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1 1 ANTIGUIDADE MÍTICA

1.1.4. O Patriarcado Hebreu

A experiência dos hebreus foi relatada na Bíblia, na descrição das origens do mundo. A Bíblia é o registro histórico das experiências do povo de Israel e sua tradição religiosa monoteísta. A segunda narrativa do Gênesis (II 4b-III), a “Yahvista”, utiliza o nome de Yahvé (o nome próprio do Deus de Israel), utilizando para Deus: Elohim. O texto, possivelmente, datado do século VIII antes da nossa era, trata da narrativa da Criação centrada no ser humano. Yahvé, logo após ter criado o céu e a terra, pensa na humanidade, do Gênesis, II b25-III: “nenhuma planta ainda havia surgido, porque Yahvé não tinha feito chover sobre a terra e o homem não existia para cultivar terra.” Então, com a argila tirada do húmus, ele modela o primeiro ser humano: Adão, Adâmâ (terra ocre), por conseguinte, Adão é aquele que é tirado dessa terra. O primeiro humano chamado “homem” nasce, portanto, sexualmente indiferenciado. 19

Yahvé faz um jardim maravilhoso, à luz do Éden (oriental), instala ali o homem e ordena: “De toda árvore do jardim podes comer. E da árvore do conhecimento, do bem e

do mal, não comerás, porque, no dia que comeres dela, morrerás”. (Gn. II b25-III). O homem não encontra entre os animais um companheiro, então, para curar a sua solidão, Deus cria a Mulher: “E disse o homem: esta de fato, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada mulher (Ishsha), porque do homem (Ish) foi tomada.” O ponto fundamental da narrativa é que ela é da mesma natureza que ele, sua companheira, um ser de paridade.

Nesse momento é introduzida a diferença entre os sexos e a criação é acompanhada da idéia de união sexual: “Portanto deixará o homem seu pai e sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão uma só carne.” (Gn. II b25-III). É interessante observar que a descrição dessa união não é associada a qualquer reprovação: “estavam ambos nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam.” (Idem). Esta visão precede o relato da decadência humana, pois resulta de algo diferente de uma “tentação” sexual. A alusão à tentação encaminha à narrativa do “pecado original”:

Porém a serpente, o mais astuto de todos os animais que Yahvé criou, dirigiu- se à mulher: ‘Foi assim que Elohim disse: ‘ Não comereis de nenhuma árvore do jardim! E disse a mulher à serpente: Dos frutos das árvores podemos comer. Foi apenas um fruto da árvore que está no meio do jardim que Elohim disse: ‘não comereis dele, nem tocareis nele, para que não morrais’. E disse a serpente à mulher: ‘Não morrereis! Porque sabe Elohim que, no dia em que comerdes dele, abrir-se-vos-ão os olhos e sereis como Elohim, conhecedores do bem e do mal. (Gn. Idem).

A mulher por gula e curiosidade, sucumbe à tentação e prova o fruto proibido, e mais, dá o fruto ao seu companheiro, por via de conseqüência tem acesso ao conhecimento: “E foram abertos os olhos de ambos e souberam que estavam nus.” Nesse momento, ambos saem da inocência natural e adentram a humanidade, a conseqüência imediata é a perda do paraíso e o castigo divino: o homem é condenado ao duro trabalho do campo e a mulher a parir na dor. A mulher recebe o nome de Eva, mãe de todos os viventes e o casal é expulso do Paraíso por Yahvé-Elohim, porque não se podia admitir que o casal se apropriasse da árvore do conhecimento do bem e do mal, ousando se assemelhar ao Criador, o que tornava o humano, divino. O mito narra que o discernimento entre o Bem e o Mal é uma atividade reservada a Deus e, portanto, desobedecer é colocar-se acima da condição humana. Não seguir a vontade divina é sinal de descomedimento, significa ultrapassar o limite do homem. Comer o fruto da árvore do conhecimento não significa tão-somente poder distinguir o Bem do Mal, o

termo “conhecer” no pensamento semítico antigo implicava cumplicidade. Sobre esta distinção Jean Bottéro (1978) escreve:

[...] nas línguas semíticas antigas, o termo ‘conhecimento’ nunca designa, como para nós, uma operação puramente subjetiva da mente; o coração está mesclado nela, implicando sempre em cumplicidade com seu objeto e poder sobre ele. Para o Homem, ‘conhecer o Mal’, é, portanto, ao mesmo tempo, tomar consciência dos maus instintos surgidos nele e que o inclinam às más ações; é ter o que chamamos de ‘malícia’, falando de crianças um pouco avançadas demais para sua idade.20

A conseqüência é uma inclinação para potencialidades ruins, a nudez é sinal de vergonha e o mito racionaliza a questão do Mal. Outros textos do Antigo Testamento também não vêem com bons olhos a curiosidade. Escrito três séculos depois do Gênesis, o Livro de Jó, exprime a mesma desconfiança: “Vê Deus é sublime, além de todo saber.” (36,26). Em face da natureza, o homem pode admirá-la ou mesmo descrevê-la, mas não desvendar os seus segredos. A ignorância é um sinal de devoção.

O Gênesis expõe a origem do Mal, perguntando: Por que Deus fez um ser ao mesmo tempo livre e inclinado a usar sua liberdade para escolher o Mal? E o Eclesiastes responde que não compete aos homens compreendê-la. “Ninguém pode conhecer o plano de Deus”. O que me é permitido compreender é que sou completamente diferente d’Ele. Sou um mortal, conseqüentemente, devo ocupar o meu lugar em relação ao Criador eterno: “No que me concerne, a respeito dos homens, afirmo: o que Deus quer é mantê-los afastados...” (Idem.). Tal e qual o Gênesis, o Eclesiastes lembra aos seres humanos os seus próprios limites, uma vez que ultrapassá-los é ofender a Deus.

No texto do Gênesis o Mal não se associa ao sexo, ao contrário, o Eclesiastes o recomenda: “Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os quais Deus te deu aqui neste mundo; porque esta é a tua porção nesta vida de preocupações com que te deparas debaixo do sol”. (Idem). O Mal e amor sexual são questões distintas, o pecado original está no desejo de apropriar-se sozinho do Bem e do Mal, querer discernir sem Deus, ou seja, dispensá-lo, revoltar-se contra Ele. O homem é o único ser capaz desta revolta e por isso é o único responsável pela sua própria desgraça, o reto caminho portanto, é obedecer às leis de Deus. Para o espírito agnóstico, não se pode conhecer o que excede o dado experimental, a lição do mito pode ser rica em ensinamentos, se concebida como um projeto ético: És o único responsável pela tua

existência, evita, portanto, ser o artesão da tua própria infelicidade. Faça escolhas certas e constrói assim a tua felicidade.21

A narrativa bíblica escreve a história de um delito intemporal, não de um delito sexual, um delito contra a vontade divina, em razão de uma intemporal ousadia e maldade humana. Maldade tão grande que obrigará Deus a aniquilar a raça humana, como conta a narrativa do Dilúvio. O delito intemporal do pecado original narrado no Gênesis, não guarda similaridade com o pecado da carne cristão que lhe é atribuído posteriormente. Tanto em Israel como na Babilônia, fazer amor, desde que não representasse ofensa a outrem, era um ato santo e enriquecedor.

As narrativas do Velho Testamento foram registradas pela escrita e vale lembrar que a escrita era uma distinção exclusivamente masculina, assim como eram a produção, a militarização e o sacerdócio. Também a educação pastoril era privilégio masculino, à mulher cabia apenas aprender o ideal de obediência e submissão ao homem. As mulheres das tribos hebraicas não tinham direito de participar da vida religiosa, a não ser, sob estreita obediência ao marido, pois eram consideradas impuras, devido ao sangue que expeliam no parto e na menstruação.

Em diversas passagens do Antigo Testamento é possível observar uma estreita relação entre sexo e reprodução, intermediada pelo casamento O casamento entre as tribos de Israel era um contrato familiar destituído de qualquer significação religiosa ou jurídica, à mulher era atribuído um preço e a partir do pagamento da noiva, esta se tornava propriedade de seu novo dono. Um dote era exigido para que o homem comprasse a sua esposa, um exemplo desse costume pode ser encontrado nos escritos sobre Jacó, grande patriarca, que ao prestar serviço a Labão, levou como paga de seus 14 anos de trabalho, suas filhas Lia e Raquel como esposas e escravas. (Gn:29). Esta passagem bíblica foi liricamente retratada na literatura renascentista de Luís de Camões:

Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; Mas não servia ao pai, servia a ela; Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la;

Porém o pai, usando cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assim negada sua pastora;

Como se não a tivera merecido, Começa de servir outros sete anos, Dizendo: - Mais servira, senão fora Para tão longo amor, tão curta a vida. 22

A finalidade do matrimônio era a geração de filhos, vistos como sinais de benção divina e riqueza. A produção de herdeiros era muito importante para os hebreus em função das grandes vicissitudes enfrentadas por um povo nômade que, estando em constante movimento, enfrentava muitas guerras e um alto índice de mortalidade infantil. A virgindade feminina era valorizada e deveria ir até o matrimônio, mas não deveria ser mantida além da juventude. A fidelidade da mulher após o casamento era indiscutível.

Os hebreus se casavam muito jovens, mas o fator primordial da união não era o amor sensual, uma vez que a escolha do cônjuge era feita pelos pais. O sexo caminhava divorciado tanto do amor como do prazer, pelo menos, no caso das mulheres. De outro lado, a poligamia e a concubinagem masculina eram comuns e aceitas. Este poderia ter no casamento sexo apenas para reprodução e em função de outras práticas permitidas, podia vivenciar o amor e obter o prazer do sexo fora do matrimônio, a mulher não.

No Antigo Testamento, o divórcio também é um privilégio masculino, os homens tinham o direito de repudiar suas mulheres (Dt: 24:1), às mulheres não era permitida a recíproca e, caso flagradas em adultério, eram apedrejadas em praça pública. No Gênesis e no Levítico (Lv: 20:22 e Gn: 9:21) podem ser encontradas normas de repressão ao travestismo e à prostituição (Dt: 32:5). Segundo as escrituras do Levítico, o parto e a menarca revelavam a impureza da mulher (Lv: 20:18). Em contrapartida, no livro do Gênesis (17,9-14) a sexualidade e a fecundidade do varão eram provas da benção de Deus, a circuncisão representava a distinção dos hebreus, revelada por Deus a Abraão:

Quanto a ti, tu observarás a minha aliança, tu e tua raça depois de ti, de geração em geração. E eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é, tua raça depois de ti: que todos os vossos machos sejam circuncidados. Farei circundar a carne de vosso prepúcio, e este será o sinal da aliança entre mim e vós. Quando completarem oito dias, todos os vossos machos serão circuncidados, de geração em geração. Tanto o nascido em casa tanto o comprado por dinheiro a algum estrangeiro que não é da sua raça, deverão ser circuncidados. Minha aliança estará marcada na vossa carne como

uma aliança perpétua. O circunciso, o macho cuja carne do prepúcio não estiver cortada, esta vida será eliminada de sua parentela: ele violou a aliança.23

O patriarcado hebraico é dos mais rígidos devido a um agravante, além de o pastoreio sedentário já ter superado o matriarcado primitivo com a perda de identidade do caçador e a conseqüente perda do poder das mulheres, os hebreus perderam também a sua identidade territorial. As constantes ameaças e dominações sofridas serviram para cristalizar o poder patriarcal, impedindo a evolução de suas instituições religiosas.

A organização da sociedade pastoril hebraica era controlada pelos homens e a religião marcada por uma nítida estrutura de poder. Deus é concebido “homem”, o Patriarca Primeiro. A mulher, ser impuro, era proibida de participar do ministério do sacerdócio e de freqüentar o centro do templo, o último mandamento revelado a Moisés: “Não cobiçarás a casa de teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu servo, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo”. (Ex 20:17), é um exemplo ilustrativo da inferioridade feminina, relegada a categoria de propriedade, cujo status social se encontrava no patamar dos escravos e dos animais investidos de algum valor de troca.

A tradição patriarcal hebraica influenciou de maneira profunda a cultura ocidental, posteriormente, foi relida, estendida e perenizada pela moral cristã, da qual trataremos mais adiante. Vale destacar que nesta tradição se encontram as raízes das concepções machistas medievais, modernas e contemporâneas. A compreensão do machismo na atualidade parece não fazer sentido sem o prévio conhecimento de suas bases históricas de construção, uma vez que o conhecimento desses modelos é que permite a análise crítica e abre a possibilidade de criação de novos modelos de compreensão dos papéis sociais / sexuais que possam vir a superar a cristalização histórica discriminatória.