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3.2 Da cidadania burguesa à cidadania socialista

3.2.2 Ideal de omnilateralidade

Não é por acaso que o século XX foi considerado a “era dos extremos”,5 pois para qualquer lado que olhemos, em quaisquer que sejam os campos de atuação e reflexão, os anos compreendidos neste século foram incrivelmente tencionados por dualidades tanto no setor produtivo quanto na estrutura geral da civilização. Se considerarmos que tivemos, neste período, duas guerras mundiais, revoluções socialistas, crises intensas do capitalismo, transformações técnico-científicas inimagináveis tempos antes, podemos reconhecer a complexidade desses anos todos.

Sobre este período, podemos identificar alguns pontos relevantes para a questão educacional em relação aos processos produtivos. Nesse sentido, podemos dizer que a ordem mundial foi redesenhada, pelo menos, por duas vezes nesse curto espaço de tempo histórico.

A primeira ordem do século XX foi definida, por um lado, por “Países de Primeiro Mundo” (capitalistas, de pensamento liberal e burguês, e neste caso, desenvolvidos) e “Países de Terceiro Mundo” (orientados pelas mesmas regras do primeiro, mas ocupando lugares periféricos, de subdesenvolvimento), formando um “tipo” de sociedade; e, de outro lado, os “Países de Segundo Mundo”(organizados após a revolução russa e com regimes socialistas, de economia planificada). Era assim que as escolas ensinavam aos seus alunos até os anos noventa.

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Expressão utilizada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm para caracterizar o Século XX, período de intensas conturbações e transformações econômicas, políticas e sociais.

No final do século XX surgiu uma nova idéia de ordem mundial, desprezando os modelos socialistas ainda existentes, especialmente após a queda do Muro de Berlim, em 1989, pensou-se num mundo globalizado, de tipo único, praticamente organizado em “Países Desenvolvidos” e “Países em Desenvolvimento”, sendo que a graduação para estar num ou noutro grupo leva em conta, principalmente, os aspectos sócio-econômicos. Também encontramos os países em concentrações de relações formando os “Blocos Econômicos” por regiões, como a Comunidade Européia, o Mercosul, etc.

Mas, antes de discutirmos esse cenário contemporâneo, foquemos nossa atenção na primeira metade do século, quando do crescimento das idéias e ideais socialistas, para a sociedade e para a educação.

Esse marco decisivo que foi a realização de experiências socialistas, ou melhor, a introdução do socialismo não apenas em teoria, mas, em prática social e governamental, mudou a face do mundo.

Para Manacorda (2000, p. 313), no século XX é

[...] impossível prescindir de fato novo, o socialismo, que não é somente mais uma ideologia emergente de novas classes sociais suscitadas pelo desenvolvimento do moderno industrialismo, mas já é, embora em crise como o liberalismo durante a Restauração, a ideologia oficial dominante de Estados baseados na força destas classes novas.

Em relação à teoria da educação, o socialismo admitiu muitas das conquistas burguesas, mas de maneira crítica e inovadora lhes acrescentou uma concepção nova, a qual Manacorda (2000, p. 313) identificou como “a relação instrução-trabalho (o grande tema da pedagogia moderna), que vai além do somatório de uma instrução tradicional mais uma capacidade profissional e tende a propor a formação de um homem omnilateral”.

Chegamos na raiz do problema que se estende até nossos dias e sobre o qual se “enche” o mundo acadêmico de materiais e pesquisas. A relação trabalho e educação, que pode ser encarada do ponto de vista do “liberalismo” ou do ponto de vista do “socialismo”.

Na primeira tendência, no liberalismo, valoriza-se o individualismo, a iniciativa privada, a competitividade e entende-se a divisão “natural” entre aptidões intelectuais e mecânicas. Noutras palavras, admite-se a dualidade entre “arte do fazer” e “arte do falar”. Mesmo variando, o fato é que, no limite, a desigualdade social é vista como conseqüência de diferenças individuais, seja de habilidades e competências, seja de contexto sócio-cultural. Além disso, a vinculação entre educação e cidadania constrói barreiras muitas vezes instransponíveis entre o “mundo dos excluídos” e o “mundo dos incluídos”.

Na segunda tendência, no socialismo, ao contrário, valoriza-se o coletivismo, a intervenção do Estado, a solidariedade e a formação integral da pessoa expressa na omnilateralidade. A desigualdade social é vista como produto, antes de mais nada, social e histórico. A cidadania não está condicionada à educação. Tudo isso, evidentemente, do ponto de vista teórico e filosófico, não necessariamente se vendo na prática, como poderemos verificar a seguir.

Estes nos parecem os caminhos até agora apresentados. Estes também devem ser elementos fundamentais de reflexões sobre educação no mundo contemporâneo. Um grande equívoco dos pesquisadores foi (e tem sido) ignorar ou ocultar uma situação essencial para os dias de hoje: as reformas educacionais sugeridas alegam uma busca da “unitariedade”(conceito socialista) numa sociedade que é, e não quer deixar de ser, capitalista e baseada no “liberalismo”.

Por esse motivo, ganharam uma importância enorme os escritos de Antonio Gramsci, que além de ter seguido a “linhagem” de pensamento socialista inaugurada por Marx, aprimorada por Lênin e Krupskaja, entre outros, ele próprio foi testemunha ocular do momento na história mundial onde a sociedade se viu nessa encruzilhada.

Sendo assim, dedicaremos uma atenção especial aos aspectos presentes da obra desse pensador italiano que retomou os conceitos marxistas de historicismo e materialismo dialético para pensar a sociedade no século XX. Mais que isso, foi ele quem apresentou de forma sistemática e engajada uma versão mais elaborada do ideal de educação e de sociedade unitárias. Com ele, o conceito de “escola unitária”, tão presente até hoje, conquista um espaço nunca antes alcançado na história do pensamento filosófico e pedagógico da sociedade ocidental.

Daremos assim um passo decisivo ao tentarmos compreender este conceito de educação socialista, do ponto de vista gramsciano e, com isso perseguirmos depois essa teoria política e educacional na evolução e na implantação da proposta do novo ensino médio brasileiro, identificando os momentos de maior aproximação ou maior distanciamento deste. Mais que isso, veremos qual papel foi reservado ao processo educacional em relação à conquista e ao exercício da cidadania.