento corporal. Então, como se estabelece a passagem da intenção de representar

(levantar o braço) para a intenção de comunicar ("por favor, deixe-me falar")? Searle diz que se sua abordagem estiver no caminho certo, essa passagem é muito simples: “A intenção de comunicação consiste simplesmente na intenção de que o ouvinte reconheça que o ato foi realizado com a intenção de representação.” (SEARLE, 2002a/1983, p. 234). Ou seja, a intenção de comunicação, representada no significado de levantar o braço, é a intenção de que essa intenção de representação seja reconhecida pela comunidade. Ou seja, a comunicação se estabelece no reconhecimento mútuo de certos significados.

Com isso, acreditamos ter apresentado a relação que Searle estabelece entre intencionalidade e significado. Tal relação se dá porque quando significamos algo (seja querendo comunicar, seja apenas querendo representar) temos a intenção de significar, e as condições de satisfação do significado (expresso nos atos de fala) são as mesmas da intenção do ato. Em última instância, um significado é um ato de fala, porque representam objetos e estados de coisas no mundo. Os atos de fala são intencionais porque quando o realizamos queremos, intencionalmente, realizá-los. Então, pela transitividade, quando significamos algo, há uma carga intencional forte no significado, porque queremos agir, intencionalmente, nessa direção.

No documento A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM JOHN SEARLE (páginas 112-115)