• Nenhum resultado encontrado

Durante os primeiros séculos da era cristã, o Império Romano a despeito de sua decadência, conservava aparências de grandeza e glória. Nas grandes cidades, a vida prosseguia tão cheia de prazeres e elegante como dantes. Contudo, em meio a esses costumes, alguns cidadãos começaram a agir de maneira “bizarra” e não romana, pois mesmo vivendo em um mundo que lhes oferecia luxos e prazeres sem precedentes, estes se sentiam atraídos por uma nova religião chamada cristianismo, que escarnecia e reprovava os prazeres.

Apesar das perseguições pelas quais o mundo pagão reagiu às investidas cristãs, a nova religião, de forma gradativa e inexorável, foi conquistando a lealdade de um segmento cada vez maior da população, até que com a conversão do Imperador Constantino (ano 323 d.C.), tornou-se a religião dominante do Estado e o seu ideal ascético foi progressivamente incorporado às Leis. No interior de um contexto propício aos prazeres, a moralidade cristã realizou conquistas notáveis, destronando de maneira eficaz os tradicionais padrões ditos “lascivos” da sexualidade greco-romana.

1. 3. 1 – A Igreja Primitiva: sexualidade e religião

A Baixa Antigüidade refere-se ao período entre a ascensão do cristianismo e a queda do Império Romano, que muito pouco foi estudado. É nebulosa a história da construção do poder da Igreja Católica em sua fase Primitiva, período compreendido entre as peregrinações de São Paulo, na década de 40 d.C. até os escritos de Santo Agostinho, no século V, a transição da era pagã à cristã.

O período da consolidação dos ideais cristãos foi de duros embates sobre os principais dogmas religiosos e da criação de alguns importantes mitos, como o da Virgem Maria, defendido fervorosamente por Santo Ambrósio (340-397), a Virgem com seu corpo imaculado, teria sido escolhida por seu perfeito ascetismo. Peter Brown (1990) descreve que o embate entre o corpo e a alma, no qual o sexo era o campo de batalha e a mulher vista como a fonte de todo o pecado, traz consigo o reflexo maior de

uma sociedade altamente machista e hierarquizada, revelando as origens morais e teológicas que ainda hoje regem a sociedade ocidental.66

As principais discussões travadas no interior da Igreja Primitiva a respeito da sexualidade e da espiritualidade se referem especialmente à continência sexual, os jejuns, as peregrinações, o messianismo, o celibato e a virgindade. Alguns dos principais dogmas, além de outros grandes estereótipos de nossa sociedade, têm origem neste período.

Nesse momento surgem os originais “gnósticos” ou “maniqueístas,” entende-se por “gnóstico”, algo que remete a “gnose” e esta é entendida como um conhecimento esotérico e perfeito da divindade, e que se transmite por tradição e mediante ritos de iniciação. Já “Maniqueísta” remete a “Maniqueísmo”, a doutrina que se funda em princípios opostos: bem e mal.

O termo “gnóstico” original, de acordo com Peter Brown, provavelmente tenha

se perpetuado, devido à atuação de Valentino. Em sua época (séc. II), “gnose” significava “conhecimento verdadeiro,” declarar-se “gnóstico” significava que a pessoa dizia ser conhecedora e portadora da verdadeira mensagem de Cristo, no caso. Esse fato nos remete à realidade vivida nos princípios do cristianismo: um clero sem forte autoridade, nem discurso coeso, convivendo com diversos grupos (“didascálias”) liderados por professores-líderes espirituais, cada um dizendo ser o verdadeiro portador da mensagem de Cristo e acusando os demais de hereges. Seria, portanto, nesta época de disputa interna por poder e por uma tendência única no cristianismo, que surgiria a importante idéia de heresia: a visão incorreta e distorcida da fé.

É possível observar que a noção tradicional de gnose como “conhecimento verdadeiro”, nada tem a ver com o que hoje é entendido pelo mesmo termo: “conhecimento perfeito e esotérico da divindade”. O surgimento dessa deturpação da idéia de gnose teria ocorrido no interior das lutas entre as didascálias e o clero, envolvendo Valentino. Este propunha o mito como veículo da instrução religiosa. Para ele, o sexo era o alimento para o fogo que destruía o Universo, a sua extirpação, portanto, acabaria com a diferença entre os sexos. Os celibatários e os continentes seriam assexuados, assim, seriam apenas espírito, não carne. Durante as disputas

internas de poder na Igreja, estas concepções foram sendo postas de lado e classificadas como heréticas e, então, o termo “gnose” passou a assumir o tom pejorativo atual.

Com o maniqueísmo ocorreu um processo semelhante, originariamente entendido como a linha teológica pensada por Mani, logo também foi classificada como herética e rotulada negativamente. Mani viveu no século III e acreditava que o corpo era originalmente uma “argila imunda” e sexo a representação do oposto da Criação, o caminho às Trevas. O anseio sexual deveria, então, ser banido para sempre, para que a Luz vencesse a batalha vital contra as Trevas. Sua doutrina exigia uma dura disciplina sexual e de alimentação. Sua adoração ao Sol e à Lua logo foram transformadas no jogo político interno da Igreja em heresia e toda a sua filosofia de embate entre a Luz e as Trevas foi reduzida ao que hoje é entendido por “doutrina que se funda em princípios opostos”.

Ao comparar as concepções dos semeadores da Igreja Católica Primitiva e os Antigos hebreus, verifica-se que o Antigo Testamento, considerava o casamento um decreto divino; o matrimônio era imposto como uma obrigação moral não apenas para gerar filhos, mas também para satisfazer às necessidades sexuais. A virgindade era relevante apenas antes do casamento e a manutenção deste estado além da juventude constituía uma frustração, uma blasfêmia à vontade divina. Com o advento do cristianismo tudo mudou, a virgindade passou a ser exaltada, a poligamia abolida e as relações sexuais permitidas apenas para a procriação. A castidade, antes considerada importante apenas para as mulheres, agora era essencial para ambos os sexos. O casamento, por sua vez, foi investido de um significado sacramental e simbólico.

O Novo Testamento expressa, sobretudo, a doutrina de Paulo, judeu grego convertido ao cristianismo, assim, a doutrina cristã da sexualidade se orienta primariamente em Paulo. Os preceitos sexuais pregados por Paulo colocavam em destaque a “pureza” cristã diante dos pagãos da época. A rigidez da moral sexual cristã primitiva, provavelmente, deve-se à necessidade da formação de uma identidade cristã em oposição à extrema liberdade sexual dos povos pagãos do período, que pouco a pouco se convertiam ou eram enquadrados, à nova moral cristã. O ideal de virgindade emerge como uma forma de identidade e consagração cristã, de “pureza” e distinção vocacional. O amor despe sua indumentária física e se torna Amor de Deus.

São Paulo afirma que o amor (ágape ou caridade) comanda e é por isso que ele é toda a lei. Em sua Epístola aos gálatas, v.14 afirma: “Um só preceito contém toda lei em sua plenitude: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A mesma idéia se encontra na

Epístola aos romanos: “Pois quem ama o outro cumpre assim a lei”. A caridade não

pratica o mal contra o próximo. A caridade é, portanto, a lei em sua plenitude (XIII 8- 10). Vale citar o belo hino ao amor (caridade) criado por São Paulo:

Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, não serei mais que bronze que soa ou címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda ciência; ainda que eu tenha a plenitude da fé, uma fé de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada serei. E, ainda que eu distribua todos os meus bens em esmolas, ainda que entregue meu próprio corpo às chamas, se não tiver caridade, nada disso me aproveitará. A caridade é paciente, a caridade é serviçal; ela não é invejosa; não se gaba, não se infla, ela não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não leva em conta o mal; não se alegra com a injustiça, mas põe sua alegria na verdade. Ela tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

A caridade não passa nunca. As profecias? Elas desaparecerão. As línguas? Elas se calarão. A ciência? Ela desaparecerá. Pois parcial é nossa ciência, também parcial nossa profecia. Quando, porém, vier o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá. Quando eu era menino, falava como menino, raciocinava como menino; quando cheguei a ser homem, fiz desaparecer o que era do menino. Pois vemos agora num espelho, enigmaticamente, então veremos face a face; agora conheço de maneira parcial; então conhecerei também como sou conhecido. Agora, pois, permanecem fé, esperança e caridade, estas três coisas: porém a maior delas é a caridade”. (Primeira Epístola aos coríntios, 1:13, Apóstolo Paulo).

O apóstolo apresenta em seu Hino à Caridade, as três virtudes teologais, uma vez que têm Deus mesmo por objeto de amor. Com Paulo Eros é transformado em Ágape. Em suas conhecidas epístolas, condena a homossexualidade, o adultério, a fornicação e a prostituição e prega a indissolubilidade do casamento, fundamentando-se em razões teológicas e propõe o ideário de mulher submissa e obediente ao marido, a monogamia como a única forma aceitável de casamento e o menosprezo ao concubinato.67

É interessante observar que as discussões e as idéias sobre a sexualidade estiveram, desde sempre, presentes nos embates teológicos cristãos. Diferente do judaísmo que nunca considerou o pecado original um erro carnal e sim um pecado de conhecimento e competição com Deus, para os cristãos, a humanidade após o pecado de Adão e Eva deveria pensar o que fazer com a maldição do sexo: “o fogo que mantinha a sociedade viva, porém distante de Jesus”. O cristianismo é muito mais severo com a

mulher, esta é condenada duramente como origem do pecado e da degradação. Na primeira Epístola a Timóteo (2:2-14), São Paulo escreve: “Não permito a mulher ensinar nem dominar o homem; que ela se mantenha, portanto, em silencio. Foi Adão o primeiro a ser modelado. Eva só depois. E não foi Adão o seduzido e sim a mulher, que, seduzida, caiu na transgressão.”

De São Paulo a Santo Agostinho, é possível identificar como os conceitos de virgindade, sexo após o casamento e celibato clerical, foram sendo trabalhados até chegarem às concepções da Idade Média. Se por um lado os adeptos da Igreja Primitiva diziam que o celibato era perigoso porque não permitia a reprodução da sociedade cristã, uma preocupação fundamental no começo da expansão religiosa, de outro Márcio e Taciano, no século II, defendiam a total renúncia sexual para a formação de uma nova sociedade, com novos valores. 68 Na visão do grupo de cristãos da época destes últimos, a forma de diferenciar-se da maioria pagã, seria a renúncia sexual, posto que naquele momento o número de adeptos do cristianismo era substancialmente maior do que na época de Paulo.

Tertuliano, no século III, condena todo adorno corporal e toda maquiagem das mulheres, de forma que estas “não sejam causa de tentação para si mesmas e escândalo para as outras, pois pintar o cabelo de vermelho seria antecipar o fogo do inferno.” 69 Percebe-se que Eva tornou-se o símbolo da negação do sexo que caracteriza o cristianismo. O mesmo Tertuliano escreveu que as mulheres melhor fariam se usassem luto, já que eram descendentes de Eva, a causa de toda a miséria humana.

Após a oficialização da religião cristã no Império Romano, com Constantino, pode-se observar uma mudança nas idéias acerca da sexualidade. Não havia mais razão para diferenciar a minoria cristã da maioria pagã, uma vez que agora, os cristãos eram maioria. A partir de então, as discussões passaram a ser em torno da virgindade – o símbolo do corpo imaculado, que deveria estar presente no clero: o corpo imaculado da Santa Igreja. Aos padres, que até então eram casados, impôs-se uma conduta moral que aconselhava a virgindade e o ideal celibatário, condenando o prazer e as relações conjugais.

68 BROWN, P. Op. cit. 69

Idem. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

No século IV, a castidade que havia sido fortemente defendida por Clemente no século II como diferenciação dos pagãos passou a ter um novo significado: os casados eram autorizados a manterem relações sexuais, desde que preservando os dias santos, a menstruação, a gravidez e a lactação. Isto sendo cumprido eles seriam considerados castos, estava chegando o ideário do sexo para reprodução, dentro do casamento monogâmico, sem adultério. Segundo João Crisóstomo, (séc. IV), o casamento era a única forma digna de controlar o desejo sexual.

O divórcio tornou-se muito difícil de ser conseguido após Constantino, o primeiro Imperador Cristão e a Igreja Romana marchou para a confirmação da rigorosa indissolubilidade do casamento, no Concílio de Cartago (407 d.C.), Constantino também fez entrar em vigor uma lei que tornava o adultério do homem tão punível quanto o da mulher, pela própria morte.

Até o século V, foram instaurados alguns dos principais dogmas católicos: o celibato clerical necessário para manter a pureza do corpo dos Ministros de Deus e da Santa Igreja; a virgindade como renúncia ao fogo sexual, antes do sagrado matrimônio; e, o sexo para reprodução, com restrições de datas, somente dentro do casamento.70

Do século II ao IV, uma forte reflexão monástica não mais trata de encorajar a retenção conjugal, mas sim, de prescrever a abstinência. Os monges fabricam um programa que preconiza que as mulheres se mantenham virgens ou se tornem frígidas e os homens, impotentes. Orígenes, filósofo e teólogo do século III utiliza a castração no momento de sua conversão ao cristianismo, seguindo ao pé da letra o espírito das palavras de São Mateus (19:12): “e há eunucos que tornaram a si próprios eunucos, por causa do reino dos céus.” Guiado pela idéia de que para chegar ao paraíso não poderia recuar diante do sacrifício, já mutilado, Orígenes percebeu tarde demais a ineficácia de sua imolação, posto que a operação física não fora capaz de suprimir o desejo. O que a nova religião cristã preconizava, na verdade, era a mutilação física e espiritual, pois a intenção era criar seres assexuados, de corpo e alma.

São Paulo na Epístola aos romanos (8:3, 3-13) condena as obras da carne: “e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado... porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se pelo espírito mortificares os feitos do corpo, certamente

vivereis.” E avança, conclamando aos Gálatas (5: 19-21), que apenas o espírito salva, a

carne conduz à morte eterna: “Ora, as obras da carne são conhecidas, e são: prostituição, impureza e lascívia... eu vos declaro como já outrora preveni que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam.” E partir de sua tradição hebraica, condena a homofilia como um “ato contra a natureza,” pois apenas a heterossexualidade é conforme a natureza. O cristianismo paulino, na contramão da Antiguidade, que opunha atividade e passividade funda outro par de opostos: a homofilia interdita e a heterossexualidade unívoca. A nova religião rigorosamente codifica a prática heterossexual e identifica o próprio sexo com o mal, o casamento é um paliativo, uma forma de canalização do desejo, deve-se casar quando se está “ardendo”. No entanto, Paulo insiste na idéia de abstenção sexual e preconiza o celibato, afirmando que mais vale a continência e a virgindade, pois o corpo deve ser reservado ao Senhor. O pecado é enxertado no sexo e insere a culpa na carne. O pecado está no corpo e o sexo é a personificação do mal.

Segundo Catonné (1994), o conceito de exegese corresponde ao sentido oculto de um texto que, no entanto, pode fazer com que um mesmo texto revele algo completamente diferente do que pode ser lido nele. Um exemplo desta segunda concepção pode ser encontrado na progressiva mudança ocorrida no que se refere ao objeto do pecado original. O historiador distingue quatro momentos distintos desse processo de transformação:

- o primeiro momento refere-se aos evangelistas, estes preparam o solo para a posterior germinação da identidade entre pecado e sexo. São João desacredita a carne, posto que, com o Cristo, o verbo se fez carne. Nesse sentido ele diz: “É o espírito que faz viver, a carne de nada serve”. (6:63).

Corroborando essa concepção, São Paulo recomenda que se fuja da concupiscência e de tudo que possa lembrar a nefasta fornicação. Em sua Epístola aos Coríntios escreve: “O corpo não é para a fornicação, mas para o Senhor [...]. Fugi da fornicação”. (I, 6:12-19). E São Mateus reafirma: “[...] e há eunucos que tornaram a si mesmos eunucos, por causa do reino dos céus”. (19:12). Entretanto, apesar de fertilizarem o solo, não se pode imputar aos evangelistas toda a responsabilidade pela identificação do pecado original ao corpo e suas concupiscências;

- o segundo momento faz referência a Fílon de Alexandria, judeu helenizado, primeiro pensador conhecido a identificar a narrativa que inicia a Torá com um delito sexual. No século primeiro da nossa era, Fílon produziu uma filosofia eclética, inspirada no neoplatonismo, através da qual afirmava que o delito sexual de Adão é comandado por sua parte sensível, tentado pelo prazer que o desvia de sua vocação espiritual. Ao desobedecer, Adão abandona o Bem, onde mora a fronesis, a prudente sabedoria e cai numa contraditória virtude, impura, mesclada de Bem e de Mal. Fílon é a referência erudita das leituras dos primeiros Padres da Igreja Cristã. Estes teólogos não discordaram integralmente desta interpretação, no entanto a inflexão semântica sobre o pecado original será desfechada com Santo Agostinho.

- o terceiro momento refere-se ao próprio Santo Agostinho (354-430), a originalidade do pensamento do teólogo reside na afirmação de que o pecado se transmite de geração para geração pelo ato sexual. Algo semelhante a uma doença que se transmite via sexo. Para Agostinho, o pecado faz morada numa natureza humana doentia e o remédio recomendado contra esta doença era o Cristianismo. Sob uma perspectiva histórica a idéia de transmissão de pecado pela via sexual, reaparece compartilhada e reforçada na atualidade com o surgimento do vírus da AIDS.

Santo Agostinho constrói as primeiras bases teóricas do cristianismo obcecado pela idéia de delito sexual. Em Confissões faz sucessivas alusões aos delitos: “Quero recordar minhas vergonhas passadas e as impurezas infernais, tive a audácia de regogizar-me em amores volúveis e tenebrosos, e ‘minha beleza feneceu’ e não fui mais que podridão a vossos olhos”. (L.II, c.1), e prossegue suas confissões, lamentando-se por não ter dado ouvidos a São Mateus: “Eis as palavras que eu teria ouvido, se tivesse sido mais atento, e, fazendo-me eunuco para o reino do céu, teria esperado com alegria pelo seu abraço”. (L.II, c.2). Ainda nas Confissões narra as etapas de sua conversão, resultado de sua renúncia erótica e a coroação do desejo ardoroso de sua mãe, Santa Mônica, que associava a conversão religiosa ao abandono da vivência sexual, pois desse modo não correria o risco de cair na “lodosa concupiscência da carne”.

A doutrina da culpa agostiniana vai se tornar dominante no pensamento cristão apenas 400 anos depois de sua morte. Apesar da forte condenação do prazer carnal e a da idéia de transmissão de pecado pela via sexual, não se pode afirmar que Santo

Agostinho tenha associado o pecado original do Gênesis ao ato sexual, este fenômeno é ainda posterior à sua existência, pois para ele, comer o fruto proibido da árvore do conhecimento do Bem e do Mal se tratava de uma desobediência. A desobediência resulta da transgressão de uma proibição, portanto, é um delito que teve como conseqüência o primordial e terrível castigo aos primeiros humanos: a dor (no trabalho pelo homem e no parto pela mulher). Santo Agostinho concebe que o desejo carnal é fruto de uma natureza corrompida e que as paixões humanas são também modalidades de punição divina. O teólogo deixa claro em sua obra Cidade de Deus, a sua preocupação em distinguir desejo sexual de pecado original, quando escreve:

Longe de nós o pensamento de que no Paraíso, os primeiros esposos fossem submetidos a essa concupiscência, cuja vergonha os obriga a se cobrirem, para o cumprimento destas palavras da benção divina: ‘Crescei e multiplicai- vos, e enchei a terra.’ (Gn. I 28) Foi somente desde o pecado que essa concupiscência surgiu. 71

Nos Sermões escreve que se o ser humano não tivesse pecado, teria se propagado sem paixão carnal, através de uma cópula regida pelo “império da vontade”, dessa maneira:“O homem espalharia a semente, a mulher a recolheria, segundo a necessidade, sem que os órgãos tivessem sido excitados pela concupiscência; eles teriam seguido o impulso da vontade.” 72 Esse é o modelo agostiniano de felicidade para o ser humano. Para ele esta miragem teria se tornado real se o primeiro homem não tivesse desobedecido. Os seres humanos teriam podido se relacionar sexualmente sem a