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1. 4. 1 – O humanismo Renascentista e a Reforma

Ao longo de três séculos o mundo europeu adquiriu um aspecto muito diverso das características medievais, o capitalismo comercial e a centralização política se desenvolveram, caracterizando a Idade Moderna. As cidades se expandiram, o comércio floresceu, surgiram a pólvora e a imprensa. Os eruditos, os poetas e os cortesãos redescobriram Cícero, Platão, Safo. As artes se fizeram imitativas dos modelos clássicos. A mulher foi glorificada por Botticelli, Giorgione e Ticiano. Houve uma luta entre a religião da Idade Média e o Humanismo Renascentista, entre o poder do Papa e o poderio das Nações.

No século XV, uma nova investida religiosa tem início e toma força com o movimento de repressão sistemática ao feminismo, são quatro séculos de “caça as bruxas”. As “bruxas”, na verdade, eram as guardiãs dos proscritos pagãos aos deuses da natureza e do antigo conhecimento da cura por meio de ervas, um saber transferido secretamente de mãe para filha; e, também, as precursoras dos movimentos de revolta camponesa que precederam à centralização dos feudos.

Em meados do século XVI a posição da mulher da aristocracia começa a sofrer algumas positivas modificações especialmente porque algumas adquiriram distinção em suas funções como chefe de Estado, como Elisabeth da Inglaterra, Margarida de Navarra, Caterine de Médice e Mary da Escócia, pois a filosofia renascentista possibilitou à mulher aristocrata uma refinada educação intelectual e artística.

Algumas narrativas do período sinalizam que o impulso romântico culminava em casamento e, talvez, se possa dizer que os casamentos românticos, tal como começaram na literatura, tinham a sua contrapartida na realidade. Não apenas aristocratas e intelectuais pensavam em torno da aliança Amor – Casamento, mas a própria classe média, agora bem mais representativa, cuja tradição moral do cristianismo possibilitava encontrar no casamento romântico, as boas maneiras amorosas dos nobres cortesãos em um contexto purificado e moral.

Segundo Elias (1990), em História do Processo Civilizacional, do século XVI para o XVII, o Iluminismo da Renascença fez com que o sexo não parecesse tão pecaminoso, nem tão repulsivo. Homens e mulheres já podiam começar a associar sexo e amor, o que nos leva a acreditar que algo parecido com o casamento moderno estava começando a surgir.

No âmbito religioso, em meados do século XVI, um fenômeno resultante da insatisfação gerada pelos contrastes entre a filosofia cristã e a conduta do clero promoveu a Reforma Protestante. Alguns humanistas destacados como Erasmo de Roterdã e teólogos como Lutero e Calvino assumiram uma posição de resistência e protesto contra os excessos dos representantes da Igreja Romana, no que se relacionava às riquezas materiais e à sensualidade.

Este movimento que se propunha a “libertar o corpo do ascetismo induzido pela culpa” se revelou, na realidade, complexo e contraditório, não somente no que se referia

aos sentimentos em relação ao sexo e ao amor, mas, também, sob vários outros aspectos sociais, políticos e culturais. A Reforma, em sua revolta contra Roma, rejeitou, no mesmo “pacote”, o pensamento Iluminista e mergulhando novamente na teologia, desmantelou a educação universitária. O protestantismo depreciou o celibato, louvou o casamento e proclamou o sexo conjugal como livre de mácula na mesma medida em que continuou a condenar e executar feiticeiras, tal e qual fazia o Tribunal da Inquisição. A desconcertante mistura do espírito liberal e do espírito reacionário foi personificada na figura de Martinho Lutero, o primeiro reformador.

Calvino, monge agostiniano suíço, o segundo arquiteto da Reforma exerceu grande influência sobre o pensamento de sua época no que diz respeito ao sexo, aos prazeres e ao casamento. Como ocupava um cargo importante em Genebra, seus ensinamentos acabaram por se tornar leis, as transgressões sexuais tanto quanto as heresias eram motivos para exílio e o adultério (de mulheres) era motivo para a morte, geralmente, por afogamento ou decapitação.87

Apesar da sexualidade ainda estar ligada à reprodução, emergem prenúncios de progresso na liberdade de escolha dos cônjuges. Os pais deixaram de vetar a escolha de seus filhos, o que significava que a compatibilidade psicológica era aceita pouco a pouco como um requisito básico para o casamento. Assim, a responsabilidade na relação interpessoal passou a ser fundamental para os noivos, em contraponto, o adultério e a prostituição desde muito proibidos (mas tolerados) passaram a ser combatidos e os castigos pelas relações sexuais não conjugais foram se tornando cada vez mais severos.

A ruptura protestante estruturou um ideal ascético que, segundo Max Weber, em

A ética protestante e o espírito do capitalismo (1920), contribuiu, decisivamente, para o

desenvolvimento qualitativo do capitalismo. Nesta obra Weber destaca que coube aos puritanos, cuja consciência de ser minoria e a motivação de ser eleito de Deus, fazia de cada membro das comunidades protestantes não um mero adepto do rebanho, mas um vocacionado que se dedicava, simultaneamente, ao aprimoramento ético, intelectual e profissional. A atividade laboriosa é para o puritanismo um imperativo ético que todos, até mesmo os líderes religiosos ou empresários, tanto quanto os demais crentes, deveriam observar. Em suma, o ascetismo intramundano praticado pelos puritanos, com

o seu elevado grau de racionalização, engendrou o espírito do capitalismo, produzindo empresários e trabalhadores ideais para a consolidação da uma nova ordem social, que integrou como nenhuma outra, um número excepcional de pessoas sintonizadas entre si, para canalizar esforços produtivos (na economia), conforme a orientação (política) preestabelecida. 88

No entanto, é necessário salientar que não se deve iludir com as profissões de fé ascéticas deste período, pois os mesmos virtuosos capazes de crer com tanto fervor, blasfemavam com o mesmo ímpeto. As mesmas jovens que se ajoelhavam afetadamente aos domingos, também pintavam suas faces durante a semana e se deixavam seduzir apenas com uma proposta de casamento. A virgindade era protegida por todas as disposições do costume: da moral, da lei, da religião, da autoridade paterna, da pedagogia, da “honra”, contudo era perdida com muita facilidade. Os soldados que retornavam das campanhas, onde o sexo e o álcool eram as principais consolações, achavam doloroso ajustar-se à continência e a sobriedade dos períodos de paz. 89

Os artistas desdenhavam e ridicularizavam as regras e os regulamentos do comportamento sexual, os fidalgos e senhoras concordavam com eles e muitas jovens da alta sociedade já não levavam mais a virgindade para o leito de núpcias. A arte tinha mercado fácil ao retratar e descrever quadros eróticos, até mesmo de perversões imaginadas, vendidos livremente nas grandes feiras. A prostituição prosperava em renda e prestígio; neste período suas praticantes eram chamadas na frança de cortigiane – cortesã. Alguns generais providenciavam prostitutas para os seus exércitos como uma forma de salvaguardar as mulheres das cidades ocupadas, a doença venérea se alastrava na proporção de uma praga e os governantes passaram a legislar contra as infelizes prostitutas. Como pode ser visto, Lutero ao mesmo tempo em que proclamava a naturalidade do desejo sexual, trabalhava para reduzir a prostituição e sob pressão sua dezenas de cidades alemãs a tornaram ilegal.

A luxúria da carne por carne paradoxalmente inspirou a fome da alma pela alma e a toda a renda delicada da côrte e do romantismo: olhares furtivos, cartas de amor, odes e sonetos, baladas e madrigais, presentes esperançosos e entrevistas secretas faziam

88 WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1996. 89 ELIAS, N. Op. cit., p.145.

pulsar mais forte o sangue nas veias. Alguns espíritos refinados ou alegres mulheres importavam da Itália o passatempo do amor platônico, no qual a dama e aquele que a cortejava, podiam ser amigos apaixonados, embora absolutamente castos. A restrição, no entanto, não fazia parte dos hábitos da época, os homens eram francamente sensuais e as mulheres, ao que parece, gostavam que fossem assim.90

A poesia amorosa abundava, no entanto, parecia mais um prelúdio à posse, não ao casamento. Erasmo de Roterdã, sensível aos encantos das mulheres, mas não aos do matrimônio aconselhava os jovens a casarem-se tão velhos quanto o desejassem e a confiar que o amor crescia com a associação e definhava com a saciedade e Rabelais concordava com ele. Apesar do poder dessas autoridades, um crescente número de jovens rebelava-se contra os casamentos de conveniência. Lutero muito alarmado ao saber que o filho de Melanchthon tinha noivado sem consultar o pai, escreveu em 1544:

Temos uma horda imensa de jovens de todos os países, e as moças são imprudentes, seguindo os rapazes a seus aposentos, oferecendo-lhes seu amor gratuito; e ouço que muitos pais obrigam os filhos a voltar para casa... dizendo que nós lhes penduramos mulheres ao pescoço... No próximo domingo pregarei um forte sermão, dizendo aos homens que sigam os caminhos e os costumes comuns, que existem desde o começo do mundo... isto é, que os pais devem conceder seus filhos uns aos outros com prudência e boa vontade, sem que haja compromisso preliminar entre os próprios jovens... Tais compromissos são invenções do papa abominável, insinuados a ele pelo diabo, para destruir e derrocar o poder paterno, dado e aprovado generosamente por Deus. 91

Os contratos de casamento podiam ser combinados para meninos e meninas de apenas três anos de idade, embora tais uniões pudessem anular-se mais tarde, desde que não consumadas. A idade legal para o casamento pleno era geralmente aos 14 anos para os rapazes e 12 para as meninas. As relações sexuais depois do noivado e antes do casamento eram toleradas. Nos países protestantes o matrimônio deixou de ser um sacramento. Lutero, Henrique VIII, Erasmo e o Papa Clemente II consideravam a bigamia permissível sob certas condições, especialmente em substituição ao divórcio. O divórcio entre os protestantes era permitido em princípio, somente por adultério, apesar de não abandonarem o costume de matar mulheres adúlteras. Exceto na classe aristocrática, a mulher era uma deusa antes do casamento e uma serva depois. As mulheres da plebe tinham a seu cargo a maternidade, seus numerosos filhos e a tentativa

90 Idem.

de controlar as escapadas de seus senhores. Eram criaturas robustas, habituadas ao trabalho árduo de sol a sol. Faziam a maior parte da roupa da família e às vezes trabalhavam para capitalistas. O tear era parte essencial do lar, na Inglaterra todas as solteiras eram chamadas spinters – fiandeiras.

Entre as francesas, em contrapartida, os negócios amorosos ilícitos faziam parte da vida normal das mulheres de boa posição social. O ménage triangular como o de Henrique II, Catarina de Médicis e Diane de Poitiers era freqüente, a esposa legal aceitava a situação com estranha benevolência. 92 As mulheres da corte francesa constituíam uma espécie diferente, eram encorajadas por Francisco I a embelezar-se no corpo e no vestuário, chegavam por vezes a alterar a política nacional graças às armas de seus encantos. Muitas francesas de classe superior eram cultas; em Paris tomava forma o

salon francês, na medida em que as senhoras ricas e cultas faziam de suas salas o lugar

de encontro de homens de Estado, poetas, artistas e filósofos.

De modo geral, a Reforma, sendo teutônica, trabalhou pela visão patriarcal da mulher e da família. Terminou com a entronização feminina da Renascença como exemplo de beleza e como civilizadora do homem. Condenou a benevolência da Igreja para com os desvios sexuais e, após a morte de Lutero, preparou o caminho para a frigidez puritana.

A moralidade social vai declinando na Europa com a ascensão do comercialismo e o desaparecimento temporário da caridade. A desonestidade natural do homem achou formas e oportunidades novas à medida que a economia monetária substituía o regime feudal. Dificilmente podemos atribuir esse declínio moral da Alemanha e da Inglaterra à “liberdade sexual” de Lutero ou ao seu desprezo pelas “boas obras”, ou ao mau exemplo de indulgência sexual de Henrique VIII, pois licenciosidade semelhante e, em certos aspectos, mais desenfreada, também reinava na Itália e na França católica, para Durant (1975), a mais provável causa do relaxamento moral da Europa Ocidental foi o aumento da riqueza.